A significação da defesa da família pelo filme Mama Colonel, por Stella Jimenez

Podemos reconhecer essa exaltação da família e de seus valores em todos os governos autoritários e conservadores, quando não claramente fascistas

Foto: Reprodução

Uma reflexão a partir do filme Mama Colonel: A significação da defesa da família

Por Stella Jimenez

Ao ver o filme Mama Colonel,[1] que expõe diversas facetas da miséria humana, me detive a meditar num ponto aparentemente secundário. O Congo é apresentado como um país onde as instituições não funcionam: o Estado é inoperante, as leis não podem ser aplicadas à causa de diferentes desacordos jurídicos e nem sequer é possível contar com a solidariedade entre as pessoas.

Esta situação de anomia parece ser consequência direta da guerra entre Uganda e Ruanda, durante a qual ambos países invadiram o Congo, estupraram as mulheres, mataram e mutilaram os homens. Apesar do confronto ter acabado já fazia 15 anos no momento retratado no filme, os estragos continuam presentes e os habitantes se dividem entre os danificados e os que reclamam dos danificados, dizendo: isso aconteceu faz 15 anos, essas pessoas têm que continuar em frente.

Mas também as espoliações a que a África foi e é submetida por parte dos países dominantes têm responsabilidade sobre esta situação: escravidão colonialismo, neocolonialismo, saqueio de suas riquezas.

Neste canto do mundo abandonado à própria sorte aparece Colonel Hororine, uma mulher decidida a ajudar as crianças e as mulheres submetidas a toda classe de violência. Essa mulher era chamada de Mama, Mama Colonel. Por que não senhora Coronel, ou  Coronela? Poderia me limitar a pensar num apelido carinhoso, devido à forma carinhosa e firme com que ela vai resolvendo os problemas. À sua inegável vocação de mãe. Mas não é só isso. Estes apelativos familiares reaparecem cada vez que ela se dirige à comunidade. Ela diz “pais, mães, crianças” no lugar dos consabidos: senhoras e senhores, ou cidadãos e cidadãs, ou compatriotas, ou congolenses etc.

Sabemos, com Freud, que a psicologia individual é a mesma que a coletiva, e que, quando um sujeito está em perigo, a palavra que surge de sua boca é mãe.

Então, esse apelo aos significantes básicos da família não pode ser pensado como um chamado  ao núcleo social mais primitivo, na ausência das instituições que deveriam ser involucradas?

Também vemos no filme que, provisoriamente, um dos impasses é contornado unindo mães que perderam os filhos com filhos que ficaram sem mães.  Novamente, o apelo a uma solução pela via dos sentimentos familiares mais arcaicos.

Por outro lado, Freud nos adverte que, mesmo sendo a família o núcleo básico da sociedade, ela entra em tensão com organizações sociais mais elaboradas, as que representam o contrato social. A família tende à endogamia, enquanto as instituições abrem para horizontes mais amplos.

E lembro que, geralmente, os tiranos e os aspirantes a sê-lo, além de se referenciar em significantes da linhagem paterna (Deus, a pátria), invocam repetidamente a importância da família. Esta espécie de retrocesso ao núcleo básico da sociedade parece ser um prenúncio de que esse sujeito, esse aspirante a tirano, planeja se projetar como pai ou como irmão maior da sociedade, e prescindir das instituições. Podemos reconhecer essa exaltação da família e de seus valores em todos os governos autoritários e conservadores, quando não claramente fascistas.

Vemos, então, duas situações díspares nas quais coincide um  enaltecimento da família — de seus significantes, de seus afetos, de seus valores — com um apagamento das instituições. No caso do Congo, para tentar restabelecer os laços sociais a partir deste núcleo primário; no caso dos regimes totalitários, para justificar um poder vertical  tomando  a família como modelo.

Lacan nos fala disto na Proposição de 9 de outubro de 1967. Ele diz que as sociedades se organizam em conformidade com a topologia do plano projetivo. (Mais uma vez, a sociedade demonstra ter a mesma estrutura que os sujeitos.) O plano projetivo apresenta um ponto de fuga, um ponto fora de linha.

Surgem, nos ensina Lacan, facticidades.[2] “No simbólico, temos o mito edipiano”.[3] A psicanálise necessita desse mito e precisa tomar Freud (e Lacan, e Miller), no lugar do pai, porque sem estes pais corre-se o risco de cair em diferentes delírios. Lacan diz: “retire-se o Édipo, e a psicanálise em extensão , diria eu, torna-se inteiramente da alçada do delírio do presidente Schreber”.[4] Mas na organização social de um país, que necessita ser plural, que necessita entrar no jogo dos furos instaurados pelas diversas instituições, o que significa querer preencher o furo com o pai?

Hitler dizia que a família é o principal representante do povo.

Deus, Pátria e Família era o lema do integralismo, movimento fascista fundado por Plínio Salgado em 1932. Deus, Pátria e Família é o lema da Aliança pelo Brasil, partido lançado pelo presidente Jair Bolsonaro em 2019.

Estes dirigentes não querem a família só como núcleo primário da sociedade. Querem moldar a sociedade com a forma da família. Eles, claro, como pai (ou, poderia ser, como mãe). Uma sociedade como um “todo”, sem buracos, seguindo o que acham que deve ser o modelo familiar. Querem sociedades totalitárias.

Por isso, este tipo de dirigentes se ocupa de denunciar o que chamam “família disfuncional”, sem perceber que toda família funciona dessa maneira. Como querem uma sociedade tipo família sem furo, pretendem “normalizar” as famílias.[5]

Sempre que se pensa no nazismo, se lembra da facticidade da segregação, chamada por Lacan de facticidade real. Mas também estava presente a instrumentalização da facticidade simbólica para legitimar o lugar de Hitler como líder incontestável.

Claro que a família é importante! Mas é preciso ter consciência de que entre as famílias e seus líderes deve ser preservado um rico tecido social de instituições que se limitam uma às outras, que se furam entre elas, e que jamais se equilibram.

Já sabemos dos perigos do dirigente que fica invocando Deus. Mas podemos ver também o perigo daquele que se erige em defensor da família.

[1] Filme recém-lançado no Brasil, (direção: Dieudo Hamadi, Congo/ França).

[2] Elementos fictícios que simulam  tamponar a fuga,, e fazer aparecer um conjunto aberto como um conjunto fechado.

[3] Lacan, J. Proposição de 9 de outubro de 1967. InOutros escritos. Rio de janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003, p. 261.

[4] Idem, p. 262.

[5] Claro que não só por isso querem “normalizar” as famílias, Também estão presentes o medo e a intolerância às diferenças.

Redação

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