Aldo Fornazieri
Cientista político e professor da Fundação Escola de Sociologia e Política.
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Bolsonaro e o despotismo na democracia, por Aldo Fornazieri

O que se vê hoje nos governos e nos líderes da extrema-direita é uma defesa da forma da democracia enquanto agem para esvaziar o seu conteúdo.

Foto The Guardian

Bolsonaro e o despotismo na democracia

por Aldo Fornazieri

Uma das formas mais comuns de cometer erros na ação política consiste em errar nos diagnósticos, nas avaliações de conjuntura. Na sua essência, a política consiste numa atividade orientada para a conquista do poder ou para influenciar o exercício do poder. Não há política sem comando, sem liderança, pois se trata de uma atividade que visa conferir direção e sentido ao curso dos acontecimentos humanos no tempo. Os erros de avaliação se traduzem em erros estratégicos e táticos, o que implica na perda da capacidade de conferir direção e sentido ao curso dos acontecimentos. Geralmente, as forças políticas que cometem esses erros terminam por assumir posições defensivas e mergulham na apatia, na incapacidade de agir, de organizar e de mobilizar. Este é o quadro sinótico da situação das oposições ao governo Bolsonaro.

As oposições não conseguiram fazer nem avaliações sérias e profundas das razões que levaram à vitória de Bolsonaro e nem conseguiram fazer um diagnóstico preciso da natureza do seu governo. A avaliação inicial de alguns partidos e analistas consistia em apontar que o Brasil estava caminhando para a constituição de um governo fascista. Trata-se de um claro equívoco. O que caracteriza o fascismo consiste na existência de um movimento fascista que usa a violência política sistemática para a conquista ou manutenção do poder. Nem o PSL é tal movimento e o que se convenciona chamar de bolsonarismo é um conjunto de grupos e indivíduos informes. O fato de Bolsonaro esposar algumas ideias fascistas não autoriza a conclusão de que se está diante de um governo fascista.

Outra tese equivocada que circula em várias análises é a de que o governo Bolsonaro se encaminha para uma ditadura de tipo militar. Não há nenhuma evidência, nenhum fato, nenhum movimento que respalde tais avaliações. Nem há disposição ou inclinação no alto comando das Forças Armadas no sentido de avalizar tal aventura. Não é disto que se trata, evidentemente.

Os próprios líderes da extrema-direita, em vários países, vêm proferindo discursos em defesa da democracia e denunciam como riscos potenciais à mesma os partidos e líderes de esquerda, o socialismo, o comunismo, Cuba, Venezuela etc. Foi isto que Bolsonaro fez com seu discurso na ONU. Onde a extrema-direita governa, aparentemente, não há ameaças de interrupção dos processos eleitorais.

Como as oposições se perderam nas avaliações, não conseguem se achar na ação. Passados nove meses desde o início do governo elas não sabem ainda qual frente formar, em que frente participar, se formam uma frente e qual a forma da frente. Muitas das avaliações davam pouco tempo de vida a Bolsonaro na presidência. Ele seria substituído polo vice. O governo já teria acabado nos dois ou três primeiros meses. A reforma da Previdência não seria aprovada e por aí vai.

Então, o que se vê hoje nos governos e nos líderes da extrema-direita é uma defesa da forma da democracia enquanto agem para esvaziar o seu conteúdo. Na medida em que o conteúdo da democracia já vinha sendo esvaziado por governos de centro e de centro-esquerda, a centro-direita teve seu caminho facilitado e decidiu percorrê-lo sem as sutilizas e boa educação dos governantes de punho de renda. A extrema-direita decidiu agir de forma mais grotesca e grosseira, sem as boas maneiras, sem os discursos politicamente corretos, sem as mediações das velhas instituições democráticas decadentes e corrompidas.

