Cidadanias mutiladas: A luta LGBT+ no Brasil, por Luis Gustavo Reis

Por trás do arco-íris estampado nas bandeiras, existe um vermelho-sangue representado pelas centenas de homossexuais assassinados nos diferentes rincões deste país.

Cidadanias mutiladas: A luta LGBT+ no Brasil

por Luis Gustavo Reis

Por que é que, culturalmente, nós nos sentimos mais confortáveis vendo dois homens segurando armas do que dando as mãos?” — Ernest Gaines

Sem recorrer a eufemismos, a reflexão de Ernest Gaines escancara a barbárie ao questionar por que estamos mais habituados à violência do que ao amor. A frase dispensa complementos, mas vale outra indagação semelhante: por que o amor entre pessoas do mesmo sexo provoca incômodos e a morte de homossexuais e transgêneros indiferença?

Não é de hoje que o conceito de amor é relativizado para atender demandas específicas de parcelas da sociedade, condenando ao escárnio aquilo que é considerado “desvio de conduta”. A homossexualidade compõe esse rol de reprovações, milenarmente vilipendiada em diferentes sociedades, que serviram de referência para a banda ocidental do planeta.

A condenação aos homossexuais é notória nas diversas rotulações empregadas para descrever essa prática amorosa: doença, vadiagem, abominação, insolência, descaramento, transgressão à natureza, sodomia, pecado, frescura etc. Em diferentes períodos históricos, os homossexuais, amargaram os dissabores por ousarem amar pessoas do mesmo sexo: apedrejados, conforme versava a Lei Judaica; degolados desde 342 d.C. na cristandade governada pelo imperador Constantino; queimados vivos nas fogueiras da Inquisição durante a Idade Média; trucidados e humilhados pelos nazistas nos campos de concentração.

No Brasil, durante os 322 anos de Período Colonial, eram previstas leis que puniam severamente os chamados sodomitas. A pena incluía confisco de bens, encarceramento nas masmorras, açoite em praça pública e diversos outros tipos de violência. Os descalabros não cessaram na Colônia, invadiram o Império, prosseguiram durante a instauração da República e continuam a manchar a história brasileira, mesmo após três décadas de estabelecimento do “Estado Democrático de Direito”.

Em 1988, um clima festivo contagiou diferentes segmentos da população, entusiasmados com a promulgação da chamada “Constituição Cidadã”. Os objetivos do documento, conforme constam em seu preâmbulo, eram assegurar “o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos” para todos os cidadãos. Contudo, revelaram-se, na prática, uma garantia de direitos seletiva, com grupos visivelmente excluídos ou em situações evidentes de vulnerabilidade – marcados pelo descaso e ilegalidade–, como é o caso dos LGBT+.

Um relatório divulgado pelo Grupo Gay da Bahia (GGB) aponta que, em 2018, 420 lésbicas, gays, bissexuais e transexuais morreram no Brasil. Em outras palavras, conclui o estudo, significa dizer que a cada 20 horas um LGBT+ é assassinado ou se suicida vítima da “LGBTfobia”, o que classifica o país como campeão mundial desse tipo de crime. Considerando apenas as mortes, o relatório ainda destaca que os estados com maior número de suicídios e assassinatos de LGBT+ foram São Paulo (58), Minas Gerais (36), Bahia (35) e o Rio de Janeiro (32). Os menos violentos foram Amapá, que registrou 1 morte, e Roraima, Tocantins e Acre, com 2 cada.

Os dados são eloquentes, sobretudo num país onde cotidianamente repetem-se frases do tipo: “Viado tem mais é que morrer!”, “Viado bom é viado morto!”, “Prefiro ter um filho morto do que homossexual”, conforme pronunciou o presidente da República, Jair Bolsonaro.

Entre a opinião pública, há pessoas que alegam que a homofobia é uma farsa, tratando-se de uma invenção dos homossexuais para ganhar visibilidade. Cinicamente silenciam e fazem questão de não enxergar que o ódio aos LGBT+ não apenas existe, aqui e em diferentes países, como faz centenas de vítimas, e que, neste exato momento, há pessoas presas por serem gays, outras sendo executadas por serem lésbicas, além daquelas que estão sendo torturadas por serem transgêneras.

