O capitalismo de vigilância e o rebaixamento da elite a classe operária, por Fábio de Oliveira Ribeiro

A Samsung recomenda: ‘Você deve ter cuidado e revisar as declarações de privacidade aplicáveis aos sites e serviços de terceiros que você usa’.

O capitalismo de vigilância e o rebaixamento da elite a classe operária

por Fábio de Oliveira Ribeiro

O ano é 1976. Minha rotina é absolutamente trivial. Após depois de tomar café da manhã vou brincar na rua com meus amigos. Algum tempo depois volto para casa a fim de assistir minha série de TV predileta, almoço e vou para escola. Ao retornar dela, jogo bola na rua com meus amigos. Se nós estivéssemos em guerra com os moleques da outa rua, alguns de nós íamos patrulhar a viela, provocar nossos adversários e se eles ousassem ultrapassar a metade da “terra de ninguém” brigávamos com eles até que um dos grupos desistisse e se considerasse derrotado.

A única coisa que restou da minha infância foram as memórias e o hábito de assistir TV. Portanto, fiquei realmente surpreso ao descobrir que na atualidade as pessoas podem ser e algumas efetivamente são espionadas quando assistem o telejornal, apreciam suas séries prediletas ou simplesmente esquecem o aparelho ligado.

Na década de 1970 os televisores eram de tubo. A esmagadora maioria das pessoas tinham aparelhos preto e branco. As TVs coloridas eram um objeto de desejo. As TVs planas só existiam nos filmes e nas séries de ficção científica. Na atualidade quase todo mundo pode comprar uma televisão plana sofisticada. Confesso que, como quase todo mundo, eu não sabia o que elas são capazes de fazer.

“… Business forecasts predict strong growth in the market for internet-enable appliances, and Samsung is among a small group of market leaders. Its appliances use the Android operating system platform, and early on the firm established alliances with both Alphabet/Google subsidiary Nest and with Cisco. ‘Our first mission is to gring your home to your connected life’, a top executive explained in 2014. In 2015 privacy advocates discovered that the corporation’s smart TVs were actually too smart, recording everything said in the vicinity of the TV – please pass the salt; we’re out of laoundry deterfent; I’m pregnant; let’s buy a new car; we’re going to the movies now; I have a rare disease; she wants a divorce; he needs a new lunch box; do you love me? – and sending all hat talk to be transcribed by another market leader in voice-recognition systems, Nuance Communications.

The TV’s ‘surveillance policy’ – yes even TV has surveillance policy now – reveals the layers of surveillance effort and commercial interest thar operate outside of awereness in our homes, Samsung acknowledges that the voice commands aimed at triggering the TV’s voice-recognition capabilities are sent to a third party and adds, ‘Please be aware that if your spoken words include personal or other sensitive information, that information will be among the data captured and transmitted to a third party through your use of Voice-Recognition’. Samsung disclains responsability for the policies of third-party firmsm as nearly all surveillance policies do, including the one that actually collects and translates the talk of its unsuspecting customers. Samsung advises that ‘You should exercise caution and review the privacy statements applicable to the third-party websites and services you use’. The intrepid consumer determined to study tese documents will find no succor in Nuance’s privacy policy, only the same catechism foud in Samsung’s and that of nearly every company. It also encourages you to read the privacy policies of the companies to whom it’s selling your conversations, and so it goes: a forced march toward madness or surender.” (The Age of Surveillance Capitalism, Shoshana Zuboff, PublicAffairs, New York, 2019, p. 264)

Tradução:

