Crimes de ódio e incitação à violência: um desafio

Patricia Faermann
Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.
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Por Adriana Dias

Da Revista Forum

Na tela do computador os internautas não observam as pessoas humanas atacadas como pessoas, mas como um papel em branco, desumanizado, e desencadeiam uma absurda disputa para ver quem vai agradar melhor seu líder violento

Vivemos um momento conturbado. Há medo e ódio nas redes e nas ruas. Muitos se aventuram em afirmar que a cordialidade do Brasil desapareceu. No entanto, quando Sérgio Buarque de Holanda cunhou, em Raízes do Brasil, a cordialidade brasileira, o tipo humano de homem cordial (fundamentado nas ideias de tipo ideal de Max Weber), ele descrevia um comportamento que não elimina a violência. A minoria talvez entenda, mas o Homem Cordial, em Holanda, se refere exatamente à personalidade dada a atitudes extremas, de grande oscilação, portanto, possível de atuar com extrema violência. A violência do brasileiro, dentro dos moldes pensados pelo autor, é expressa no momento em que o brasileiro se mostra incapaz de assegurar um comportamento contra a cidadania, à padrões legais e a à ordem pública.

O texto de Holanda descreve o comportamento do homem cordial como caracterizado por aquele que não pretende assumir responsabilidades, mas obedece a sugestões e incitações, exatamente por isso. Como o Adão bíblico, que responsabiliza a mulher e o criador, afirmando a mulher que tu fizeste me deu de comer, e “assim eu fiz”, o homem cordial agiria seguindo a vontade de quem o incita, sem perceber sua responsabilidade ou omissão no ato de aceitar a ordem como absoluta.

É totalmente diferente da banalidade do mal arenditiana, por exemplo, em que a mediocridade do burocrata, que faz preciosa e meticulosamente seu trabalho, sem se importar com a moralidade do solicitado, e depois dá de ombros: foram ordens. Aqui o que há é um não pensar, um não analisar, e isso torna a reação do brasileiro a incitação uma imensa pólvora na mão de quem acende pavios. Aqui pesa é o desejo gregário, a força do grupo funciona como alavanca para expressões desprovidas de análise ou meticulosidade.

Um exemplo bem evidente deste processo se revelou quando foi encontrado o grupo de Facebook “QLS”, que o Ministério Público apontou como responsável pelos ataques racistas a jornalista Maria Júlia Coutinho, a ‘Maju’, e a atrizes como Thaís Araújo. “QLC” é sigla para “Que Loucura Cara”’, o grupo possuía milhares de participantes, e um de seus líderes, classificado pelos investigadores como “Extremamente racista, homofóbico e com desvio de caráter muito grande” era seguido por com 25 mil internautas. Ele e outros líderes do grupo assumiam a “chefia” do ataque, escolhendo alvo e que tipo de ódio deveria ser demonstrado a ele.

Como este grupo, outras dezenas, com milhares de seguidores desenvolvem o mesmo tipo de prática. Assustados, muitos se perguntam a razão. Tenho algumas observações sobre o tema. Vamos a elas.

Notadamente jovens, os internautas chamavam a ação de ódio de “treta”, “onda”, “loucura”, “diversão”. Os líderes do linchamento virtual eram tidos como “grandes”, “muito loucos”, “manos grandes”. E a ação acontecia de forma direcionada, em escala, atacando o perfil do alvo, suas postagens, com todo tipo de ódio possível. Era um verdadeira corrida para ver que fazia a mensagem mais carregada, basta ler os textos em questão.

Mas porque os jovens estão competindo pela vaga de pior internauta do milênio? Que tipo de satisfação está por trás desse movimento? Porque isto acontece?

A situação, obviamente me incomodou apensar, visto que há mais de doze anos estudo crimes de ódio. Lembrei-me de uma entrevista que concedi certa vez à revista Carta Capital, em que comentava porque as manifestações de ódio disparavam nas redes (isso foi medido pela Safernet, que mapeia este tipo de discurso), quando o deputado federal Jair Bolsonaro usava a palavra no mesmo sentido.

Falta exemplo a estes jovens, falta educação para Direitos Humanos, falta internalizar conceitos como cidadania e dignidade humana. Bolsonaro acaba desempenhando, infelizmente, como os líderes da comunidade citada, o “mano” dando carta branca para a livre expressão da violência, sem qualquer medida coercitiva. Na tela do computador os internautas não observam as pessoas humanas atacadas como pessoas, mas como um papel em branco, desumanizado, e desencadeiam uma absurda disputa para ver quem vai agradar melhor seu líder violento.

Muitos exemplos recentes demonstram essa faceta de submissão das massas à violência dos que tem como líderes, e é possível observar o fato na manifestação que agrediu o Ministro do STF, Teori Zavascki , na frente de sua casa, com gritos e som alto, respondendo, entre outros, ao chamado do cantor Lobão no Twitter, para execução de violência contra o Ministro e sua família por sua decisão de solicitar de volta os processos referentes ao ex-presidente Lula. Nenhuma instituição merece ser respeitada para líderes inflamados. É preciso que juízes voltem a ser juízes, e para tanto, sua vida privada não pode um elemento em disputa.

