Sobre o avanço das crenças conservadoras, por Reginaldo Moraes

Por Reginaldo Moraes*

A esquerda vai, a direita vem – por quê?

Estas notas partem do livro de Thomas Frank – Pity the Billionaire: The Hard-Times Swindle and the Unlikely Comeback of the Right. Mas intrometem algumas reflexões próprias, à revelia do texto do Frank.

T. Frank observa uma situação paradoxal, que vê como única (e inesperada) na historia americana: tempos difíceis, de crise, e uma conversão massiva a uma ideologia de livre-mercado. É o que se observa nos EUA hoje.

O argumento da austeridade já fora enunciado pelo governo Hoover, na Depressão anterior (a de 1929). Mas naquela ocasião a resposta politica dominante foi outra, não a glorificação do free-market. Foi o New Deal, a versão de socialdemocracia que parecia caber dentro do liberalismo americano. A partir dai, “liberal”, nos Estados Unidos, teve um significado próximo de “socialdemocrata” na Europa.

Lá nos anos 1920, ainda, o Secretário do Tesouro, Andrew Mellon, aconselhou o presidente Hoover a promover uma “queima total”:  “liquidar o trabalho, liquidar ações, liquidar os agricultores, liquidar imóveis.” Essa politica,  de acordo com o Mellon, “irá limpar a podridão do sistema. Alto custo de vida e altos estilos de vida iriam descer. As pessoas vão trabalhar mais, viver uma vida mais moral. Valores serão ajustados e pessoas empreendedoras pegarão os destroços das pessoas menos competentes”. Os conselhos de Mellon refletiam a ortodoxia do dia: Deixe a crise seguir seu curso, deixe falir aquele que falha, deixe o fraco ser purgado, e temos a confiança que os fortes vão surgir mais fortes do que nunca”.

Mas isso não vingou. Hoover dançou, Roosevelt assumiu o comando com outra orientação.

Num certo ponto do livro, Frank também retoma uma frase de Margareth Thatcher. A chamada dama de ferro (nos outros) morreu, mas o website continua ali, até que se lhe enfie uma estaca. Recolhi a frase e o paragrafo onde está. Indica algo que pelo menos ajuda a explicar o paradoxo acima descrito (adesão a free-market em ambiente de depressão). Thatcher sabia o que queria. Leia:

“O que tem me irritado sobre os caminhos da política nos últimos 30 anos é que eles foram sempre direcionados para a sociedade coletivista. As pessoas esqueceram-se da sociedade  pessoal. E elas dizem: Eu conto? Eu importo? A resposta direta é: sim. E, portanto, o que eu impulsionei não foram políticas económicas; é que me propus realmente a mudar a abordagem, e mudar a economia é a forma de mudar esse ponto de vista. Se você alterar a abordagem você está, em seguida, no coração e na alma da nação. Economia é o método; o objetivo é mudar o coração e a alma. http://www.margaretthatcher.org/document/104475]

Por que a esquerda perdeu terreno?

Frank não explora isso, outros o fazem: qual é a base material da decadência da socialdemocracia, dos trabalhistas e socialistas, dos grupos políticos “coletivistas”, enfim?

As transformações macroeconômicas e a reengenharia do mundo corporativo foram decisivas na criação do ambiente em que free-market deixa de ser alucinação e fanfarronice, para se tornar ‘senso-comum’. São transformações macroeconômcias (leis relativas a privatização e quebra de regulações estatais] com correspondentes no mundo microeconômico (reengenharia de empresas).

Aqui vai uma reflexão que devemos fazer, com calma, mas sem complacência.

A esquerda sempre teve uma base sociológica: a classe trabalhadora. É o eixo em torno do qual gira deve girar a política da esquerda. Podem chover discursos sobre “a nova economia”, a “sociedade do conhecimento” e outras milongas. Mas ainda temos que comer, vestir… e tudo aquilo que diz respeito à reprodução do corpo humano.

Essa base sociológica da esquerda (sindicatos, partidos) é desmantelada com a fragmentação adotada como política pelas empresas e estimulada/subsidiada pela legislação, com a terceirização, lei de responsabilidade fiscal, etc.