Os governantes da extrema-direita, ao colocarem o enferrujado sistema de mediações num segundo plano, decidiram agir como bonapartistas digitais, estabelecendo uma relação direta com o eleitorado, com o povo, atacando os parlamentos e a mídia tradicional. Trump e Bolsonaro são dois típicos bonapartistas digitais.

O Brasil, a rigor, nunca teve uma democracia efetiva pelos critérios clássicos de sua definição. Alexis de Tocqueville, no seu clássico “A Democracia na América”, identificou a igualdade como o principal de distintivo valor da democracia. Igualdade nos vários aspectos: perante a lei, igualdade de oportunidades, igualdade como senso reduzido das diferenças, igualdade como equidade etc. Este sempre foi o grande problema da democracia brasileira.

A extrema-direita age para esvaziar o conteúdo da democracia nos seguintes pontos: aumentando as desigualdades, reduzindo os direitos sociais e trabalhistas, atacando direitos de liberdade e direitos de minorias, estabelecendo aparelhamento e intromissão nos sistemas de controle do Estado, esvaziando os sistemas de controle e de participação popular a exemplo dos conselhos participativos, atacando a legitimidade das ciências e das universidades em nome de valores conservadores, agredindo manifestações cultuais humanistas e universalistas em nome de um nacionalismo tanto xenófobo quanto falso e assim por diante. Em suas ações de esvaziamento do conteúdo da democracia os governos de extrema-direita contam com o concurso ora do Judiciário, ora do Legislativo.

Com a democracia esvaziada em seu conteúdo, esses governantes agem como déspotas. A possível existência de um despotismo na democracia, ao que se saiba, foi cogitada, antes de todos, por Tocqueville ao elencar os possíveis males em que poderiam incorrer a democracia e a igualdade. A mediação do poder central sem corpos intermediários era apontada por ele como uma das características principais do despotismo na democracia. De fato, Bolsonaro não esvaziou apenas os conselhos participativos, mas bloqueou a participação de todas as instituições da sociedade civil – dos sindicatos às ONGs passando por instituições tradicionais como a OAB, a CNBB etc.. A sociedade civil brasileira sempre foi gelatinosa. Agora está liquefeita, amorfa.

Sem organizações ativas e sem mobilizações, as pessoas permanecem isoladas, mergulhadas na sua própria solidão, sem potência para lutar. O capitalismo anárquico pós-moderno, constituído por multidões de indivíduos todos estranhos uns aos outros, favorece o despotismo na democracia. Tocqueville afirma que esse despotismo não é tão violento como o antigo. É mais suave, mas mais extenso: “degrada os homens sem atormentá-los”. É mais de tutores do que de tiranos. Mas esses tutores querem fazer valer sua vontade absoluta.

Para combater o mal do despotismo, Tocqueville aponta para algumas saídas. O exercício da liberdade política. A liberdade política não é algo que deve estar apenas garantido nas leis. Não há liberdade política sem atividade, sem participação e sem mobilização dos cidadãos. Existem duas formas para fazer isto: 1) pela participação no poder local, como municípios, bairros, prefeituras regionais etc., 2) pela participação nas entidades da sociedade civil como sindicatos, associações culturais, de bairro, organizações de vários tipos, partidos políticos.

No Brasil, as duas coisas vão mal. Não há uma tradição de participação e de controle no poder local. Este também é um poder esvaziado em face da hipercentralização do poder no plano federal. Por outro lado, como se disse, a sociedade civil sempre foi gelatinosa. Boa parte das organizações e associações que existem são aparelhadas por interesses de pequenos grupos. Os partidos estão sequestrados por burocracias incompetentes que defendem privilégios, tanto os seus quanto os privilégios incrustrados no Estado brasileiro. Somente a juventude, com novos movimentos, com novas bandeiras, com novas lutas, pode romper este sistema passivo, omisso e conivente com o capitalismo predatório vigente no Brasil.

Aldo Fornazieri – Professor da Escola de Sociologia e Política (FESPSP).

