A refundação do Brasil no corredor do Carrefour, por Fábio de Oliveira Ribeiro

A reação imediata da imprensa corresponde à brutalidade do crime. Não é a primeira vez que um homem de cor é maltratado em condições semelhantes por seguranças do Carrefour.

A refundação do Brasil no corredor do Carrefour

por Fábio de Oliveira Ribeiro

O vídeo é extremamente brutal. Um homem negro caminha despreocupadamente pelo Carrefour. Então ele é violentamente abordado por seguranças. Agredido sem esboçar qualquer resistência, ele é jogado no chão e assassinado.

A reação imediata da imprensa corresponde à brutalidade do crime. Não é a primeira vez que um homem de cor é maltratado em condições semelhantes por seguranças do Carrefour. O racismo deles é evidenciado pelo episódio que ocorreu em Osasco, cidade em que um homem negro foi arrastado de seu carro no estacionamento do Carrefour, confinado numa salinha e torturado porque foi considerado suspeito de tentar roubar o próprio veículo.

O veículo era bonito, um negro obviamente não teria condições de comprar algo semelhante. O negro que foi assassinado porque estava caminhando no Carrefour só poderia ser um ladrão. A lógica denuncia o racismo. Todavia, a delegada que autuou os assassinos disse que não conseguiu ver qualquer comportamento racista. Ela certamente não é capaz de notar o quanto o próprio comportamento dela é suspeito.

No Brasil o capitalismo é incapaz de conviver com consumidores negros. Mesmo que tenham recursos, eles não têm os mesmos direitos que os outros consumidores. Quando não são tratados como suspeitos, eles são agredidos e mortos porque ousam fazer aquilo que somente os brancos estão autorizados a fazer. Frequentar Shoppings e supermercados é um luxo. Os produtos e serviços que deveriam estar à disposição de todos são interditados para alguns em virtude da cor da sua pele.

Imediatamente, um blogueiro bolsonarista começou a vociferar ódio para defender o crime cometido nas dependências do Carrefour. Segundo ele a agressão foi necessária, a morte uma consequência supostamente indesejada. A missão dele está concluída. Ele conseguiu espalhar fumaça suficiente para legitimar a decisão tomada pela delegada de afastar a motivação racial do crime.

O castigo dos assassinos com ou sem agravante, entretanto, será inevitável. A violência letal empregada foi desnecessária, pois a vítima nem mesmo reagiu às agressões que sofreu. O vídeo conta uma história muito diferente daquela que foi construída pelo blogueiro.

A liberdade de imprensa não deveria ser usada para defender crimes ou incentivar a prática de delitos. Todavia, é exatamente isso que tem ocorrido nos últimos anos. Quando não atacam o direito de defesa dos seus inimigos políticos, os blogueiros bolsonaristas agridem o Direito para legitimar atos criminosos praticados por pessoas que eles consideram aliados naturais. O Judiciário tem sido tolerante para com esses corvos do jornalismo.

Mais dor, menos racionalidade e um maior distanciamento dos princípios que orientam a Constituição Cidadã. O ministro do STF Luís Barroso apoiou o golpe contra Dilma Rousseff chamando-o de Refundação do Brasil. Ele também é responsável indireto por esse crime.

Nas dependências do Carrefour o Brasil foi Refundado. Liberdade sim, mas apenas para os racistas continuarem a cometer crimes hediondos. Igualdade não, porque somente os negros podem ser agredidos e assassinados nos Shoppings. Fraternidade nem pensar, pois os policiais devem ser ensinados a agredir as vítimas raciais preferenciais da sociedade brasileira. Capitalismo selvagem à qualquer custo, mas sem consumidores negros.