Afirmo novamente: isto não é a final de um campeonato de futebol, um último capítulo de novela, é uma Nação. Importa estabelecer limites para quem se comporta continuadamente como um radical fanático, como um membro de torcida organizada fora de si que, vendo sua decepção em campo, simplesmente resolve quebrar tudo. Há que se ter muito respeito às instituições.

Obviamente, os que aceitam responder à solicitação do cantor devem ser punidos, mas também ele. Sem punir adequadamente os que conclamam violência, como preveniremos a questão? No Brasil, crimes de ódio carecem de legislação específica, inclusive para incluir a tipificação de linchamento (punindo o grupo, não apenas o mandante), mas também para evitar essa impunidade que transforma o Brasil em um barril de pólvora nômade. Não é possível que jornalistas incitem claramente que se soltem todas bestas feras em cima de pessoas (como fez Rodrigo Constantino em sua lista de celebridades brasileiras a serem boicotadas, recentemente), como tem feito uma parte da direita, senão toda, de maneira abusiva. Quem conclama o ódio é tão responsável pelos atos praticados por seus seguidores, como os brasileiros cordiais que se submetem. Precisamos, urgentemente, de uma legislação que afirme isso.

Patricia Faermann

Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.

6 Comentários

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  1. Acho ótima a matéria e é

    Acho ótima a matéria e é importante realmente refletir sobre tudo isso. Mas essas reflexões são lentas e é um trabalho para o longo prazo. No curto prazo, prender alguns dos incitadores e tomar medidas mais objetivas e enfáticas é urgente e necessário. Ou então nossa democracia vai para a lata do lixo e teremos décadas de intolerância política para aturar. O governo poderia fazer uma central de denúncias contra ameaças reais ou online, pois isso ajudaria a dar mais segurança e tranquilidade para a pessoa. Só o fato de saber que algo assim existe, já vai inibir muita coisa.

    Declarações da presidente ou de algum porta-voz do governo também deveriam acontecer. Deixar claro que nenhuma intolerância política será aturada e que haverá uma resposta firme, caso aconteça. Orientar os governadores para que tomem ações junto às suas polícias para acolherem, nas delegacias, quem quiser registrar boletim de ocorrência contra agressões. Enfim, agir mais e falar menos.

    Ainda dá tempo de reverter o fascismo, principalmente se não acontecer o golpe. Tendo o golpe e não fazendo nada, esquece. Não estaremos mais numa democracia. A instabilidade política vai se instalar de vez, junto com a intolerância e o ódio. Grupos fascistas agredindo os outros por razões políticas vão crescer. Esses grupos poderão se profissionalizar e ficar mais perigosos. Não tardarão os grupos de exertemínio políticos. Fica aí o alerta. A tendência disso é só piorar se ninguém fizer nada e ninguém está fazendo nada. Já toleramos mais do que deveríamos ter tolerado. 

  2. Sérgio Buarque de Holanda é

    Sérgio Buarque de Holanda é uma citação por demais distante quando os fatos indicam que há uma frente de catequização de pensamentos de direita com acesso à midias, a recursos financeiros e a estratégias de doutrinação sofisticadas. Essa frente de catequização apenas pegou a folha em branco que é o jovem imediatista e materialista moderno e está preenchendo de ódio e inconformismo direcionados à esquerda.

    Os estrategistas do Estado vêm sendo inócuos na apresentação de alternativas para os jovens, como também o são com o avanço do crack e a desagregação social que isso representa, com os juros em 400 % ao consumidor final, com a criminalidade em descontrole, com os aventureiros em geral (pirâmides, etc.).  Sem reforma política, sem pacto federativo e sem foco na solução vamos continuar expostos aos mercenários de idéias de direita (ou você acha que o Lobão não faz usufruto econômico dessa peregrinação pelo darwinismo social?

  3. O duro é imaginar que

    O duro é imaginar que chegando a um juiz, ele negar provimento, alegando liberdade de expressão. O que infelizmente é possível no ambiente atual diante da fascistização jurisprudencial.

  4. ótimo artigo
    certamente o

    ótimo artigo

    certamente o maior desafio desse momento…

    a massa, sem proposta política, a que odeia política, é

    um perigo para  a democracia, porque quer sempre achar um culpado,

    o que acaba po rlevar esse tipo de movimento odiento, a níveis equivalentes ao fasiscmo, ao nazismo…

  5. É preciso dar exemplo
    Para diminuir a onda de odiosos Brasil afora, será preciso dar um grande exemplo: punindo severamente um de seus maiores ensentivadores. Com esse na cadeia, ficará mais facil adestrar os demais.

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