Uma semana após o Supremo Tribunal Federal (STF) decidir que a homofobia e a transfobia devem ser enquadradas na lei dos crimes de racismo, demanda negligenciada pelo Congresso desde 2006, acontece a 23º Parada do Orgulho LGBT de São Paulo, que relembra os 50 anos da Revolta de Stonewall. Cansados dos insultos e das frequentes abordagens truculentas da polícia, um grupo de lésbicas, gays, bissexuais e transexuais (LGBT) se revoltaram e partiram para o confronto aberto com policiais em um bar (Stonewall Inn) na cidade de Nova York (EUA), em julho de 1969. A revolta durou três dias e tornou-se o marco de diversas reinvindicações por direitos LGBT, tanto nos Estados Unidos como em outros países. Passado um ano do episódio, em 28 de junho de 1970, cerca de 10 mil pessoas participaram da primeira Parada do Orgulho de Nova York, em celebração à Revolta de Stonewall. Desde então, a Parada foi organizada em outras diferentes cidades do mundo, sucessivamente, até os dias de hoje.

No Brasil, os movimentos de luta dos homossexuais surgem no final dos anos 1970, encabeçados pelo Somos – Grupo de Afirmação Homossexual. No entanto, é somente na segunda metade dos anos 1990 que o movimento LGBT ganha corpo e passa a empreender ações de maior visibilidade. Em 1995, aconteceu no Rio de Janeiro a 17º conferência do ILGA (Associação Internacional de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Trans e Intersex) que terminou com um ato na praia de Copacabana. Dois anos mais tarde, ocorre a primeira Parada LGBT de São Paulo, onde cerca de 2 mil pessoas ocuparam a Avenida Paulista, no centro da cidade. Com o passar do tempo, o evento paulista se tornou o maior em todo o mundo, superando inclusive sua congênere nova-iorquina.

Foram anos de pressão até que a Parada obtivesse apoio e reconhecimento do Estado brasileiro. Conforme destaca um trecho do comunicado da 23ª Parada do Orgulho LGBT 2019,

a Parada de São Paulo é inspirada na coragem daquelas pessoas que se revoltaram contra a ordem ideológica, econômica, política e legal imposta por uma sociedade e um Estado de uma época. Como repetia a travesti negra Marsha P. Johnson, considerada a pessoa que arremessou a primeira pedra contra a fachada do Stonewall, dando início à revolta, “não há orgulho para alguns sem a libertação de todos nós”.

É inegável que a luta do movimento LGBT+ tem avançado e conquistado direitos no Brasil, como a união estável, a adoção, o casamento civil e a criminalização da homofobia. Todavia, ainda há um longo caminho pela frente. Por trás do arco-íris estampado nas bandeiras, existe um vermelho-sangue representado pelas centenas de homossexuais assassinados nos diferentes rincões deste país. Embora a euforia dos trios elétricos seja contagiante durante as Paradas, o abandono familiar, o preconceito e o arbítrio mutilam a cidadania de centenas de seres humanos todos os dias.

Redação

1 Comentário

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  1. Para a travesti Regina, que havia me prometido uma surra, de brincadeirinha, quando eu chegasse aos 15 anos – quebrei sua janela quando criança, rs -, depois protelou para os 18, mas nunca mais voltou para pagar a promessa…

    Brasil e USA, sempre parecidos quando o assunto é discriminação e retrocesso: este ano, naquele país, mulheres trans negras estão sendo mortas com uma frequência que já levanta a suspeita de serem resultado de ação organizada de criminosos por ódio.

    https://www.democracynow.org/2019/6/17/headlines/zoe_spears_becomes_10th_known_black_trans_woman_to_die_this_year

    Democracy Now! – Indya Moore delivers a powerful speech on trans rights
    https://www.youtube.com/watch?v=jO6dPdxOJQA

    Linda música do português Pedro Abrunhosa sobre a transexual brasileira brutalmente assassinada em Portugal (https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2016/02/160218_brasileira_lgbt_portugal_mf)

    Maria Bethânia – “Balada de Gisberta” (Ao Vivo) – Amor Festa Devoção (conheci primeiro a música e depois, a horrível história por trás da obra de arte musical)
    https://www.youtube.com/watch?v=BEs_fP37lNo

    E de Portugal ainda, uma descoberta de ontem, o Fado Bicha!

