“Lutem contra todas as forças do ódio” conclama Morin aos jovens, por Arnaldo Cardoso

Para Morin as possibilidades de conhecer se dão através das grandes interrogações – hoje abandonadas por muitos –, inclusive sobre o próprio ato de conhecer.

“Lutem contra todas as forças do ódio” conclama Morin aos jovens

por Arnaldo Cardoso

Foram muitas as celebrações e homenagens na última semana ao sociólogo, filósofo, humanista e educador Edgar Morin por ocasião de seu aniversário de cem anos. Uma destas celebrações ocorreu no Palácio Élysée, em Paris, sede do governo francês, reunindo o presidente Emmanuel Macron e uma centena de convidados. Morin brindou essa data com a publicação de um novo livro “Lições de um século de vida” (“Leçons d’un siècle de vie”, editora Denoel) no qual em vez de revisitar sua extensa produção para enumerar suas múltiplas contribuições, expôs seus erros, dificuldades e reconhecimento da necessidade do exercício da autocrítica para a vida em sociedade. Uma das lições que compartilha no livro, em um claro exercício de humildade intelectual, é a de que “a história humana é relativamente inteligível a posteriori, mas sempre imprevisível a priori”.

Nos últimos dias também foram diversos os artigos publicados em periódicos de todo o mundo destacando aspectos de sua produção intelectual, inclusive neste Jornal GGN, que disponibilizou o ótimo “Cem anos de Edgar Morin, o filósofo da complexidade” de Rômulo de Andrade Moreira, Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia e Professor de Direito Processual Penal da Universidade Salvador – UNIFACS.

Eu também não me furtei o prazer de reler Morin, em particular o trabalho “Os sete saberes necessários à educação do futuro” e escrever uma resenha que será brevemente publicada. Produzido por solicitação da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) em 1999, Morin inicia esse trabalho salientando a necessidade de conhecer o próprio processo de conhecimento, e em seguida defende a realização de uma profunda reforma da educação, ou melhor, de uma mudança de paradigmas para a educação.

Para Morin as possibilidades de conhecer se dão através das grandes interrogações – hoje abandonadas por muitos –, inclusive sobre o próprio ato de conhecer. Afirma que o reconhecimento da complexidade é o primeiro passo para se opor às tentativas simplistas de explicar a realidade, fragmentando-a. Os processos reflexivos devem ser inseparáveis dos de objetivação.

Se em 1999 já se fazia urgente o reconhecimento dos danos da continua escalada da especialização estimulada pelo utilitarismo econômico, hoje isso é ainda mais imperioso para vencermos os problemas que se agravam a cada dia e comprometem o futuro do planeta e da humanidade. No mencionado estudo, Morin nos leva a reconhecer que, sendo os problemas cada vez mais “multidisciplinares, transversais, multidimensionais, transnacionais, globais e planetários” é indefensável que os saberes continuem desunidos, divididos e compartimentados.

A noção da responsabilidade intelectual sempre esteve presente no trabalho de Morin integrado com o conceito de “conhecimento pertinente”, atento ao contexto, ao plano local, nacional e global.

Para quem como eu teve a fortuna de conhecer o pensamento de Edgar Morin já nos anos de graduação na PUC-SP (1), poder constatar no presente a pertinência de suas ideias e legitimidade de suas bandeiras só faz aumentar a admiração por sua extraordinária trajetória.

Em uma ótima e recente entrevista para a Rádio France (2) Morin deu mais uma vez mostra de sua capacidade de olhar para as partes e para o todo e dirigiu sua mensagem principalmente aos jovens. Reproduzo alguns trechos da entrevista, inspirado nos valores afirmados por Morin, da amizade, da compreensão da educação como processo de troca de saberes, do uso da tecnologia em rede para disseminar ideias portadoras de futuro.

Tendo nascido em uma Europa ainda sob os escombros da Primeira Guerra Mundial e aos vinte e um anos, já sob a Segunda Guerra Mundial, juntado à Resistência, Morin tem muito a nos ensinar sobre estratégias de resistência em tempos sombrios: “O que me salvou, eu acho, foi que eu lia muito e ia ao cinema sempre que podia. Fugia para a cultura. […] Essa fuga da minha própria dor me fez descobrir a realidade por meio da imaginação. [..] Romances e cinema têm sido educadores mais importantes para mim até do que a escola”.

Lembra que “a Resistência era formada principalmente por jovens: nossos líderes tinham entre 24 e 28 anos. Foi um movimento em que os jovens expressaram suas aspirações e sua revolta. Acho que os jovens devem expressar suas aspirações e revoltas ao mesmo tempo, como nós fizemos”.