Aldo Fornazieri

Cientista político e professor da Fundação Escola de Sociologia e Política.

7 Comentários

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  1. O professor Aldo diz que o governo Bolsonaro não é fascista. Mas me parece que é o retrato mais acabado do que seja um governo fascista. Penso que o equívoco de avaliação é quanto ao povo: o governo é fascista, mas o povo não. Muita gente na esquerda entrou na furada de ficar maldizendo o povo, que o povo é fascista, que o povo é burro, mas esse pessoal não percebeu que nem mesmo na eleição Jair Bolsonaro foi maioria absoluta. Ora do total de eleitores, ele só recebeu 39% dos votos, o que representa 25% da população. Isto é, 75% da população brasileira nem sequer votou nesse sujeito.

    Outra coisa, tem militar até dizer chega, os caras estão botando militares em qualquer cargo, e o professor Aldo se esquiva da realidade para se refugiar em Tocqueville, um grande teórico, é verdade, mas que não responde exatamente aos problemas de nosso tempo.

  2. “Vamos, não chores
    A infância esta perdida
    A mocidade esta perdida
    Mas a vida não se perdeu…”

    Ao terminar de ler o artigo do professor Aldo, me ocorreu o poema Consolo na Praia de Carlos… Então, não somos fracassados? Não veremos Pais nenhum? Em nove meses de um governo fascistoide, não fomos capazes de criar um frente? Uma frente ampla, solida, que discuta sobriamente, seriamente, claramente as propostas do atual governo e aponte suas perversidades. Não temos frente de centro, de esquerda, progressista, nacionalista e eles continuam aterrorizando os marginalizados, a esquerda, os LGBTIs, os exlcuidos, negros e mestiços. O poema de Drummond termina assim:
    “A injustiça não se resolve.
    À sombra do mundo errado
    murmuraste um protesto tímido.
    Mas virão outros.”
    Virão?

  3. Os avanços contra a ordem democrática estão em flanco crescimento, não há como duvidar dessa máxima, até porque, o atual governo e a sua camarilha, age protegido por forças que se apropriam do poder de forma lenta, constante e subreptícia, tomando tudo de forma flagrantemente ilegal, porém oferecendo contornos de legalidade; é o que ocorre com o empoderamento do garimpo clandestino, da grilagem em terras demarcadas, da desordem praticada por agricultores ao atearem fogo em florestas e agredirem o bioma Amazônico, tudo isso sem qualquer resposta governamental. De outro lado, tem-se, ainda, por parte da Presidência da República a associação à marginalidade, quer por atos tendentes a fazer crescer o domínio das milícias, quer por ações tendentes a fomentar atos misóginos, homofóbicos, racistas etc. Então, mesmo que concorde com o Sr. Aldo Fornazieri quanto à corrosão da democracia por dentro, gostaria de dizer que a questão do facismo é tão clara quanto a água da nascente, pois, se de um lado inexiste atos clássicos de violência, de outro temos o uso da máquina pública destinada a destroçar a teia existente em que ali se encontrava preso e organizado diversos movimentos sociais, principalmente em relação aos conselhos, de igual modo é impossível não dizer que o corte do orçamento imposto a saúde, educação, cultura, não se trata de atos de violência. Desta forma, “data maxima venia”, a violência é pratica todos os dias, sem que seja possível frena-la devido a desarticulação imposta pela precarização do trabalho, diante de uma população estarrecida e em claro desalento, frente a imposição de atos tendentes ao enfraquecer os sindicados, e por ai vai. Assim, entendo mal empregada a expressão gelatinosa ao tentar definir a sociedade, pois, a sociedade atual está sangrando diante de atos de violência e, ao chegar a hora, o levante acontecerá.