“… As previsões de negócios preveem um forte crescimento no mercado de aparelhos com acesso à Internet, e a Samsung está entre um pequeno grupo de líderes de mercado. Seus aparelhos usam a plataforma do sistema operacional Android e, desde o início, a empresa estabeleceu alianças com a Nest/ subsidiária da Alphabet/Google e com a Cisco. ‘Nossa primeira missão é levar sua casa à sua vida conectada’, explicou um alto executivo em 2014. Em 2015, os defensores da privacidade descobriram que as TVs inteligentes da empresa eram realmente muito inteligentes, gravando tudo o que dizia nas proximidades do aparelho – por favor, passe o sal; estamos sem sabão em pó; estou grávida; vamos comprar um carro novo; nós estamos indo ao cinema agora; eu tenho uma doença rara; ela quer um divórcio; ele precisa de uma nova lancheira; você me ama? – e o enviando todas as conversas para serem transcritas por outro líder de mercado em sistemas de reconhecimento de voz, a Nuance Communications.

A ‘política de vigilância’ da TV – sim, até a TV tem política de vigilância agora – revela as camadas de esforço de vigilância e interesse comercial que operam fora da imersão em nossas casas, a Samsung reconhece que os comandos de voz destinados a acionar os recursos de reconhecimento de voz da TV são enviados a terceiros e acrescenta: ‘Lembre-se de que, se suas palavras faladas incluírem informações pessoais ou outras informações confidenciais, essas informações estarão entre os dados capturados e transmitidos a terceiros através do uso do reconhecimento de voz’. A Samsung não se considera responsável pelas políticas de empresas terceiras com as quais se relaciona, como sempre ocorre em quase todas as políticas de vigilância, incluindo a que realmente coleta e traduz a conversa de seus clientes inocentes. A Samsung recomenda: ‘Você deve ter cuidado e revisar as declarações de privacidade aplicáveis aos sites e serviços de terceiros que você usa’. O intrépido consumidor determinado a estudar esses documentos não encontrará socorro na política de privacidade da Nuance, apenas o mesmo catecismo presente na Samsung e em quase todas as empresas. Ela também o incentiva a ler as políticas de privacidade das empresas para as quais está vendendo suas conversas, e assim por diante: uma marcha forçada em direção à loucura ou á capitulação”.

No capítulo 9 do livro, Shoshana Zuboff faz um longo inventário de todos sistemas eletrônicos e aparelhos inovadores introduzidos no mercado que, como as Smart TVs da Samsung, empregam recurso de reconhecimento de voz. Microsoft Cortana, Google Now, Facebook “M”, Amazon Echo, Alexa, Google Home e as bonecas Cayla e Barbie Doll também podem ser e são utilizados para transformar suas palavras em informações que serão expropriadas e utilizadas para outros fins pelos capitalistas da vigilância. Todos esses produtos podem ser adquiridos no Brasil.

Tenho duas Smart TVs Samsung. Nenhuma delas jamais gravou qualquer coisa que eu disse. Felizmente não li o manual. Mesmo que tivesse lido provavelmente não teria acionado o recurso de reconhecimento de voz. Uma delas está no meu quarto e é usada apenas para ver DVDs (e jogos do Corinthians). A outra está conectada a um computador e é utilizada para ver documentários na internet e assistir programas da BBC, DW e outras redes de TV europeias.

Sou usuário de internet, mas nunca utilizei nenhum dos recursos de reconhecimento de voz do Google, Microsoft ou Facebook no meu Smartphone ou notebook. Apesar de ter condições, nunca sequer cogitei comprar qualquer dos equipamentos modernos mencionados por Shoshana Zuboff. Ufa… felizmente minha voz não está sendo gravada pela minha TV. Você pode dizer o mesmo?