Essa base sociológica é também muito dependente de um universo de serviços que determinam sua vida cotidiana, suas relações com a sociedade: serviços públicos de saúde, educação, assistência social, etc. Esses serviços públicos são a base material de uma cultura social-democrata, de valores coletivos, não-individualistas. Quanto esses serviços deixam de ser direitos e viram mercadorias ou são submetidos a lógicas de mercado, isso tem impacto brutal sobre as ideias, valores, sentimentos, identidades politicas. É banal e brutal, mas o modo como as pessoas vivem determina muito do que as pessoas pensam.

Esse desmantelamento foi sendo implantado ou tolerado nos últimos 25 ou 30 anos, inclusive nos governos de esquerda. É por ai que devemos entender o alinhamento da “nova classe média” ou, melhor, da nova classe trabalhadora, remodelada pelas reformas liberais e pela fragmentação. Alinhamento com os valores da direita, do individualismo, da pseudo-meritocracia, do evangelismo do sucesso. É uma mistura explosiva: terceirização e fragmentação da classe trabalhadora mais privatização de serviços públicos. Um coquetel para fermentar idéias da nova direita.

Se assim é, a contra-ofensiva da esquerda não pode se dar apenas no terreno da propaganda, da difusão de idéias.; Ela muito importante, mas depende de uma base material. A luta principal tem que se dar na reconquista da base material da social-democracia. A recuperação de direitos da classe trabalhadora, a criação de canais políticos e organizativos para reunificar seus diversos segmentos, a substituição de “mercadorias” de educação e saúde por serviços públicos de educação e saúde. Sem isso, as idéias ficam penduradas no vazio. E não criam raízes.

As reformas macroeconômicas neoliberais, para além deste ou aquele detalhe ou modulação, ampliaram a privatização e a financeirização da vida. O Plano Real, por exemplo, foi um planinho de estabilização monetária, ok, Mas foi também, e principalmente, um plano-choque maior, de privatização e desregulamentação. No plano da vida cotidiana, foi um “plano latinha”. Voce passa nas ruas de antigas regiões industriais e depois de alguns minutos está resmungando: lá tinha uma fábrica disto, lá tinha uma fábrica daquilo.

Alguns efeitos dessa praga são vistos no terreno microeconômico (na forma de organização das empresas), com desdobramentos sociais e políticos fortes. Empregos se desmanchando e bases sindicais de desintegrando.

As empresas terceirizam, ‘exportam’ serviços e operações antes internalizadas. Tudo vira subcontratado, “empreendedor”, flexível. A empresa guarda-chuva, por exemplo, transforma ex-empregados em ‘colaboradores-associados’ via gatas e terceirizadas. Algumas fizeram isso até com setores produtivos delicados. Metalúrgicas e montadoras estão ‘expelindo’ para gatas e ‘cooperativas’ até sua ferramentaria e estamparia. Cogita-se fazer o mesmo com manutenção elétrica e mecânica, antes vistas quase como parte da ‘segurança patrimonial’, pelo risco. Isto coloca pressão sobre esses ex-trabalhadores hoje ‘empreendedores’. Amanhâ, eles podem ser vozes clamando por redução de impostos e encargos, direitos, etc. E falando a linguagem do ‘mercado’. O neoliberalismo não se enraíza só na base da propaganda de TV. Tem que ter base na vida material.

Base material? Não é só o emprego. Privatização da educação, da saúde. Mesmo os serviços públicos passam a ser gerenciados através de procedimentos “mercado-alike”, regras de mercado que, dizem os babacas, aumentam a eficiência porque instauram a competição. Daí se forma um  “estado submerso” das politicas sociais financiadas com dinheiro publico mas realizada através de entes privados. Cidadania vira clientela. Com consequências na percepção das pessoas, que começam a chamar educação e saúde de “serviços educacionais”, produtos, etc..

E provavelmente esse ‘pequeno emprendedor’ vai ser a ponta de lança da nova direita, de suas demandas mais ‘avançadas’. Para ajudar a propaganda anti-estado e anti-coletivista,  a pequena empresa sente mais de perto a presença do regulador, até porque a grande tem mais recursos para engraxar o regulador. No mundo inteiro, quem mais paga imposto é classe média e pequena empresa. Grande empresa e grande fortuna escapam sempre.

