Carreatas cínicas, por Thiago Antônio de Oliveira Sá

A parcela não hipnotizada da população se perguntou, em coro: ora, se não há o que temer, por que uma carreata e não uma passeata?

Carreatas cínicas

por Thiago Antônio de Oliveira Sá

Numa queda de braços com o Ministério da Saúde, com a Organização Mundial de Saúde e com o bom senso, o incontaminável presidente, no delivery do serviço sujo aos donos do país, encorajou a reabertura do comércio e dos serviços, furando, portanto, a quarentena. 

Usando de seu costumeiro e rasteiro populismo, saiu às ruas do DF para “provar sua tese”. Não se espera algo diferente de um chefe de Estado que distribui bananas à sua claque por um comediante alugado e que pontua que rolar no esgoto não surte efeito, diferentemente dos vidros de casas lotéricas. Casas lotéricas, aliás, lotadas, nas quais pessoas aglomeradas apostavam. A própria vida, inclusive. 

Suas milícias digitais não perderam tempo: convocaram carreatas pelo retorno ao trabalho em várias cidades do país, embora sem muito sucesso, como se viu. 

A parcela não hipnotizada da população se perguntou, em coro: ora, se não há o que temer, por que uma carreata e não uma passeata? Posto que é só uma gripezinha e o país não pode parar (à revelia de caminhões transportando corpos), por que não uma passeata bonita, verde e amarela, com todo mundo partilhando causas, patriotismo, gotículas e suor? Convenhamos: seria “contagiante”; iria “viralizar”. 

Os vidros fechados dos veículos em comboio delatavam a hipocrisia dos seguidores do mito. Reconhecem os riscos letais, e deles se previnem; mas precisam fingir ignorá-los a fim de persuadir o lado mais fraco da corda a reassumir seus postos de trabalho, num retorno suicida. Vidros fechados eram a fronteira viral, mas também social. Canastrões não caem em seus próprios truques. É do ofício. 

O cinismo estava também na conjugação do verbo nas faixas: “queremos” trabalhar, eu “quero” trabalhar. Como se fosse uma aspiração geral, como se o país inteiro estivesse farto dessa suposta histeria. Pura desfaçatez. A conjugação correta é “queremos que VOCÊS trabalhem”. Que se percam vidas, não faturamento.   

Embora tenham sido um fiasco retumbante, um desfile esvaziado da estupidez, as carreatas não devem ser menosprezadas: revelam a faceta cínica da luta de classes. 

Thiago Antônio de Oliveira Sá é sociólogo, professor e doutor em Sociologia. 

Redação

5 Comentários

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  1. Impressionante a ingenuidade dos pobres de direita! Seguem os seus ricos patrões em seus carrões milionários, segregados por vidraças por onde eles olham os otários iludidos!

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