Qual a conexão entre o declínio da Teologia da Libertação e a ascensão dos grupos de extrema direita no Brasil? É fácil identificar o elo entre estes dois fatos observando o caso do estado do Rio de Janeiro. Basta ver que foi lá que o Presidente Bolsonaro galgou a sua ascensão política como deputado federal antes de chegar à presidência, que o prefeito carioca é um bispo da Igreja Universal e o governador em exercício é um cantor gospel oriundo da Renovação Carismática Católica. A Arquidiocese do Rio de Janeiro nunca apoiou a Teologia da Libertação como aconteceu em outras dioceses e arquidioceses brasileiras, abrindo um vazio nas periferias que foi tomado por grupos religiosos conservadores e que teve como resultado a perda de fiéis para as igrejas neopentecostais. Várias lideranças destas novas denominações estão envolvidas com políticos da extrema direita, utilizando um discurso moralista para ganhar votos para seus aliados. O mesmo fenômeno não aconteceu de forma tão drástica onde a Igreja Católica manteve e ainda mantém uma presença nas lutas diárias do povo, a exemplo de vários estados do Norte e do Nordeste ou em certas áreas da periferia da cidade de São Paulo.
Há 50 anos o padre belga José Comblin (1923-2011) lançou o seu livro Théologie de la Révolution. No ano seguinte seria lançado o livro seminal Teología de la liberación pelo padre peruano Gustavo Gutiérrez. Alguns teólogos e teólogas protestantes também publicaram livros na mesma linha naquele mesmo período. Um planeta que se urbanizava e uma juventude que clamava por mudanças (clamor que explodiria no final dos anos sessenta), pedia novas reflexões sobre o pensar teológico e o papel das igrejas em um mundo que se reconfigurava religiosa e politicamente. No meio de todas estas mudanças, uma pergunta começava a circular no meio religioso da América Latina: Por que o continente com o maior número de cristãos é tão desigual economicamente? Se somos todos irmãos e irmãs como pregam as igrejas, há algo que não está sendo bem equacionado nesta irmandade supostamente de iguais, concluíam muitos dos que se aprofundaram neste questionamento.
Os protagonistas das ações de caridade da Igreja Católica não questionavam o que levava a milhões de pessoas a dependerem dos seus hospitais, escolas, orfanatos e casas de assistência com distribuição de comida. Aos poucos, isso foi mudando. No Brasil, por exemplo, um bispo começou a pensar diferente e criar inimigos dentro da elite carioca, cidade onde exercia o cargo de bispo auxiliar. O cearense dom Helder Câmara, sob certa influência do advogado católico Sobral Pinto e da Ação Católica da França, começou a mudar as opiniões integralistas que carregava desde a juventude. Além de ajudar a organizar a Ação Católica no Brasil, dom Helder repensou o seu papel como prelado na sociedade e como o seu poder poderia ajudar aos mais pobres. Este primeiro momento ainda estava no limite da caridade, mas já incomodava muitos fiéis católicos ricos da capital fluminense. Com a sua mudança para a cidade do Recife, que coincidiu com o início da ditadura civil-militar, as suas posições se direcionaram para a oposição ao regime autoritário com a denúncia sobre as arbitrariedades cometidas pela ditadura contra as prisioneiras e os prisioneiros políticos (não importando para ele se eram crentes ou ateus) e a luta por justiça social. Não à toa, dom Helder é o Patrono Brasileiro dos Direitos Humanos.
Quanto as outras igrejas, o vento também começava a soprar em direções diferentes. Em 1962, aconteceu na cidade do Recife o encontro Cristo e o Processo RevolucionárioBrasileiro, patrocinado por algumas Igrejas Protestantes. Influenciados por teólogos e teólogas de suas igrejas irmãs na Europa e nos Estados Unidos, estas instituições tinham fiéis que também vinham questionando a desigualdade entre os brasileiros. Alguns deles começaram, inclusive, a despontar como lideranças no campo das lutas sociais, como o presbiteriano João Pedro Teixeira, líder das Ligas Camponesas na Paraíba que seria assassinado em 1962 por causa de sua luta por reforma agrária.
Não há dúvida de que sem a Teologia da Libertação o processo de repressão durante a ditadura civil-militar teria sido ainda pior. O compromisso de parte da hierarquia contra o regime ditatorial surpreendeu os militares que não perceberam a profundidade das novas ideias que estavam sendo semeadas desde a década anterior. Um dos resultados da oposição à ditadura foi o projeto Brasil: nunca mais, liderado pelo cardeal de São Paulo, dom Paulo Evaristo Arns, pelo Rabino Henry Sobel e pelo Pastor Presbiteriano Jaime Wright. Juntos, eles lideraram uma equipe que produziu um relatório com denúncias sobre o que estava acontecendo nas prisões brasileiras com torturas, desaparecimentos e várias outras formas de repressão aos opositores dos militares. O relatório foi muito importante para documentar a opressão sofrida pelas vítimas.