T. Frank lembra a grande quantidade ‘small business owners’ entre os ativistas e manifestantes do Tea Party. Donos de lojas, de restaurantes, etc. Para eles, “regulação” é a visita do inspetor sanitário ou do fiscal, “achando” o que multar. São os pequeno burgueses como bucha de canhão dos grandes piratas. Como os trouxinhas da avenida Paulista, berrando contra a corrupção e liderados por grandes sonegadores e corruptos.

Aliás, Frann retoma uma passagem preciosa do – que está no livro A Nova Classe Media, capitulo sobre os pequenos negócios. Mills acerta na mosca. Mostra como o fetiche do americano empreendedor não nasce de dentro desse universo (dos pequenos empreendedores) nem decorre de seus ‘sucessos’, mas do interesse dessa imagem para o grande negocio. É a bucha de canhão.. É o pequeno proprietário e seu sofrimento, seu heroísmo, que ‘justifica’ a luta contra o imposto sobre herança, para  a desregulação (trabalhista, fitossanitária, etc.).

A direita não é folclórica. E sua sedução também não é

Outra coisa importante lembrada pelo livro de Frank: não se deve folclorizar a nova direita, ela não é piada. E é uma percepção do mundo, muito difundida e muito perigosa. Parece exótica e paranoica, sempre anunciando uma invasão de marcianos (comunistas), embora estes sequer existam. Mas o que está por detrás disso é uma operação (mental) de desligamento da realidade, do fatual. Por isso parece tão exótica. Não se deve mirar nesse ‘lunatismo’ da nova direita, mas nas fontes de suas ideias. O que esta atormentando e assombrando nossos tempos não é a volta de algum grupo de fascistas folclóricos e antiquados, mas a desintegração econômica e de direitistas muito atuais.

Mas o livro do Frank não nos alerta apenas sobre a nova direita e sobre suas fontes de poder e energia. Ele nos alerta para as conversões que o novo ambiente produz. Daí vale reproduzir a passagem assagem interessante sobre a conversão de Obama (e não só dele…):

“Cada vez mais, encontrei-me a passar tempo com as pessoas “de bens” — grandes escritórios de advocacia e bancos de investimento, gestores de fundos de hedge e capitalistas de risco,” lembra o futuro Presidente em seu livro de 2006, The Audacity of Hope. Como regra, eles eram gente inteligente e interessante, bem informados sobre políticas públicas, liberais na sua política, esperando nada mais do que ouvisse suas opiniões em troca de seus cheques. Mas eles refletiam, quase uniformemente, as perspectivas de sua classe: o 1% do topo da escala de renda que pode assinar um cheque de $2.000 para um candidato a político. Eles acreditavam no mercado livre e uma meritocracia educacional; acham difícil imaginar que haja qualquer mal social que não possa ser curado por uma alta pontuação no SAT [exame geral de fim de ensino médio]. Eles não tinham paciência com protecionismo, acham que sindicatos são problemáticos e não são particularmente simpáticos para aqueles cujas vidas foram derrubadas pelos movimentos do capital global…. “Eu sei que me tornei mais parecido com os doadores ricos que conheci, em consequência da minha arrecadação de fundos”

Pensando bem, estamos diante de um grande problema, não é?

* Professor de Ciência Política da Unicamp, doutor em filosofia e autor de “O Peso do Estado na Pátria do Mercado” (2013)

Redação

8 Comentários

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  1. gostaria de fazer um complemento

    O que me impressiona, acima dessas ossilações, é como o brasileiro é complacente. É impossivel um governo democraticamente eleito de esquerda nesse pais. Como o PT bem mostrou, ele necessitou de um governo FHC desastrado para se eleger e, para governar, precisou se endireitar em parte e fazer conchavos com os demais partidos de direita e de “centro” (que também são de direita). Um partido como o PSOL com propostas absolutamente liberais (no sentido politico original) é tratado como comunista. 

