
Bem-vindo ao Time, André
por Fernando Nogueira da Costa
O que seria a Economia sem as hipóteses? Contabilidade.
Um economista é um profissional pago para adivinhar coisas erradas sobre o futuro da atividade econômico-financeira. Contabilidade é uma Ciência Aplicada sem abstração.
Ela registra os dados do passado ao presente. Os economistas fazem uma média dos dados passados e a extrapolam para o futuro porque, afinal, por definição, não existem “dados do futuro”.
Se o presente estiver acima ou abaixo dela, prognosticam a reversão. Se estiver flutuando em torno dela, esperam “o cenário andar de lado”…
A equação fundamental da Contabilidade é escrita na forma A=P+PL , ou seja, o total de ativos (A) sempre é igual à soma do total de passivos (P) com o patrimônio líquido (PL). A diferença entre as formas de manutenção de riqueza (A) e as dívidas (P), contratadas para a adquirir, constitui o patrimônio líquido (PL).
Ela tem como principal objeto de estudo o patrimônio, seus fenômenos e variações, registrando os fatos e os atos de natureza econômico-financeira causadores de consequências na dinâmica financeira. Em suma, a Contabilidade mede a riqueza (patrimônio) e a sua evolução a fim de permitir planejamento e controle adequados.
A escrituração, consistente em efetuar, de forma sistematizada, os registros das ocorrências influenciadoras da evolução patrimonial, leva em consideração a ordem cronológica de todos os acontecimentos. A técnica contábil da escrituração é baseada em documentos comprobatórios, ou seja, todos os acontecimentos escriturados devem corresponder a documentos legalizados, comprovantes da veracidade por auditorias.
Jornal GGN produzirá documentário sobre esquemas da ultradireita mundial e ameaça eleitoral. Saiba aqui como apoiar
Fibonacci, também conhecido como Leonardo de Pisa (1170-1250), se destacou ao escrever o Liber Abaci, em 1202, a primeira obra importante sobre Matemática desde Eratóstenes, há mais de mil anos. Introduziu os numerais hindu-arábicos na Europa.
Este Livro de Cálculos propiciou o conceito do valor presente, ou seja, o valor atual do fluxo de receitas futuras, descontado de juros. É comparado com esse custo de oportunidade do dinheiro para avaliar a viabilidade do projeto do tomador de crédito.
Fibonacci também mostrou como o sistema decimal poderia ser aplicado à contabilidade comercial, à conversão de moedas e, crucialmente, ao cálculo dos juros. Isso significou a aplicação da Matemática para ganhar dinheiro e, em particular, para emprestar dinheiro, de maneira justa e honesta, sem usura dos agiotas.
A ascensão de banqueiros, desse modo, foi uma história de contabilidade meticulosa. Eles não usavam ainda o método da entrada dupla contábil (“partidas dobradas”), embora já fizessem os primeiros balanços patrimoniais, com reservas e depósitos corretamente arrumados de um lado com compromissos financeiros, dívidas (ou vostro), e empréstimos para clientes ou notas comerciais do outro lado com o total dos direitos (ou nostro), respectivamente, dever e haver – a ver se recebe…
Os banqueiros não inventaram essas técnicas, mas as aplicaram em escala e diversificação de negócios como anteriormente jamais vista em rede social. Após o século XV, iniciou-se a consolidação secular de um sistema bancário antes emergente.
Nesse mesmo sentido de resgate de lições da História, de maneira conceitual, André Lara Resende, no seu livro recém-lançado, Camisa de Força Ideológica (Portfolio-Penguin; Edição do Kindle; 2022) dá uma contribuição inovadora – e heterodoxa! Por isso, André, seja bem-vindo ao time dos economistas marginalizados na Era Neoliberal!
Para ele, a contabilidade de direitos sobre o excedente (valor adicionado) dá origem à moeda. A moeda é o registro de direitos na Autoridade Central, aceito para quitar obrigações tributárias (p. 22).
Moeda, em geral, é vista como um ativo normalmente oferecido ou recebido por compra ou venda. Lara Resende destaca a moeda ser aquilo recebido pelo Estado como pagamento de imposto.
Por precisão, eu a distingo do dinheiro. Este é o ativo monetário, criado pelas forças do mercado e/ou pelo poder do Estado, com aceitação geral – legal e social –, para desempenhar todas suas funções clássicas.
Afirmo: “todo dinheiro é moeda, mas nem toda moeda é dinheiro”. Um ativo com o atributo de plena liquidez tal como a moeda oficial atende à condição necessária, porém não suficiente, para ser dinheiro.
Para tanto, a moeda tem de cumprir, simultaneamente, todas as três funções básicas: reserva de valor, unidade de conta e meio de pagamento. Só o dinheiro as cumpre. Somente cumprindo uma ou duas, é denominada de “dinheiro parcial”.