Instado a traçar paralelos entre os perigos da época de sua juventude com os de hoje, Morin frisa que nos anos da Segunda Guerra o principal perigo era a Alemanha nazista e seu projeto de dominar o mundo. Hoje, além de citar a destruição ambiental, as armas nucleares, a financeirização da economia, as desigualdades sociais, os fanatismos e os fechamentos sobre si mesmo, Morin mostra-se especialmente preocupado com “as crises da democracia, que são muito graves”. Ao reconhecer semelhanças em meio às diferenças ele avalia que “Acima de tudo, há a falta de consciência, de lucidez, um caminhar em direção ao abismo”, mas nega que isso seja um fatalismo e confessa que mantém as esperanças.

Dirigindo-se aos jovens, aconselha que “sempre precisamos nos mobilizar por uma coisa comum […] Você não pode se realizar, estando trancado em seu próprio egoísmo. Devemos também participar da humanidade e esta é uma das razões, creio eu, que me manteve alerta até a minha idade”.

Quanto ao atual emprego da tecnologia em todas as esferas da vida, ele não esconde seus temores da evolução para uma sociedade neototalitária e alerta: “Devemos entender que tudo o que emancipa técnica e materialmente pode ao mesmo tempo escravizar”.

Após salientar que “não devemos esquecer que o fanatismo é galopante em toda parte” ele complementa com a avaliação de que “estamos em um momento em que temos, todos humanos, uma comunidade de destino” e observa que a atual pandemia tem sido uma prova disto, uma vez que todos sofremos, em todo o mundo, as consequências de nossas ações como indivíduos e sociedades.

Ele ressalta ainda que, apesar de termos uma comunidade de destino “estamos em tal angústia que, em vez de nos tornarmos conscientes dessa comunidade, estamos nos fechando em nossa própria identidade étnica, religiosa ou nacional”. Em seguida frisa que não é contra a nação e que vem desde muito tempo defendendo a noção de Terra Pátria que abriga todas as pátrias e nações, sem dissolvê-las.

Sempre atento aos temas que mobilizam a sociedade, as investidas contra a liberdade de expressão não lhe escapam da análise. Defensor fervoroso da liberdade de expressão defende que “é uma causa que deve ser defendida permanentemente”. No entanto, acredita que os jornalistas devem ter “um senso de complexidade e responsabilidade. Isso é o que deve ser levado em consideração. Cabe aos jornalistas saber quando evitar algo ofensivo”.

Sobre a complexidade, marco conceitual de sua reflexão nas últimas décadas, ele sintetiza “a complexidade é ver a ambivalência das coisas” e lembra que “o improvável acontece na história”.

Sobre o improvável na história, observa que mesmo em meio às trevas, eventos felizes acontecem, e cita o pontificado do Papa Francisco.

“Veja o Papa Francisco. Ele é o primeiro papa em séculos que voltou aos princípios do evangelho e tomou consciência dos perigos que ameaçam a Terra, da pobreza e da miséria humana. Era imprevisto que este papa sucedesse o papa anterior que estava tão fechado. […] A história nunca é escrita com antecedência”.

Por fim nos propõe lembrar que “sempre há a luta entre o que podemos chamar de forças de união, associação, amizade, Eros, e as forças opostas de destruição e morte, Thanatos. É o conflito desde a origem do universo onde os átomos se associam e onde as estrelas se destroem e são comidas pelos buracos negros. Tem-se união e morte em todos os lugares. Você tem isso na natureza física e no mundo humano. Digo às pessoas, aos jovens: tomem partido das forças positivas, as forças da união, da associação, do amor e lutem contra todas as forças do ódio, da destruição e do desprezo”.

Edgar Morin aos cem anos continua nos dando valiosas lições e apostando que todos podemos fazer muito melhor.

Salve Morin e que suas lições inspirem as novas gerações!

Notas:

1. A PUC-SP nos anos 1990 firmou-se como um fértil ambiente para a pesquisa e difusão do pensamento complexo, abrigando vários eventos inclusive com a presença de Edgar Morin. Dias atrás eu recordava isso com os amigos Marcelo, Mirian, Maria Lúcia e Marianne, que viveram esses anos como estudantes naquela democrática instituição de ensino e que hoje enfrentam com repertório privilegiado, as dificuldades e desafios como educadores e pesquisadores das Ciências Sociais no Brasil.

2. Tomei conhecimento da entrevista de Morin para a Radio France por intermédio do amigo francês Jean-Yves, interlocutor ininterrupto há décadas. Link para a entrevista: https://www.francetvinfo.fr/culture/livres/edgar-morin/grand-entretien-nous-n-avons-pas-la-conscience-lucide-que-nous-marchons-vers-l-abime-alerte-le-philosophe-edgar-morin-qui-fete-ses-100-ans_4693409.html?fbclid=IwAR1i50uv67MyPBNUW3E7YFXiaxA2IbVnV_TFWkfeFekaoUcnb4yPksiivB4#xtor=CS2-765-[autres]-

Arnaldo Cardoso, sociólogo e cientista político formado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

Este artigo não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN

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