Nos anos setenta as comunidades religiosas começaram a sair dos conventos e dos seminários. Esta ida para o mundo externo resultou no fortalecimento das Comunidade Eclesiais de Base, as famosas CEBs. Elas reuniam milhões de pessoas em pequenos grupos para a leitura e reflexão da Bíblia à luz da realidade social em que seus participantes viviam e isso proporcionou a formação do senso crítico sobre as opressões sofridas no mundo rural e nas periferias das grandes cidades de um número incontável de pessoas. Não fosse pelas CEBs, elas talvez nunca tivessem como receber toda aquela formação política. Era um lugar onde as pessoas podiam opinar sobre os problemas das comunidades onde viviam. Assumiam cargos nas coordenações e direções de diversas pastorais e, para a maioria, era a primeira vez que tinham os seus talentos para a liderança reconhecidos. De certa maneira, a Teologia da Libertação é uma Teologia da Prosperidade. Porém, não a prosperidade do Ter, mas sim a prosperidade do Ser de forma integral. As pessoas se sentiam reconhecidas como seres humanos e não apenas como mão de obra. Lá elas eram pessoas inteiras e não apenas donas de casa, trabalhadores da construção, empacotadeiras, desempregados, cortadores de cana ou empregadas domésticas. Nas CEBs esses trabalhadores e trabalhadoras se tornavam artistas, lideranças comunitárias, aprendiam sobre os seus direitos e algumas destas pessoas desembocaram na luta política partidária por perceberem que o poder institucional também lhes pertencia.
Os resultados positivos são imensuráveis para a população brasileira. Foi nas CEBs que surgiram muitas lutas que germinaram em movimentos sociais e que resultaram em ganhos concretos. Também não há dúvida de que não teríamos uma onda de governos progressistas nas últimas décadas com as vitórias dos candidatos Lula (Brasil), Rafael Correia (Equador), Fernando Lugo (Paraguai), Evo Morales (Bolívia) e Jean-Bertrand Aristide (Haiti) sem a influência desta corrente teológica. Ela também influenciou religiões não cristãs como podemos ver pela corrente do Budismo Engajado e os grupos mulçumanos na Europa e nos Estados Unidos preocupados com as liberdades individuais e o meio ambiente.
Tamanha influência da Teologia da Libertação começou a chamar a atenção ainda no final dos anos sessenta. Otto Maduro conta em seu livro Religião e luta de classes, como órgãos e governos internacionais de direita financiaram estudos sobre a movimentação de algumas lideranças das igrejas na América Latina por já estarem preocupados com o discurso anticapitalista que começava a permear as pregações religiosas. Claro que o ataque viria em algum momento. A partir dos anos setenta, as acusações na grande mídia contra as lideranças pró-Teologia da Libertação começaram a tomar as páginas dos jornais e das revistas de alcance nacional. Nos anos oitenta, os ataques se intensificaram até que, na década de noventa, esta corrente começou a sofrer a perda de influência nas igrejas como resultado da chegada ao poder de lideranças conservadoras. A Teologia da Libertação sempre foi um empecilho para os grupos opressores porque possibilitava a formação política das pessoas oprimidas e isso podia impedir que esses grupos permanecessem no poder que gozam até hoje. Claro que nem tudo era perfeito. A centralização de poder nas CEBs por parte de alguns ou o aproveitamento político por parte de outros fez parte da jornada dos grupos. Mesmo a ideia repetida por alguns líderes religiosos de que eram “a voz de quem não têm voz”, frase muito difundida durante o auge da Teologia da Libertação, mostra uma certa soberba perante os mais pobres, pois eles têm a sua voz, mas esta não é levada em conta. Somando estas e outras questões, isto não diminui em nada a sua importância.
É óbvio que não defendo o retorno da Teologia da Libertação na forma e no conteúdo das décadas passadas. A realidade é outra e novos pensamentos teológicos libertadores reverberaram em teologias focadas em certos grupos oprimidos, fazendo brotar a Teologia Indígena, Teologia Queer, Teologia Negra e as Teologias Feminista e Ecofeminista, por exemplo. Estes grupos foram buscando respostas às suas indagações e criaram as suas próprias reflexões e ações e isso só enriquece as possibilidades de avanços positivos para as pessoas oprimidas.
Os territórios periféricos e invibilizados ainda sofrem com a perda dos direitos humanos fundamentais enquanto algumas lideranças religiosas conservadoras destes locais se comprometem, conscientemente ou não, com políticos que só farão estes direitos mais distantes das populações que lá vivem. A Teologia da Libertação mostrou que a não negação da fé é elemento importantíssima para a conscientização das pessoas oprimidas em nosso continente por ser parte inerente da vida cotidiana do seu povo. Não podemos deixar este espaço vazio por mais tempo ou as consequências de termos as religiões sequestradas pela extrema direita serão desastrosas.
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Finalmente uma análise lúcida sobre o crescimento do pentecostalismo nas periferias. Muita gente desonesta relaciona isso com o suposto abandono das bases pelo PT. Só esquecem de dizer que partido não substitui religião.