    Abaixo um vídeo (com cenas explícitas, para pessoas “sensíveis” ao amor sexuado, rs) e reportagem da revista Blitz sobre o duo musical

    Fado Bicha – O Namorico do André
    https://www.youtube.com/watch?v=GrZv7FJGUKE

    Da BLITZ

    “Desenganem-se os puristas: o Fado Bicha veio para ficar. Uma história de libertação, subversão e “arqueologia LGBT do fado”
    16.06.2019 às 9h00
    Tiago Lila e João Caçador levam ao palco versões alternativas de fados bem conhecidos. Em conversa com a BLITZ, falam sobre a rejeição que sentiram por parte do universo fadista, o ativismo que lhes corre nas veias e o desejo de colaborar com Gisela João ou Aldina Duarte

    MÁRIO RUI VIEIRA
    Jornalista
     

    RITA CARMO
    Fotojornalista
    Foi com ‘Lisboa Não Sejas Racista’, uma adaptação de ‘Lisboa Não Sejas Francesa’, que a dupla Fado Bicha começou a correr de boca em boca, de forma mais generalizada, no início deste ano. O projeto criado por Tiago Lila (que se apresenta em palco enquanto Lila Fadista) e João Caçador arrancou, de forma solitária, na sequência de uma experiência do primeiro no estrangeiro. “Vivi uns anos em Atenas e nunca tinha cantado fado de forma profissional”, confessa Lila, “trabalhava numa ONG e participava em encontros internacionais. Num desses encontros, numa aldeia no centro da Irlanda, os organizadores pediram-nos para mostrarmos alguma coisa dos nossos países, das nossas culturas. Eu disse ‘sou português, posso cantar um fado’. Foi assim a primeira vez. Cantei o ‘Barco Negro’ e foi incrível”.
    Quando regressou a Portugal, Lila inscreveu-se numa escola de fado onde, assume, percebeu rapidamente que “não cabia por inteiro” naquela música. Numa das duas aulas a que foi cantou ‘Ai Mouraria’, impondo-se a um professor que lhe disse que não podia fazê-lo por ser “um fado de mulher”: “é um exemplo muito concreto, como é óbvio… Não foi isso que me impediu de cantar, porque me impus, mas percebi que havia uma estrutura muito rígida e que se queria cantar dentro dessa estrutura ia ter de deixar partes minhas de fora, coisas das quais não estava disposto a abdicar”. Foi num espaço de Alfama, o Favela LX, que nasceu Lila Fadista. “Chamei logo Fado Bicha ao evento e fiz duas performances assim”, recorda, “depois, o João acabou por ver um vídeo meu a cantar e, de certa forma, sentiu-se relacionado com aquela ideia e perguntou-me se queria um guitarrista”.
    “Passou muito por uma necessidade nossa de criar um espaço em que coubéssemos por inteiro, enquanto pessoas homossexuais”, acrescenta João Caçador, “eu estudei música, tirei o curso superior em jazz, guitarra elétrica, mas comecei também a cantar e tocar em casas de fado e percebi, claramente, tal como o Tiago, que não cabia por inteiro no fado. Não só a nível lírico, das letras, poemas que podia cantar e poemas que não podia cantar, mas também na forma de tocar. A abordagem ao fado é muito rígida, há regras muito bem estabelecidas e existe um grande conflito em subvertê-las [mas] o fado fala sobre a vida e tem essa génese inicial marginal, de exorcização e de cura dos males do dia-a-dia. É-nos transversal, enquanto pessoas queer, esse sentimento de abandono, de rejeição, de vergonha que nos é quase colada à pele desde que nos apercebemos da nossa identidade não normativa. Criar este espaço de vivências não normativas é muito libertador”.
    O ativismo faz parte do ADN dos Fado Bicha ou é algo que nasce naturalmente quando começam a fazer música?
    João Caçador – O ativismo surge de vivermos a nossa identidade sem constrangimentos… É o maior ato político que podemos tomar. Muitas vezes, as pessoas perguntam-me se havia assim tanta necessidade de confrontar, de chocar, com a nossa identidade… mas nós por sermos não normativos, por existirmos, somos subversivos, não é? Quando confrontamos os outros com a nossa identidade, sem a subjugarmos àquilo que é convencionado de sermos todos heterossexuais, ela já subverte aquilo que é esperado, essa expectativa. Só isso já nos torna subversivos, mesmo sem querermos.