    Eu faço essa analise comparando partidos de paises desenvolvidos com os daqui. Nem ficaria surpreso se alguns desses partidos de direita fossem mais progressistas, em certos aspectos, que nossos partidos de esquerda. A esquerda eventualmente retornará ao poder e espero que seja mais ousada. A direita é incapaz de fazer esse pais progredir,pelo contrario. A direita brasileira só é capaz de fisiologismo, de espoilar o pais e entrega-lo. 

    1. É problema da característica da economia e não da índole do povo

       

      Norban (domingo, 14/08/2016 às 10:03),

      Talvez se devesse atribuir a dificuldade de a esquerda assumir de modo mais pleno o poder no Brasil a uma circunstância especial da economia brasileira que é a alta concentração de renda no país. Quanto mais igualitário o país mais bem representada é a esquerda. E o oposto também é evidente.

      Este é a grande muralha que a esquerda tem que transpor. Combater a desigualdade é o mote essencial da esquerda, e quanto mais desigual for o Brasil mais difícil se torna essa tarefa.

      Clever Mendes de Oliveira

      BH, 14/08/2016

  2. Muito bom o texto, que venham

    Muito bom o texto, que venham outros sobre o poderio das ORCRIMER, sigla para Organizações Criminosas Mercantis, que é o caso destas que tomaram de assalto o poder executivo (o cofre sobre demais poderes já tinham em mãos) com a ajuda deste poder chamado mídia.

  3. Em 1930 também houve crescimento da direita no mundo e nos EUA

     

    Reginaldo Moraes,

    Um belo artigo. Eu não vou esquecer de repetir enquanto puder que o golpe é essencialmente das elites financeiras e empresariais paulistas e com o apoio dessas mesmas elites do sul do Brasil. É mácula para acompanhar São Paulo em uma visão da esquerda. É claro que pela mesma razão a direita vai sempre reverenciar as elites financeiras e empresariais paulistas.

    Agora, também sempre que possível farei referência a este seu artigo “A esquerda vai, a direita vem – por quê?” transformado aqui no blog de Luis Nassif neste post “Sobre o avanço das crenças conservadoras, por Reginaldo Moraes” de domingo, 14/08/2016 às 08:38, para demonstrar que de lá de São Paulo também vieram lgumas dentre as melhores análises sobre a realidade brasileira.

    E há outros bons artigos que se colocam em antagonismo ao golpe patrocinado pelas elites financeiras e empresariais paulistas. Nesse sentido, lembraria aqui de texto que merece uma reflexão mais pausada por parte da esquerda. Trata-se do artigo “O sono da política produz monstros” publicado no jornal Le Monde Diplomatique Brasil, em 03/05/2016 e de autoria de Gabriel Cohn e que aqui no blog de Luis Nassif foi reproduzido no post “O sono da política produz monstros, por Gabriel Cohn” de domingo, 05/06/2016 às 16:18. Gabriel Cohn é professor emérito da Faculdade de Filosofia da USP.

    No site do Le Monde diplomatique – Brasil, o artigo “O sono da política produz monstros” pode ser visto no seguinte endereço:

    http://www.diplomatique.org.br/artigo.php?id=2084#.V1NaKv6tSGd.facebook

    E aqui no blog de Luis Nassif, o endereço do post “O sono da política produz monstros, por Gabriel Cohn” é:

    https://jornalggn.com.br/noticia/o-sono-da-politica-produz-monstros-por-gabriel-cohn

    Houve poucos comentários ao post e em um deles feito por pessoa de esquerda – Lucinei em comentário enviado segunda-feira, 06/06/82016 às 09:29 – fica a sensação de que até dentro da esquerda há uma falta de compreensão para uma realidade que no meu entendimento Gabriel Conhj soube bem descrever.

    Quanto ao seu texto eu senti falta de referência a dois trabalhos de pesquisas que tratam do crescimento da direita em períodos de crise econômica. Nesse sentido eu menciono aqui o comentário que eu enviei quinta-feira, 28/04/2016 às 20:45, para ML junto ao comentário dele de quinta-feira, 28/04/2016 às 15:40, lá no post “Recessão alimenta a criação de monstros da intolerância, por Laura Carvalho” de quinta-feira, 28/04/2016 às 14:39, aqui no blog de Luis Nassif contendo, por sugestão de João Paulo Caldeira com uma introdução do Jornal GGN, o artigo de Laura Carvalho “O mar está para monstros” publicado na Folha de S. Paulo de quinta-feira, 28/04/2016. O post “Recessão alimenta a criação de monstros da intolerância, por Laura Carvalho” pode ser visto no seguinte endereço:

    https://jornalggn.com.br/noticia/recessao-alimenta-a-criacao-de-monstros-da-intolerancia-por-laura-carvalho