Aos que dizem que não existe racismo no Brasil, recomendo a leitura de um clássico da primeira metade do século XX:

“Relativamente à sua civilização material, podemos distribuir os negros em três grupos: o grupo da primeira imigração, que é ‘bantu’, homogeneo, quando possível puro, estabilizado na sua primitiva barbárie; o da segunda, mais ou menos misturado com negrilhos e bantus, que é o do ‘homem de Guiné’; e, mais ao norte, mésclado de autoctones de raça mediterranea, islamizado, impregnado de tradições arábicas, o grupo sudanês, ou sub-sahariano. Os da primeira família, boçais, retardados, inferiores muscular e psiquicamente, formaram a plebe; os da segunda, otimamente dotados, na sua vitalidade exuberante, o elemento médio; e os da família semi-mussulmana, a aristocracia da escravidão. Na antropogenese brasileira são fatores desiguais, que – esboçamos a sua localização – contribuíram em proporções muito diversas para a elaboração do nosso povo. De modo geral, não lhe trouxeram mais que o concurso biológico e a função economica, de incomparáveis trabalhadores tropicais: não enriqueceram com o seu material de trabalho a nossa indústria, não vincudaram a sua experiência de raça equinocial á do colono, na solução dos seus problemas vitais, não carrearam para a nossa etologia senão a sua rudeza, o seu instinto musical, a sua religião selvagem, um exiguo folk-lore cedo suplantado pelo do indio, muito mais culto, e a nostalgia, a paciencia e a ferocidade, o complexo de luxuria, bondade e resignação das senzalas – ‘oficina gentium’ de uma sub-raça. Fóra disso, temos a considerar os costumes sudanêses e a língua bantu – como os contingentes africanos mais interessantes que no Brasil se conservaram.” (Espírito da Sociedade Colonial, Pedro Calmon, Companhia Editora Nacional, São Paulo, 1935, p. 176/177)

Não é difícil ver o racismo científico tupiniquim ecoando nas ações dos assassinos do negro que andava calmamente pelo Carrefour, na conclusão da delegada do caso e nas palavras do blogueiro bolsonarista que defendeu o crime minimizando a conduta dos criminosos. Membro de uma sub-raça feroz, possivelmente primitiva, física e mentalmente retardado, aquele negro deveria ter ficado na sua senzala. É auto-evidente que o Shopping e o supermercado é um lugar onde os homens brancos realizam seu “white man’s burden”. Dentro das dependências dele, os negros podem ser agredidos e eventualmente mortos porque carrearam “…para a nossa etologia [nada] senão a sua rudeza”.

Entre nós a tolerância racial tem sido um dos mitos fundadores mais persistentes e hediondos. No Brasil, o racismo sempre foi programático e escancarado. Ele se torna mais cruel e eficaz quanto é negado por racistas e negligenciado pelas autoridades.

No início do século XX o racismo ganhou ares de ciência respeitável nos livros de autores Pedro Calmon. O fato do racismo científico ter sido jogado na lata do lixo em decorrência da derrota da Alemanha Nazista na II Guerra Mundial não impediu sua ressurgência no discurso político brasileiro.

“Eu fui num quilombo. O afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas (arroba é uma medida usada para pesar gado; cada uma equivale a 15 kg). Não fazem nada. Eu acho que nem para procriador ele serve mais. Mais de R$ 1 bilhão por ano é gasto com eles.” disse o então candidato a presidente Jair Bolsonaro durante uma palestra na Hebraica do Rio de Janeiro. Ele foi aplaudido quando deveria ser imediatamente confrontado. Pior, a conduta dele nem mesmo foi punida na forma da LEI Nº 7.716, DE 5 DE JANEIRO DE 1989.”

Ao dizer que o rapaz morto era muito grande, o tal blogueiro bolsonarista apenas confirmou as palavras do führer bananeiro. Não sei se o cadáver do homem negro no piso do Carrefour tinha mais ou menos do que sete arrobas. Mas posso afirmar que o peso dele foi e será considerado inexistente. Afinal, a sociedade brasileira dos homens brancos e de bem ainda não é capaz de sentir o fardo dos crimes que ela mesmo inspira.

Fábio de Oliveira Ribeiro

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