    Tiago Lila – Também parte muito do olhar que nós, Tiago e João, temos da vida, e já tínhamos antes, e que se transporta para Fado Bicha. Era inevitável que assim fosse.
    A decisão de pegarem em fados muito conhecidos, como ‘Lisboa, Não Sejas Francesa’, ‘Nem Às Paredes Confesso’ ou ‘Namorico da Rita’, e darem-lhes o vosso cunho surgiu logo no início?
    TL – Ainda antes do João, comecei a cantar os fados de que gostava mais, que, na verdade, são os de faca e alguidar, drama, morte, saudade… Foi aquilo que me fez chegar ao fado enquanto adolescente. Ao passar por uma série de processos difíceis, externos e internos, foi muito essa verdade, particularmente na Amália, que me fez olhar e sentir o fado pela primeira vez de forma diferente. Eu, assim como 95% de crianças e adolescentes que crescem em Portugal, não gostava nada de fado, achava uma seca e uma foleirada, mas aos 14, 15 anos comecei a conseguir ligar-me a esses fados mais tristes e desesperados. E à voz da Amália, à presença dela, àquilo que ela, no fundo, acabava por simbolizar e significar para mim. Foram esses fados que comecei a cantar enquanto Lila Fadista… o ‘Medo’, a ‘Primavera’, a ‘Estranha Forma de Vida’… E, depois, ao mesmo tempo, pensei “não”… A primeira ideia da adaptação surgiu por querer ter uma história de amor entre dois homens e uma história de amor entre duas mulheres. Então, andei à procura de fados que pudesse alterar e acabei por pegar no ‘O Namorico da Rita’, que ficou ‘O Namorico do André’, e na ‘A Bia da Mouraria’, que continua a ser ‘A Bia da Mouraria’ mas a Bia já não namora com o Chico, namora com a Adelaide. A partir daí, passei a olhar para cada fado tendo em mente a forma como podia apropriar-me dele… Há muitos que continuamos a cantar da forma como foram escritos, porque nos relacionamos com a letra, com o ambiente, houve outros que adaptei, no sentido de pegar na letra e mudar só umas partes, mas depois comecei a escrever letras novas. Não sou formado em música, mas adoro escrever letras. Ainda mais com toda a questão da métrica, da rima, esse exercício dá-me muito gozo. A primeira letra total que fiz foi a ‘Crónica do Macho Discreto’, que é a melodia do ‘Nem Às Paredes Confesso’ mas obviamente não tem nada a ver com o original. E depois fiz outras. Pego na melodia e escrevo uma letra original: cada verso tem as sílabas, a rima feita e dá-me muito gozo manter a estrutura nesse sentido, com o mesmo número de sílabas, a mesma rima, os mesmos sítios onde acontece a rima mas fazer uma letra completamente diferente.
    JC – Sem saber, o Tiago foi muito subversivo. Tens os fados tradicionais, uma coletânea de mais de 300 melodias, sem os poemas, que foi levada a património em 2011, nos quais a mesma melodia pode ter vários poemas diferentes – isto é uma coisa muito específica do fado, que não acontece na música pop -, mas é uma heresia total fazermos isto no fado canção. A diferença entre fado tradicional e fado canção é que o fado canção, geralmente, tem refrão e uma estrutura diferente do fado tradicional, que tem estruturas regulares… E o Tiago fez isso só com fados canção… É uma heresia total mudar a letra para aquelas melodias, que só têm uma letra. Até isso foi uma subversão.
    TL – Não sabia que era assim tão herético!
    JC – Sim. Eu pelo menos não conheço ninguém que tenha feito isso no fado canção, que tivesse mudado uma letra. O ‘Lisboa Menina e Moça’, o ‘Lisboa Não Sejas Francesa’, o ‘Nem Às Paredes Confesso’ é tudo fado canção.
    Os temas originais de que estavam a falar… Há um álbum a caminho?