“In this commercial dreamscape, words that were once conceived of as ‘behind closed doors’ are eagerly rendered as surplus. These new supply operations convert your talk into behavior for surplus in two ways. The first derives from what you say, the second from how you say it. Smart-home devices such Amazon’s Echo or Google Home render rivers of casual talk from which sophisticated content analyses produce enhanced predictions that ‘ antecipate’ your needs. Google used its 2016 developers conference to introduce its conversational reimagining of Google Now, rechristened ‘Assistant’ and integrated across the company’s devices, services, tools, and applications. ‘We want users to have an ongoing, two-way dialogue with Google.” (The Age of Surveillance Capitalism, Shoshana Zuboff, PublicAffairs, New York, 2019, p. 261)

Tradução:

“Nesta paisagem comercial de sonhos, as palavras que antes eram concebidas como ‘atrás de portas fechadas’ são ansiosamente renderizadas como excedentes. Essas novas operações de suprimento convertem sua conversa em excedente comportamental de duas maneiras. O primeiro deriva do que você diz, o segundo do modo como o diz. Dispositivos caseiros inteligentes, como o Echo da Amazon ou o Google Home, geram rios de conversas casuais a partir das quais análises sofisticadas de conteúdo produzem previsões aprimoradas que ‘antecipam’ suas necessidades. O Google usou a conferência de desenvolvedores de 2016 para apresentar sua recriação conversacional do Google Now, recriado como ‘Assistant’ e integrado aos dispositivos, serviços, ferramentas e aplicativos da empresa. Nós queremos que os usuários tenham um diálogo contínuo e bidirecional com o Google.”

Bidirecional?

No final do último texto desta série https://jornalggn.com.br/artigos/as-novas-armadilhas-criadas-pelo-capitalismo-de-vigilancia/, fiz um comentário sobre as possibilidades políticas aterradoras do capitalismo de vigilância ser colocado a serviço de um projeto político totalitário. Ao ler o capítulo do livro de Shoshana Zuboff sobre a expropriação de conversação através de sistemas e aparelhos ‘inteligentes’ outra questão interessante ocorreu.

Há séculos a elite brasileira se distingue do restante da população pelo consumo de produtos e serviços desenvolvidos nos EUA, Europa e Ásia. D. Pedro II e sua família usavam escovas de dentes e pasta de dentes importadas numa época em que o Brasil era povoado por uma maioria de banguelos que sequer sonhavam que esses produtos existiam. Tudo que existe de mais moderno numa casa norte-americana, europeia ou chinesa pode ser encontrado nas mansões e luxuosos apartamentos dos brasileiros da classe alta e da classe média alta.

Recursos tecnológicos desprezados ou simplesmente ignorados pelos brasileiros que tem condições de comprar Smart TVs, Smartphones ou notebooks geralmente são havidamente utilizados pelos membros da elite brasileira. Eles se sentem orgulhosos justamente porque são capazes de se diferenciar do restante da população nativa. Na era do capitalismo de vigilância pode ser um grande problema se comportar como um norte-americano ou europeu que desdenha da privacidade.

Os brasileiros que estão em condições de desenvolver projetos inovadores e/ou de manufaturar produtos e serviços ligados à terceira e quarta revoluções industriais deveriam ficar apavorados. Afinal, todos os segredos que eles guardam a sete chaves podem ser conhecidos pelos concorrentes deles antes que seus novos produtos cheguem ao mercado.

Ao ler o livro de Shoshana Zuboff percebi que o capitalismo de vigilância pode estar criando uma nova e luxuosa classe operária. Em virtude de sua obsessão por se distinguir da população em geral consumindo serviços e produtos tecnológicos modernos, a elite tupiniquim pode estar sendo havidamente espionada pelo Google, Microsoft, Facebook, Samsung, etc….

O capitalismo de vigilância não tem pátria, nem respeita fronteiras. Em razão da assimetria, os capitalistas da vigilância nunca se comportarão como se fossem iguais aos membros da elite brasileira. Eles não estão apenas em condições de expropriar gratuitamente excedente comportamental nas casas dos brasileiros ricos. De fato, Google, Microsoft, Facebook, Samsung, etc… podem muito bem obter lucros fenomenais comercializando segredos industriais, ideias inovadoras, informações sigilosas e sensíveis e, eventualmente, patenteando e fabricando processos e produtos desenvolvidos por seus radiantes operários de luxo brasileiros.

Fábio de Oliveira Ribeiro

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