  4. O professor Aldo Fornazieri se supera cada dia nas suas análises.
    Parece que o professor não estudou história, pois não tem a mínima noção de como é estabelecido um governo fascista, ele acha que tanto Mussolini como Hitler chegaram ao poder e no outro dia foi instituído o Estado Fascista, este é um dos problemas de alguns sociólogos, não interpretam a dinâmica dos movimentos e terminam analisando somente os fatos do dia. Isto pode ser jornalismo de baixo nível, mas nunca história e sociologia.
    Talvez devido as suas imensas contradições e sua total inabilidade com a palavra, diferentemente do Duce e do Führer que eram grandes oradores e tinham uma carga intelectual bem maior do que o nosso Mito, ele não consiga chegar a completar o ciclo e atingir um governo de Estado Totalitário, porém a vontade e um discurso canhestro nesta direção foi lançado há muito tempo.
    A interrogação sobre o governo Bolsonaro ser ou não um governo fascista, a resposta é claramente negativa para uma esquerda que tenha uma base mínima de conhecimento da história. Porém a intensão expressa pelo Mito (variável subdesenvolvida do Duce ou do Führer) é de ir exatamente nesta direção é clara e inequívoca, ele já expressou em dezenas de momentos com todas as palavras a vontade de acabar literalmente com a oposição ao seu modo de pensar, a vontade inclusive de matar toda a sua oposição isso foi feito com palavras exatas e não por meios indiretos. Ele é adepto de um sistema militarizado e repressor. Seus adeptos mais próximos simplesmente têm exatamente a mesma base conceitual.
    Com o citado anteriormente fica claro:
    1) Que Bolsonaro deseja um governo de pensamento único, a principal característica de um sistema fascista (Estado Totalitário segundo a definição clara de Mussolini).
    2) Que ele venera qualquer ato de força (tortura, morte ou intimidações) contra seus adversários.
    3) Que (1) e (2) não ocorreram e talvez não ocorram não é por falta de vontade, mas sim de capacidade.
    Com tudo isto ficar tergiversando com a existência atual de um governo fascista é um verdadeiro desserviço não só a nossa situação política, mas como também a uma análise da evolução do fascismo.

  5. Bolsonaro usou e usa essa montanha de generais de pijama que não comandam mais ninguém como pano de fundo para assustar as oposições e tem funcionado a ponta de estarem sem ação alguma. Governa pelo medo e tem funcionado muito bem. Tenho dito que as eleições municipais serão o teste para iniciar um freamentos ao arbítrio, se não funcionar estará aberto o caminho para perdermos outra eleição e será o caos.

  6. -> Somente a juventude, com novos movimentos, com novas bandeiras, com novas lutas, pode romper este sistema passivo, omisso e conivente com o capitalismo predatório vigente no Brasil.

    é sempre a juventude quem sai na frente nos processos de mudança. foi assim em 1977, marcando o início do fim da Ditadura Empresarial-Militar (1964/1989).

    só que isto não deixa de ser um atestado de óbito para a Ex-querda e todas sua lideranças atuais.

    por isto mesmo, é preciso deixar os mortos enterrarem os seus mortos… e seguir em frente.

    afinal, juventude não é apenas questão cronológica. e sim muito mais de postura: física, emocional, mental e espiritual.

    ainda há tempo para rejuvenescer? esta se tornou a questão decisiva para todos nós.
    .

  7. Como pode haver democracia substantiva num país tão desigual? Muito menos república com tanto privilégio e corrupção. Sonho com uma revolução republicana, afinal sem um pouco de utopia não se veve, me desculpem os maquiavelianos. Me abstenho do debate sobre o grau de fascismo agregado ao governo, por falta de conhecimento sociológico e histórico sobre estas pragas. Mas a história não se repete e o que ocorre aqui talvez não possa ser medido com métricas passadas. Concordo com a crise das esquerdas que caminha junto com a crise da teoria, mas trata-se de um fenômeno mundial. Parece que a civilização foi sugada pela entropia em direção ao caos, mas este já é outro assunto.

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