    TL – O nosso objetivo é, de certa forma, gravar aquilo que tem sido a nossa história nos últimos dois anos. Na semana passada, fez dois anos que demos o primeiro concerto juntos, e há uma série de músicas que fazem parte do espólio deste período todo. Demos entre 100 e 150 concertos em dois anos em Portugal, em vários sítios, mas particularmente em Lisboa. Fomos a França, à Bélgica, ao Luxemburgo. E gostávamos muito de ter um documento, ou seja, um álbum que tivesse as canções que fazem parte deste período. Para depois, também, sentirmos que esta parte está arrumada, e podermos criar coisas nossas, de raiz. Ainda não conseguimos fazer esse exercício, de criar música e letra, que acho que vai ser super estimulante… Uma das questões de pegares em melodias que já existem é que elas estão todas sujeitas a direitos de autor. Obviamente que cada fadista que grava álbuns tem músicas que já foram cantadas antes ou que têm letras novas, ou não… é muito comum, no fado. Só que para nós não tem sido assim tão fácil. Muitas das músicas que gostaríamos de gravar não foram autorizadas pelos herdeiros, porque os autores já estão quase todos mortos. ‘O Namorico do André’ surpreendentemente foi aceite pelos herdeiros do António Mestre, o compositor. Foi espetacular, gravámos e acabou por ser o nosso primeiro single. Mas já tínhamos gravado uma outra música, com letra minha, a ‘Marcha do Orgulho’, e depois de gravarmos recebemos resposta negativa.
    Para alguém que nunca viu um concerto dos Fado Bicha, como descrevem um concerto vosso? Está tudo programado antes ou vão para o palco sem saber o que vai sair dali?
    JC – Depende dos concertos. Há concertos que são mais programados, mas como temos os dois uma empatia muito grande em palco muitas vezes decidimos as primeiras três músicas e depois o alinhamento vai fluindo consoante o que vamos sentindo. No Fado Bicha não canto, tomei essa decisão de tocar… Há uma em que canto, porque achámos que fazia sentido fazê-lo: o Tiago recita a letra e eu canto. Mas tomámos esta posição: o Tiago está na linha de escritor de canções, da poesia, de cantar, e eu estou nos arranjos e já tenho trabalho suficiente sendo só um músico, com os backing tracks, com os efeitos na guitarra elétrica, os pedais, a melódica, a percussão… Tenho uma caixa de sapateado e com o salto alto faço uma espécie de percussão… A minha experiência de um concerto de Fado Bicha é aquela de que tinha falado há pouco, e que está na génese do fado, uma forma de libertação da violência que todos sentimos, da sensação de abandono. E, no fundo, é no espírito de comunidade… temos um fado que é o ‘De Costas Voltadas’, que fala sobre a rejeição que geralmente os pais têm em relação às pessoas LGBT, esta dificuldade de aceitação incondicional das nossas identidades, e que termina com “estamos de costas voltadas do berço até ao caixão”. Os nossos concertos são um espaço de comunhão entre pares e pessoas que se identificam e empatizam com este sentimento e estas nossas vivências. É uma espécie de libertação em conjunto de uma comunidade que sentiu que em casa não tinha esse apoio, que na escola os professores não estavam preparados para dar esse apoio, no médico, nos transportes públicos, em espaço nenhum público, na rua, nunca sentimos este conforto. Todos juntos, exorcizamos os nossos males. Sinto muito que é isso.
    ‘Lisboa, Não Sejas Racista’ foi, provavelmente, o tema que mais falatório gerou. Não querendo fazer comparações, sentem que o racismo é tratado de uma forma diferente da homofobia, ainda? Que é mais politicamente incorreto ser racista do que homofóbico ou transfóbico?
    TL – Nos últimos anos, o conceito de homofobia, o termo ‘homofóbico’ ou ‘homofóbica’ sofreu um bocadinho o mesmo percurso que o termo racismo e racista sofreu nos anos 90. Passar de ser uma coisa levemente negativa, com ligação talvez mais ao passado do que ao presente, sem grande relação com a realidade atual porque já somos todos iguais, e já não há leis para brancos e leis para negros, para uma coisa que grande parte das pessoas brancas considerava como uma realidade, em alguns aspetos. Acho que aconteceu o mesmo na última década com a homofobia… O racismo passou a ser uma coisa absolutamente negativa e acho que está a acontecer a mesma coisa com o termo homofóbico.
    Mas ainda há muita gente a dizer que não é racista e depois, a seguir, conta uma piada manifestamente racista…
    TL – Claro, claro.
