Haddad, o equilibrista, por Mauro Patrão

O ministro Fernando Haddad afirma que as políticas fiscal e monetária são como dois braços de um mesmo organismo.

(Wilson Dias/Agência Brasil)

Haddad, o equilibrista

por Mauro Patrão

A explicação macroeconômica que sustenta a atenção dada pelo minstro Fernando Haddad ao deficit e ao financiamento do gasto púbico é, basicamente, a explicação macroeconômica do mainstream (conjunto de escolas do pensamento econômico ortodoxo) nos EUA e em outros países ditos desenvolvidos. A abordagem do ministro da fazenda do Brasil, Fernando Haddad, é, em grande medida, semelhante à da secretária de tesouro dos EUA, Janet Yellen, que foi também a primeira mulher presidente do Federal Reserve, o poderoso Banco Central dos EUA – e nesses assuntos, não se deve dar atenção ao que os países desenvolvidos aconselham, mas sim ao que praticam.

Após a crise de 2008 e especialmente após a pandemia, diversos economistas decretaram a falência intelectual da visão convencional do mainstream. Aqui no Brasil, um dos mais conhecidos representantes desse grupo é André Lara Resende, que, em janeiro de 2017 [1], passou a defender a chamada teoria fiscal do nível de preços, citando inclusive um dos principais representantes da escola de Chicago (Fresh Water Economics), John Cochrane. A propósito, Lara Resende, mais recentemente, passou a defender a denominada teoria monetária moderna (MMT). Ambas visões são minoritárias no debate macroeconômico nos EUA e nos países desenvolvidos.

A verdade é que bastava Lara Resende e outros economistas terem prestado atenção nas pessoas certas para perceberem que a visão convencional do mainstream econômico nos EUA explicou de forma plenamente satisfatória e antecipadamente o que acabou acontecendo com a economia, tanto no pós crise financeira de 2008, quanto no pós pandemia.

Para conferir essa afirmação, basta ler apenas alguns artigos de janeiro de 2009 [2], [3] e [4] do prêmio Nobel de economia, Paul Krugman, criticando justamente Cochrane e defendendo uma política fiscal mais agressiva pelo governo Obama, além de usar a teoria Keynesiana convencional para mostrar que não iria haver aumento dos juros futuros, apesar do aumento do deficit, nem haveria hiperinflação, apesar do aumento gigantesco da base monetária (Quantitave Easing), como de fato não aconteceu.

Bastaria ainda assistir ao debate entre Krugman e Larry Summers em Fevereiro de 2021 [5], em que o primeiro defendia corretamente que a inflação pós-pandemia era transitória (Team Transitory). Ou ler o artigo de Fevereiro de 2021 [6] no Peterson Institute (o mesmo de Olivier Blanchard) afirmando que a comparação do que estava acontecendo no pós-pandemia não deveria ser com os anos 70 e a guerra do Vietnã, mas com os anos 50 e a guerra da Coréia.

Vejamos como Fernando Haddad se inscreve neste circuito teórico.

O fiscal e o monetário

O ministro Fernando Haddad afirma que as políticas fiscal e monetária são como dois braços de um mesmo organismo. Na sua visão, ambas servem para regular a demanda agregada (a demanda interna e as exportações do país) e ambas têm impactos distributivos.

O controle da demanda agregada, por sua vez, é fundamental para o controle da inflação e do desemprego. Se a demanda agregada cresce mais do que a oferta agregada (a oferta interna e as importações do país), o resultado é o aumento da inflação.

Quando o desemprego está elevado e muitos equipamentos estão ociosos, é mais fácil aumentar a oferta agregada de modo que ela acompanhe um eventual aumento da demanda agregada, sem aumento da inflação.

À medida que o desemprego e a ociosidade diminuem, esse processo vai ficando mais difícil e a taxa de crescimento da oferta agregada começa a ficar limitada pela taxa de crescimento da população em idade para trabalhar mais a taxa de crescimento da produtividade média dos trabalhadores.

Por outro lado, se a demanda agregada cresce menos do que a população em idade para trabalhar combinada com a produtividade média dos trabalhadores, o resultado é o aumento do desemprego. As politicas fiscal e monetária devem, portanto, controlar o crescimento da demanda agregada de modo a obter uma inflação estável com o mínimo de desemprego possível.

Nunca falta dinheiro?

Também é correta a afirmação de diversos economistas ditos progressistas de que nunca “falta dinheiro” para o gasto público. Tanto é assim que em 2020, depois de quatro anos de afirmações constantes e enfáticas de que o governo estava quebrado, como num passe de mágica, “apareceu” a maior quantidade de dinheiro da história brasileira (R$ 638 bilhões em valores atuais apenas em 2020) para combater os efeitos da pandemia.

Em momentos como esse, assim como após a crise financeira de 2008, foi e é fundamental sustentar a demanda agregada através do deficit, não importando o seu tamanho. Mas não decorre daí que o governo deva gastar sem se preocupar com o deficit ou superavit. Para entender isso é preciso entender como funcionam as políticas fiscal e monetária.

