
E O CARNAVAL (…) ciência e filosofia que ilumina o mundo inteiro simplesmente em três dias!
por Ellen de Lima Souza e Ana Carolina Alves de Toledo
Fevereiro de 2025. Em meio a uma onda reacionária mundial, na qual nós, brasileiros, também nos afogamos em tamanha ressaca, um farol alumia terra firme: é carnaval! A festa do povo, a festa da carne do corpo, a festa que se fez manifestação genuinamente negra neste pedaço de diáspora chamado Brasil. Comum-unidades negras organizadas em Escolas de Samba, territórios-terreiro, espaço-tempo seguro para respiro e renovação energética do povo preto. Ou deveria…
Passados 109 anos do registro do samba “Pelo telefone”, composto por Donga (Ernesto do Santos) e Mauro de Almeida no quintal de “Tia Ciata de Oxum” (Hilária Batista de Almeida), temos uma celebração potente para as escolas de samba do grupo especial do Rio de Janeiro, em 2025, pois das 12 escolas de samba do grupo especial do Rio de Janeiro, 10 têm enredo ligado direta ou indiretamente as religiões de matriz africana.
O que deveria ser encarado como o adensamento das raízes uma celebração pujante e positiva da nossa cultura, foi duramente criticado como “excesso de religiosidade afro”, conforme expressão do carnavalesco Paulo Barros, inclusive por pessoas do meio, o racismo religioso atravessa inclusive as passarelas do samba, com um pavaroso requinte de homofobia.
De críticas arrogantes como a do carnavalesco Paulo Barros, afirmando que, dentre as temáticas afro das escolas de samba do RJ, maior desfile do país, “tudo já foi visto e revisto”; à proibições escancaradas das nossas africanidades, como a instituída pelo secretário municipal de Cultura e Turismo de Canoas (RS) Pinheiro Neto (PL), como condição da continuidade do carnaval em territórios de (re)existência menos midiáticos, a problemática é a mesma: violência discursiva, genocídio epistêmico e sistêmico apagamento histórico em operação.
Para nosso alívio é fundamental ouvir o samba da Unidos de Padre Miguel que anuncia “sangue preto é mais forte que a travessia”, o quintal de Tia Ciata de Oxum, traz em 2025 para o Rio de Janeiro uma movimentação econômica estimada em R$ 5,5 bilhões ao longo do período, e a Riotur calcula em 50 mil o número de empregos gerados no período, ao todo o carnaval desse ano deve movimentar mais de 12 bilhões em receitas segundo a Confederação Nacional do Comércio de Bens e Turismo (CNC).

A proibição do secretário de cultura e turismo de Canoas RS, Sr. Pinheiro Neto (PL) é tão estapafúrdia que em um primeiro momento é complexo assimilar um carnaval sem a religiosidade afro-brasileira, o abismo da ignorância é tão profundo que certamente uma interdição como essa não leva em consideração a sofisticação da cultura afro-brasileira, ora, a bateria da Acadêmicos do Salgueiro bate ao ritmo do Alujá toque dedicado ao orixá Xangô, por isso, seu som remete ao trovão e seu nome é furiosa em homenagem a Xangô.
Mas, a tentativa de “demacumbalizar” o carnaval não é inócua, ela remonta a mesma lógica da escravidão que tentou “desalmar” os escravizados. Mas, não há como tirar a alma do samba, porque é o samba quem restitui alguma dignidade a esse país graças a Cita de Oxum que pariu o samba e com ele, imortalizou negras grafias do sentir, cantadas e dançadas nas circularidades das rodas, refrãos e partilhas comunitárias. Escola de samba é atualização ancestral, preenchimento e pertencimento de continentes-corpos negros.
Se, no projeto das escolas convencionais, nos dão livros e frases escritas para aprendermos um modo de ser território ocidental colonial, nas escolas de samba nos dão música e frases in_corpo_oradas para não esquecermos de ser territórios negros. Nos dão tambor e dança. Nos alimentam com “tudo que a boca come”, ousando aqui estender os signos da fala de Mestre Pastinha. Enfim, Escolas de Samba estão entre as tecnologias ancestrais que nos fazem permanentes.
Sendo assim, finalizamos evocando em circularidade a terra firme a partir da qual abrimos essa gira, ancestralidade que se atualiza há 500 anos em versos reconvexos que se olham nos nossos terreiros-escolas repletos de vovôs, vovós, titias e entidades: “seu Zé, que alumia nosso morro, estende o chapéu a quem pede socorro, vermelho e branco no linho trajado”. Pedimos licença ao Salgueiro para parafrasear seu samba e firmar o ponto afirmando que “somos nós malandragem de corpo fechado, macumbeiros, mandingueiros, batizados no gongá”. Escola de samba é terreiro, “é a casa da mandinga”. Sendo assim, quem não gosta, se afaste; quem não conhece, se aproxime e quem não sabe, estude, pois o samba não versa sobre orixalidade, o samba é orixalidade. E para todas as pessoas, respeito e lei. Pois, “quem tem medo de quiumba, não nasceu pra demandar”.
Profa. Dra. Ellen de Lima Souza é professora e pró-reitora adjunta de assuntos estudantis e políticas afirmativas da Unifesp e coordenadora do grupo de pesquisa LAROYÊ.
Profa. Ms. Ana Carolina Alves de Toledo é doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Educação da Unifesp integrante do grupo de pesquisa LAROYÊ.
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