    JC – E o mesmo se passa com os homofóbicos. E mesmo dentro da comunidade LGBT há muita homofobia ou “passivofobia”. Nós próprios fomos vítimas da educação que tivemos, independentemente da nossa identidade. E eu acho que tanto o racismo como a homofobia vêm do mesmo lugar, da falta de pensamento crítico… É pouco relevante pensar qual está mais acima do outro, ou qual é que tem mais consequências, porque a violência é transversal e as nossas lutas estão todas ligadas. Por isso é que também falamos muito sobre o racismo. Enquanto isso não estiver tudo garantido, e nunca vai estar, é necessário ter essa voz ativa e falarmos sobre esses assuntos.
    Por que razão demorou todo este tempo até o fado cruzar para o campo LGBT?
    JC – O fado sempre se cruzou com a comunidade LGBT. A Amália é uma diva gay, com toda aquela figura que criou, dos vestidos, e todo o fatalismo… As próprias temáticas do fado puxam muito a esta sensação que falamos sempre, do abandono, da violência. Mas o fado sempre teve poetas, fadistas e músicos homossexuais, só que, infelizmente, nunca se puderam expressar, ou escolheram não o fazer, pelo menos explicitamente. E nós trazemos isso, no Fado Bicha. O Tiago costuma chamar isso de “arqueologia LGBT do fado”, porque vamos buscar poemas que foram escritos pelo Ary dos Santos, o Pedro Homem de Melo, que eram poetas homossexuais, e trazemo-los para a luz dos nossos dias, damo-lhes o simbolismo que julgamos que possa ser o mais fiel. Fazemos isso com o ‘Rapaz da Camisola Verde’, que é um poema do Pedro Homem de Melo cantado pelo Frei Hermano da Câmara. O poema é explicitamente homoerótico na sua totalidade e as partes mais explícitas foram cortadas… Como é que foi possível um frei cantar um poema homoerótico? Por a música ser tão forte e tão animada, uma marcha quase de bater palmas, nunca tinha reparado que era um poema super triste, que fala sobre a prostituição masculina homossexual… Não bate uma coisa com a outra. Pegámos na música, que é numa tonalidade maior e alegre e transformámo-la numa tonalidade menor, muito mais lenta…
    TL – E no poema todo…
    JC – De repente, uma música que era super extrovertida e extravagante fica super negra e, julgamos nós, muito mais fiel ao poema, que fala sobre marginalidade, sobre a apropriação de alguém da elite sobre um corpo que vem da província. Achámos piada fazer este contraste entre o Fado Bicha, com uma música super negra, e um frei que canta a mesma música e o mesmo poema de uma forma super alegre e festiva. Isto para vermos a contradição que é possível haver no fado. E a forma como nós, se escolhermos esconder e colocar numa camada mais leve a nossa identidade, conseguimos fazê-lo perfeitamente. Como é que um frei consegue cantar este poema daquela forma e está tudo bem e ninguém dá conta?
    Sempre que falo com fadistas eles acusam o toque dos “puristas do fado”. Já sentiram a ira dos puristas na pele?
    JC – O purista do fado é quase o fiscal do fado, aquela pessoa que está lá com o boletim e as regras e diz que infringiste esta regra e esta e esta. A coima é esta. É a ASAE do fado. Eu já senti, sim, porque divido-me entre a casa de fados tradicional, onde canto e toco, e Fado Bicha… Houve muitos fadistas e músicos que deixaram de me falar, por exemplo. Senti que há uma rejeição, algo que toda a vida vivi…
    Mas vem do facto de ter um projeto chamado Fado Bicha ou de previamente saberem da sua identidade?
    JC – Tem que ver com aquela ideia de que podes ser o que quiseres, mas volta para dentro do teu armário. Fica dentro do teu armário…
    TL – E não contamines o fado…
    JC – Exatamente. Esta ideia de que a nossa identidade vem contaminar, estragar e faltar ao respeito desta higiene social, musical e moral que é o fado. Isso leva-nos para a incapacidade que pessoas não LGBT têm de se comoverem como nós, enquanto pessoas homossexuais, sempre nos comovemos com histórias heterossexuais, desde os desenhos animados à literatura e ao cinema. Conseguimos empatizar e emocionar-nos com isso. Percebemos que existe essa dificuldade, por falta de experiência, de exposição, e aversão a uma simples canção que fala do amor entre dois homens. É difícil, para nós, perceber isso porque sentimos empatia e emocionamo-nos quando é ao contrário.