A política fiscal aumenta a demanda agregada quando o gasto público cresce mais do que a tributação, pois o aumento da demanda pública supera a eventual diminuição da demanda privada.

Já a politica monetária aumenta a demanda agregada quando a taxa de juros determinada pelo Banco Central (a taxa SELIC) decresce relativamente à taxa de inflação futura esperada, pois os títulos do governo brasileiro se tornam menos atrativos. Parte dos agentes prefere gastar ou investir na economia real (especialmente na construção civil) o que aumenta a demanda interna, enquanto outra parte dos agentes prefere investir em títulos de outros governos (especialmente dos EUA).

Isso aumenta a demanda de dólares em relação à demanda de reais, o que diminui o valor do real em dólares, tornando os produtos brasileiros mais baratos em dólares, de modo que as exportações crescem mais do que as importações.

É importante observar que a política fiscal e a política monetária podem ir na mesma direção, reforçando seus efeitos, ou em direções opostas, atenuando e até mesmo cancelando o efeito da outra.

Por exemplo, a política fiscal pode reduzir a demanda agregada, enquanto a política monetária aumenta a demanda agregada através da redução dos juros. E isso é exatamente o que o que Fernando Haddad está buscando neste momento – claro que sempre dependendo da colaboração do Banco Central.

O pulo do gato

Por que este processo é importante? Primeiro pelo aspecto distributivo, uma vez que os ativos financeiros que são remunerados por juros estão nas mãos do topo da distribuição de renda ou de riqueza. Segundo, porque uma taxa de juros menor viabiliza muitos projetos de longo prazo fundamentais para o crescimento mais rápido da produtividade da economia, como certos projetos de infraestrutura, assim como projetos de pesquisa e inovação o que, por sua vez, aumenta a taxa de crescimento sustentável da renda per capita.

Terceiro, porque taxas de juros mais elevadas do que a de outros países valorizam o real em relação ao dólar, tornando a indústria brasileira pouco competitiva interna e externamente.

Também é importante notar que a política fiscal pode reduzir a demanda agregada diminuindo, mantendo ou até mesmo aumentando o gasto público como proporção do PIB. Basta apenas que a tributação cresça mais do que o gasto público.

O tamanho do gasto público como proporção do PIB e também sua qualidade são decisões eminentemente políticas, partes do conflito distributivo. Neste contexto, a proposta de arcabouço fiscal do ministro Fernando Haddad e especialmente a proposta que foi efetivamente aprovada no Congresso garantem que o crescimento do gasto público seja menor do que o crescimento da tributação.

Isso implica que, se a carga tributária como proporção do PIB se mantiver constante, o tamanho do gasto público como proporção do PIB diminuirá, ou seja, haverá necessariamente uma redução do tamanho do Estado em relação ao PIB.

O Déficit Zero

Por outro lado, Haddad vem buscando elevar no curto prazo a carga tributária sem aumentar impostos, reduzindo o gasto público socialmente injustificado, como várias desonerações que já não têm ou nunca tiveram razão de existir.

Por isso, não faz muito sentido, do ponto de vista dos setores mais progressistas, criticar a busca de Haddad pelo deficit zero, uma vez que, neste momento, esta busca está sendo feita procurando-se tributar parte dos muito ricos que vem pagando pouco ou, em alguns casos, quase nenhum imposto.

A crítica necessária à redução do tamanho do gasto público deve ser direcionada ao alvo correto, o atual arcabouço fiscal, que, apesar de ser consideravelmente melhor do que o famigerado teto de gastos aprovado por Temer e mantido por Bolsonaro, apresenta alguns problemas estruturais, especialmente no médio prazo, e terá necessariamente de ser aperfeiçoado.

Para tristeza dos que criticam Haddad dia sim, o outro também – e a despeito da conhecida precariedade/defasagem do debate econômico no Brasil, o ministro da fazenda de Lula está bem acompanhado na teoria e na prática da condução da macroeconomia.

Mauro Patrão, doutor em economia e em matemática, professor associado da UnB

[1] Lara Resende, A.: Juros e conservadorismo intelectual: https://valor.globo.com/eu-e/coluna/juros-e-conservadorismo-intelectual.ghtml

[2] Krugman, P.: A Dark Age of macroeconomics (wonkish):

https://archive.nytimes.com/krugman.blogs.nytimes.com/2009/01/27/a-dark-age-of- macroeconomics-wonkish/

[3] Krugman, P.: Liquidity preference, loanable funds, and Niall Ferguson (wonkish):

https://archive.nytimes.com/krugman.blogs.nytimes.com/2009/05/02/liquidity-preference-loanable- funds-and-niall-ferguson-wonkish/

[4] Krugman, P.: How Did Economists Get It So Wrong?: https://www.nytimes.com/2009/09/06/magazine/06Economic-t.html

[5] A Conversation with Lawrence H. Summers and Paul Krugman: https://www.youtube.com/watch?v=EbZ3_LZxs54

[6] Gagnon, J. E.: Inflation fears and the Biden stimulus: Look to the Korean War, not Vietnam:

https://www.piie.com/blogs/realtime-economic-issues-watch/inflation-fears-and-biden-stimulus- look-korean-war-not-vietnam

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