    No meu comentário eu deixo o link para os dois seguintes artigos:

    Primeiro deixo o link para o artigo “Economic growth and the rise of political extremism: theory and evidence” a que Laura Carvalho faz referência sem deixar título ou link e que são de autoria de Markus Brückner e Hans Peter Grüner e que foi publicado em abril de 2010 e que pode ser visto no seguinte endereço em pdf:

    https://www.uni-kassel.de/fb07/fileadmin/datas/fb07/5-Institute/IVWL/Forschungskolloquium/WS10/growth-extremism.pdf

    E o segundo link é para o artigo “The political aftermath of financial crises: Going to extremes” de autoria de Manuel Funke, Moritz Schularick e Christoph Trebesch, e publicado em 21/11/2015, no site do VOX – CEPR’s Policy Portal e que pode ser visto no seguinte endereço:

    http://voxeu.org/article/political-aftermath-financial-crises-going-extremes

    Todos dois textos são bem exaustivos em levantamento de dados estatísticos mostrando como a direita cresce em períodos de crise econômica. O levantamento leva em conta também a crise de 1930. Não creio que se deva dizer que o momento atual é único. É importante lembrar que até a década de 70, o Partido Democrata era eleito com os votos dos sulistas de direita contrários ao Partido Republicano desde a Guerra da Secessão. Só a partir de Franklin Delano Roosevelt é que o Partido Democrático foi trilhando um caminho mais para a esquerda. O próprio Lyndon Jonhson, que deu o último e mais definitivo impulso para um fortalecimento do Estado do Bem-Estar Social nos Estados Unidos, mediante o que foi conhecido como Great Society, era um sulista texano da direita.

    Clever Mendes de Oliveira

    BH, 14/08/2016

  4. A ditadura Brasileira matou

    A ditadura Brasileira matou muito menos que a Argentina para se manter no poder por 21 anos do que a Argentina para se manter por 6/7…

    Essa é a demonstração númerica da complacência do nosso povo. A ditadura aqui não é melhor que a de outros lugares, mas com esse povo complacente, matar como a ditadura Argentina matou seria uam capricho, pois é totalmente desnecessário…

    1. O momento histórico era diferente

      O auge da ditadura correspondeu a um período de forte crescimento econômico, tanto que o próprio Lula declarou em uma entrevista que se o Médici fosse candidato naquela época, ganhava de lavada. O resultado foi a quase nula adesão de elementos da classe trabalhadora aos grupos guerrilheiros, onde só se viam estudantes, padres, ex-militares. A própria dispersão das siglas, formando uma salada que hoje poucos se lembram, com não mais que algumas dezenas de militantes cada uma, enfatiza o caráter amadorístico das mesmas. Compare com um grupo tipo as FARC´s colombianas, que existem até hoje e tinham milhares de militantes, a maioria recrutados nas classes camponesas. Nada a ver.

      A lição que se pode tirar é que tanto naquele tempo quanto hoje, para o povão o que importa mesmo é a economia, o resto é bla-bla-bla de intelectual.