    Pensando em fadistas de agora, quem gostariam que vos oferecesse o xaile como forma de apadrinhamento?
    TL – Vou interpretar o xaile de forma simbólica. Eu gosto muito da Gisela João. Gosto muito da forma como ela cria, como canta, como se entrega ao vivo e gosto muito do que ela faz. A haver assim uma fadista atual com quem eu eventualmente pudesse pensar em fazer alguma coisa, encararia a Gisela com muito carinho.
    JC – Eu gosto muito da Aldina Duarte. Se bem que são universos muito diferentes. Mas empatizo com a forma poética como ela interpreta.
    TL – Não acho que seja assim tão diferente… de nós?
    JC – Na expressão, obviamente, não é? Mas identifico-me muito com a parte lírica, da forma como ela vive o fado. Isso aí, cruza-se com a nossa.
    Correndo o risco de ser um cliché, que papel teve António Variações na vossa educação musical?
    JC – Eu acho que o António Variações era muito fadista até, sim, como há bastantes cantores pelo mundo inteiro que são fadistas e nunca sequer ouviram fado. O António Variações, no meu caso específico, teve uma influência mais lírica do que musical, não tanto pela melodia mas pelas letras que cantava e pela forma. Lá está, o fado no sentido de libertação dos males e de cura, como eu estava a dizer. Está tudo lá. Acho que é isso que me inspirou nele, também.
    Adjetivos como “disruptivo”, “provocador”, “subversivo”, “marginal”, tudo expressões utilizadas para descrever artistas que fogem da norma que se instituiu, como vocês, podem resvalar para o insulto. Que termo gostavam de, sem pruridos, ver utilizado para vos descrever?
    TL – Eu aceito o termo subversivo… No fundo, todos esses termos, que podem ser entendidos mais de uma forma positiva, como outros, como ridículo ou vergonhoso, são adjetivações em relação a nós no embate com uma determinada estrutura e um determinado sistema. O termo subversivo não nos caracteriza a nós enquanto pessoas. Nós não somos, por natureza, subversivos. Somos nós e depois em confronto com um sistema acabamos por nos tornar subversivos… Mas eu aceito totalmente esse termo e uso-o para falar do nosso projeto porque, no fundo, acaba por abraçar esse fado, no sentido em que agarramos nessas subversões, nesse rasgar as costuras e virar do avesso, e assumimo-las. Acabamos por nos basear nessas existências para fazer aquilo que fazemos e entregar aquilo que entregamos em palco e às pessoas. E também acho que é muito nesse lugar de subversão e de não aceitação de uma série de realidades que as pessoas se ligam a nós. Tanto pessoas LGBT, que passaram por experiências semelhantes às nossas, como outras, que se ligam por empatia ou por experiência pessoal a essa ideia de estarem naquela posição de não serem aceites totalmente.
    É o momento certo para um projeto como o vosso ganhar asas, ou não há isso de momentos certos?
    JC – Eu acho que o momento certo cria-se, também.
    TL – Também acho…
    JC – É muito mais por aí. E isso nem é uma preocupação nossa. Fizemos isto porque é uma necessidade pessoal. Se a oportunidade surgir, surgiu. Se não surgir, se o Fado Bicha acabar amanhã, voltamos cada um para o seu trabalhos. Não é uma ambição profunda, é simplesmente um exercício pessoal.
    Os Fado Bicha têm concertos marcados no Festival À Porta em Leiria este domingo (16 de junho) e no Maus Hábitos no Porto (dia 26) e em julho atuam na Plaza Pedro Zerolo em Madrid (dia 4), na Casa do Largo em Setúbal (dia 6), no Festival Noites Na Nora em Serpa (dia 13) e no Theatro Circo em Braga (dia 26).

    A BLITZ agradece ao Alfaiataria Bar pela cedência do espaço para a realização da entrevista com os Fado Bicha.” (em https://blitz.pt/principal/update/2019-06-16-Desenganem-se-os-puristas-o-Fado-Bicha-veio-para-ficar.-Uma-historia-de-libertacao-subversao-e-arqueologia-LGBT-do-fado).

    Sampa/SP, 21/06/2019 – 17:11

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