Créditos indevidos, por Marcio Tenenbaum

O mais provável é que Bolsonaro continue com sua política de avançar e recuar, avaliando cada um dos ataques que desfere contra a Constituição e as instituições

Foto Agência Brasil

da ABJD – Associação Brasileira de Juristas pela Democracia

Créditos indevidos

por Marcio Tenenbaum

Três anos após o fim da guerra Irã-Iraque, Saddam Hussein invade o Kuwait. A guerra contra o Irã começara em 1980, um ano após a revolução que depusera o Xá Reza Pahlavi, grande aliado dos EUA naquela região. Alegando motivos religiosos e territoriais, Saddam invade o país vizinho, com total apoio do Ocidente e particularmente dos estadunidenses, estendendo o conflito por oito anos, com centenas de milhares de mortos e gastos na ordem de 500 bilhões de dólares para cada país. Após o conflito, ambos os países estavam com suas economias em frangalhos e Saddam Hussein, vislumbrando uma recuperação econômica e acreditando que tinha direitos a receber pelos serviços prestados na guerra que favorecera o

Ocidente, engendra um plano de invasão em outro país vizinho, dono de extensas reservas petrolíferas. No entanto, para tal intento, era fundamental o apoio dos EUA, que foi informado, por intermédio de sua embaixada, das intenções do Iraque. Após algum tempo, o silêncio da embaixadora é compreendido como sinal verde – afinal, quem cala consente – e a invasão tem início. Quanto ao resto, todos sabemos o desenlace.

Esse curto relato sobre a invasão do Kuwait em 1991 nos leva a refletir sobre os motivos de Jair Bolsonaro tentar aumentar seus poderes, criando conflitos com o Supremo Tribunal Federal e com o Congresso Nacional.

Com a posse do atual presidente, inicia-se um avanço no desmonte do já precário estado social criado desde a Era Vargas. Sem que as forças derrotadas na eleição de 2018 tenham conseguido impedir o avanço das reformas, enormes mudanças são implementadas nas legislações trabalhista e previdenciária, com amplo apoio dos setores empresariais e do mercado financeiro, que enalteceram, nos meios de comunicação, a aprovação, pelo Congresso Nacional, das reformas que colocariam o país no “trilho certo”. O “dever de casa”, na linguagem do empresariado, ou o desmonte das legislações sociais e a precarização do trabalho, não surtem o esperado efeito na recuperação da atividade econômica, nem na diminuição do desemprego, apesar da propaganda oficial em contrário.

O ano de 2019 ainda foi de lua de mel entre o governo e o chamado mercado, a mão invisível que detém o controle da dívida pública brasileira. Ocorre, porém, o início de uma divisão entre as elites econômicas que apoiaram a eleição de Bolsonaro contra a esquerda. O setor industrial, penalizado desde os anos 90, duramente atingido com a queda de quase 8% do PIB entre 2015 e 2016, não consegue se recuperar, especialmente por conta de uma política de austeridade neoliberal que coloca a taxa de desemprego em um patamar recorde de 12 milhões de pessoas. Ao contrário do setor financeiro, que não depende do mercado consumidor, o setor industrial é seu dependente direto. O apoio às medidas de precarização do trabalho e a austeridade econômica, tudo em nome de uma acumulação de capital no curto, médio e longo prazos, será o seu cadafalso.

O setor industrial brasileiro é historicamente submetido ao investimento público, tradicional na política brasileira, seja durante o governo Vargas, quando o Banco do Brasil e suas carteiras de investimento irrigavam o recém criado setor após a Revolução de 30, seja na criação do BNDE, hoje BNDES, nos anos 50, durante o governo de Juscelino Kubitschek, por intermédio da liderança de Celso Furtado.

Se, por um lado, o setor industrial se aproveita de maneira oportunista das medidas neoliberais de precarização do trabalho implementadas pelo atual governo, por outro lado, sofre com a ausência de investimentos públicos. Em diversas oportunidades, o ministro da Economia, Paulo Guedes, repetiu que a era do dinheiro público em investimento privado tinha chegado ao fim. Mais recentemente, o ministro repetiu que a saída da pandemia do Coronavírus não se dará mediante o uso do dinheiro público, nem com o aumento de impostos. Em resumo, da mesma forma que o Presidente da República afirma que cada família deve se virar durante a pandemia, “cuidando dos seus velhinhos”, o recado do ministro da economia para o setor industrial vai na mesma direção: se virem, pois o neoliberalismo não vale apenas para os assalariados. Para o setor industrial, portanto, a lua de mel acabou amarga.