  5. Processo permanente

    O fundo do artigo não me parece ter uma novidade, ou seja, não discrepa do que já estamos pensando há um bom tempo. Exceto pela colocação do problema como algo permantente e irreversível. Quando o autor fala em perda da base material, é perda mesmo, e não algo cíclico. De forma geral a classe média já introjetou esse processo permante, de desfazimento da base material sociológica sobre a qual laboram as ideias coletivistas, como avanços para toda a sociedade, ou seja, como atualização do modelo, como caminho para o futuro. Desfragmentar a economia é exatamente um processo sem volta. Daí ter sido viável e até relativamente fácil desmobilizar forças sociais com pouca repressão militar nos dias atuais. A bem da verdade a esquerda decretou sua morte quando adotou o modelo burgues empreendedor para resolução de problemas do próprio sistema, para ganhar uma margem de atuação em programas sociais (que nunca foram de iniciativa da esquerda, mas da própria direita histórica). Uma boa parte da mais valia vai para dar condições de a coletividade trabalhadora se tornar eficaz, daí existir saúde pública, escola pública, praça pública, órgão de previdência. Nada disso foi criado pela esquerda, no máximo é produto precário de suas lutas. Ou seja, o germem de sua destruição está mais na esquerda que no sistema de capital: todos trabalhamos para o bem estar no seio do capitalismo em um processo permanente. O primeiro sindicato foi o primeiro movimento conservador, e ele cresceu, deu uma feição menos horrível para o sistema, e agora já não é mais necessário: o trabalhador desconfia mais de sua representação sindical que do próprio empregador, e tem sido forçado a fazer mais por este que por aquela de bom grado. O trabalhador fetichizou de tal forma o salário, como meio de o impedir de descambar para a criminalidade, e único meio de pagar os boletos do crédito fácil, para o consumo que o caracteriza como ser, que já nem se importa com outras escravidões, por mais sentidas que sejam: para nosso espanto é uma escravidão consciente e consentida.

    O efeito colateral para a classe média é que a desmobilização tem um alto custo para ela: não há a quem recorrer a não ser aos seus algozes. Não vai dar para contar com a classe trabalhadora nos temporais do mercado, em que nacos enormes dos economicamente medianos serão jogados à precariedade. Desmobilização é desmobilização mesmo, e as classes trabalhadoras não irão socorrer as classes médias. A quebra dessa parceria custa de forma geral a toda a sociedade, não porque torna o mercado mais instável, mas porque já não há ninguém pensando essa instabilidade de forma organizada e contra o próprio sistema: já não é só o carro desgovernado, mas os passageiros resignados com qualquer destino.  

    Mas se esse desfazimento da base é preocupante para a esquerda, que hoje é praticamente nula, é, com certeza, mil vezes mais preocupante para a direita: pela primeira vez ela é a responsável por todo o processo. Errando na dose pode dar passos firmes rumo a desfragmentação de todo modelo capitalista, desmontando o mundo do trabalho e se fiando somente no mercado de consumo (a barbárie pura). De fato é possivel começar a pensar que entramos em um ciclo histórico diferente, livre do mesmo processo de contradições que caracterizou o século xix. Os trabalhadores são expectadores, tal como queria a burguesia, agora é suportar o peso da plateia enquanto se evita a barbárie.  

  6. A esquerda se perde por sua arrogância

    Tal como os fundamentalistas religiosos que acreditam que todas as verdades já foram escritas por profetas que viveram séculos atrás, os esquerdistas acreditam que todos os fenômenos atuais podem ser explicados à luz das conclusões que Marx tirou acerca da Europa do século 19. Acham-se portadores de uma verdade absoluta, enquanto todos os outros são hereges. Repetem vezes sem conta as mesmas receitas fracassadas, só para vê-las fracassar novamente. E quando as coisas não dão certo, ficam totalmente perplexos.

    Na Europa do século 19, a classe operária era a mais numeroso e dividia-se em poucas categorias de trabalhadores, todos fazendo as mesmas tarefas repetitivas, trabalhando nas mesmas fábricas, ganhando os mesmos salários e à noite voltando para os mesmos bairros operários. Nessas circunstâncias ficava fácil organizar-se e reivindicar em bloco.

    Hoje o quadro é muito mais complexo. Há muito mais categorias de trabalhadores, cada uma com diferentes características; o setor secundário (indústria) está em declínio à medida em que cresce o setor terciário (serviços), a dispersão geográfica da classe trabalhadora é extrema com a exportação de empregos para outros países. Nessas circunstâncias fica muito mais difícil se organizar e reivindicar em bloco, tanto que o sindicalismo está em declínio, disperso em múltiplos sindicatos com cada vez menos filiados. Mas apesar disso, a classe trabalhadora vive hoje muito melhor do que vivia no tempo de Marx, e seu poder de consumo cresce constantemente. Penso que podemos concluir que o mundo não parou, ele continua avançando. Quem parou foram os esquerdistas.

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