Por isso, em regime de alta inflação, a tendência é de desaparecimento do dinheiro e de surgimento de várias formas de moedas. A moeda oficial atua como meio de pagamento e, no máximo, como unidade de conta. A moeda indexada torna-se padrão contratual, assim como a moeda estrangeira passa a ser a reserva de valor preferida.
Quando a “dolarização” atinge até o denominador comum das relações de troca, a ameaça de hiperinflação se torna presente. Isto porque os preços em moeda nacional passam a crescer em função da disparada da cotação da moeda estrangeira, cuja aquisição é o meio de fuga de capitais.
O dólar cumpre a função de reserva de valor e até unidade conta. Mas ao ser convertido na moeda de curso forçado, para fazer os pagamentos contratuais, oficial e juridicamente, inclusive de impostos, dispara o índice de preços cotados nesta moeda.
Lara Resende alerta quanto ao arbítrio: “o registro contábil dos haveres e deveres, da riqueza da sociedade, nas mãos do Estado, corre sempre o risco de favorecer alguns e desfavorecer outros. O controle do sistema de contabilidade da sociedade é um poder extraordinário”.
Devido ao fato de o Estado ser, simultaneamente, o administrador da contabilidade, o custodiante e o liquidante dos haveres e deveres da economia lhe dá “a condição excepcional de credor primário” (p.23).
No entanto, adverte, “o Estado só pode criar poder aquisitivo, sem pôr em risco o sistema de contabilidade da sociedade, quando há recursos passíveis de serem mobilizados para o aumento da produção de bens e serviços. Tais recursos podem advir tanto da capacidade instalada, mas ociosa por insuficiência de demanda, quanto da capacidade potencial — mão de obra, equipamentos, tecnologia científica e organizacional —, incapaz de ser mobilizada por falta de crédito”.
Jornal GGN produzirá documentário sobre esquemas da ultradireita mundial e ameaça eleitoral. Saiba aqui como apoiar
O primeiro caso, o da capacidade instalada ociosa, quando o Estado pode atuar de forma anticíclica, criando poder de compra para estimular a economia, é o defendido por keynesianos. O segundo caso, o da capacidade potencial não efetivada, no qual o Estado deve atuar como credor, mobilizador e viabilizador das potencialidades do crescimento de longo prazo, é o defendido por neoschumpeterianos e pós-keynesianos.
Esses economistas heterodoxos defendem, como o André, “toda a produtividade, a capacidade de produzir bens e serviços, advém da sociedade, da ação conjunta do setor privado e do Estado. A expansão do crédito pelo Estado, como todo crédito, por si só nada cria, mas viabiliza a materialização da produtividade da sociedade”.
Sem investimento e aumento da capacidade de produzir, a expansão do crédito se transforma em pressão sobre os preços de bens e serviços, ou na hipertrofia de ativos e passivos. No primeiro caso, tem-se a inflação corrente de bens e serviços. No segundo, a inflação de ativos.
Esta “inflação financeira” não corresponde a um enriquecimento efetivo, embora provoque um aumento dos direitos financeiros. Mas, caso não corresponda a um aumento real do valor adicionado, não passa de mera ilusão monetária ou nominal.
Nesse ponto eu faria um pequeno reparo no raciocínio de Lara Resende. Argumenta “porque o acúmulo de direitos financeiros está concentrado em quem não tem necessidades imediatas de consumo não atendidas, a inflação financeira não pressiona a capacidade produtiva, nem corre o risco de provocar inflação de bens e serviços”.
Em caso de a inflação de ativos corresponder à supervalorização da moeda estrangeira, em um país periférico como a Argentina, por exemplo, contamina sim a inflação corrente pelo motivo antes exposto. Devido à dolarização, a inflação está lá disparada.
André reconhece: “levada ao paroxismo, no entanto, provoca o descolamento dos direitos financeiros da capacidade de produção. Termina por desmoralizar e abalar o sistema de contabilidade da sociedade. Em estágios avançados, pode levar ao descrédito do Estado, à desmoralização institucional e à hiperinflação” (p. 25-26).
Voltarei, em outros artigos, a explorar as ideias heterodoxas de André Lara-Resende. Contribuem para o debate público brasileiro. Recomendo a leitura do seu excelente (e sintético) livro crítico da Camisa de Força Ideológica.
Fernando Nogueira da Costa – Professor Titular do IE-UNICAMP. Autor do livro digital “Liberalismo versus Esquerdismo” (2022). Baixe em “Obras (Quase) Completas”: http://fernandonogueiracosta.wordpress.com/ E-mail: [email protected].
O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected].
Leia também:
Juro e Interesse, por Fernando Nogueira da Costa
Quem quer ser Bi Milionário?, por Fernando Nogueira da Costa
Capitalismo à Brasileira, por Fernando Nogueira da Costa
Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.
Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.
Muito interessante essa matéria. Temos, angélica Vasconcelos e eu, um artigo pronto sobre a questão da contabilidade x economia.