O ano de 2020 tem início com a notícia da pandemia na China, que rapidamente se alastra para todos os países do mundo. No enfrentamento da crise econômica que atinge duramente o país, Bolsonaro se limita a repetir o mesmo mantra de Donald Trump, negando a gravidade do momento e suas consequências. Trump, no entanto, muda sua abordagem da crise sanitária quando os milhares de mortos começam a chegar muito perto da Casa Branca. Nesse aspecto, seu discípulo no hemisfério sul se afasta do seu mentor: continua a negar a gravidade da doença, demite primeiramente o Ministro da Saúde e, aproveitando-se da atenção do país ao combate da pandemia, também demite o Ministro da Justiça, Sergio Moro, que, com suas decisões judiciais, havia retirado o então candidato das oposições e líder nas pesquisas, Luiz Inácio Lula da Silva, da disputa e provável vitória no pleito de 2018. Em apenas dez dias, Bolsonaro conseguiu retirar do cenário público dois eventuais concorrentes à eleição presidencial de 2022. E em apenas um ano, o governo mudou a face trabalhista e previdenciária que reinava no país nos últimos 80 anos. A blitzkrieg bolsonarista deixaria qualquer general alemão com inveja da destruição feita nas hostes oposicionistas.

Já se disse em algum momento que não há almoço grátis. Mas também já se sabe que os vitoriosos têm direito ao butim e ao saque. Se Bolsonaro não tem nenhum projeto para o país, a não ser o desmonte dos direitos trabalhistas e previdenciários, que já foi devidamente entregue, ele tem um projeto pessoal, autoritário, que pretende a ampliação do seu poder. Bolsonaro agora apresenta a cobrança pelos serviços prestados às elites brasileiras.

O projeto pessoal de Bolsonaro é semelhante ao de tantos outros que, no passado, julgaram ter entregue mais do que havia sido inicialmente pedido. Após oito anos da guerra contra o Irã, mesmo tendo feito uso de armas químicas – as mesmas de que acusam Bashar al-Assad, presidente da Síria, atualmente – Saddam Hussein jamais sofreu qualquer sanção pela iniciativa da guerra, seja por parte da ONU, seja por parte de qualquer país do Ocidente. No entanto, o líder iraquiano percebeu tarde demais que era apenas um instrumento usado para a manutenção do poder das elites ocidentais, que rapidamente colocou um freio em seu projeto pessoal de poder na região.

No Brasil não haverá golpe de estado ou autogolpe. Bolsonaro não conta com um cenário político que possa sustentar tal projeto: as elites políticas, econômicas e intelectuais não participarão de tal empreitada; as camadas médias, sufocadas pela crise econômica que já antecedia a pandemia, tampouco darão apoio a esse projeto. E não se pense que as claques bolsonaristas, com suas danças coreografadas em vias públicas, representam algum setor de destaque. A pandemia terminará, e teremos o início da endemia do Coronavirus, até a chegada de uma vacina.

O mais provável é que Bolsonaro continue com sua política de avançar e recuar, avaliando cada um dos ataques que desfere contra a Constituição e as instituições, ao mesmo tempo em que monitora a reação das oposições, que crescem a cada dia. A tática é semelhante àquela usada quando do ataque às legislações trabalhista e previdenciária, ou seja, avançar enquanto a oposição não arregimentar partidários em número suficiente para criar limites aos desmontes. No entanto, o contingente dos apoiadores vem diminuindo sensivelmente. Bolsonaro tentará, ainda assim, seja porque não tem alternativa, seja porque é da sua natureza. No entanto, o golpe final contra as instituições não virá, porque, tal como Saddam Hussein, Bolsonaro não será autorizado a impor o seu projeto pessoal de poder. Os projetos autoritários nunca são pessoais, eles pertencem às elites.

Marcio Tenenbaum – Associado na ABJD

Redação

1 Comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador