Médicos pelo Brasil: privatização e carrreira fake, por Vinícius Ximenes Muricy da Rocha

Sanitarista alerta para o cavalo de troia que traz o Médicos pelo Brasil para a saúde pública.

A falta de médicos, Atenção Primária à Saúde e outras pautas da área estão sendo transformadas em meros dispositivos baseados no gerencialismo e mercadoria. – Foto: Arquivo Pessoal

do Saúde Popular

Médicos pelo Brasil: privatização e carrreira fake

por Vinícius Ximenes Muricy da Rocha

Na terça-feira (24) tivemos reunião da Comissão que apresentou o relatório relacionado ao Médicos Pelo Brasil. O relator, senador Confúcio Moura (MDB-RO) fechou de forma fiel com o governo. Na verdade, foi o grande artífice de uma articulação que envolveu coesionar o campo da direita e centro-direita em torno da proposta do governo, que chegou fragilizada no Congresso pela falta de uma construção mais ampla com seu próprio campo político.

Nesse sentido, o relator apostou em três estratégias:

1. Arregimentar um campo parlamentar difuso, que envolve interesses de escolas privadas com revalidação de diplomas estrangeiros, e tem uma base social de médicos brasileiros formados no exterior e uma bancada bastante eclética de deputados de diversos partidos de centro-direita.

2. Na reta final (últimos três dias), partiu para a negociação direta com as entidades médicas, que colocaram a faca no pescoço e ganharam menos do que esperavam, mas garantiu-se ao Conselho Federal de Medicina (CFM) ter controle do mecanismo de um Revalida Único nacional, e estão agora as três entidades dentro do Conselho Deliberativo da Agência para o Desenvolvimento da Atenção Primária à Saúde – Adaps, Associação Medica Brasileira (AMB) e Federação Nacional dos Médicos (Fenam) que foi incluída.

3. Apesar dos acenos, isolou a articulação com a oposição — que trouxe, especialmente o PT, importantes contribuições — limada das chamadas “articulações preferenciais”. Assim a linha da relatoria foi “garantir a proposta do governo”.

O relatório tende a ser aprovado, apesar de uma chuva de destaques que deverão ocorrer na comissão mista e plenário do Congresso. Se esta estratégia irá minimizar estragos na proposta em curso, ou retardar um pouco a tramitação, só saberemos da eficácia na chegada aos plenários da Câmara e do Senado. E também se os principais partidos da oposição (PT, PSOL, PC do B, PSB, PDT) vão conseguir priorizar a pauta (a dedicação à mesma está sendo tarefa de poucos parlamentares), entrar em consenso numa linha coordenada para realização dos destaques e atrair setores do centro diante das contradições da proposta apresentada.

Contradições

Dentre as principais contradições que repousam na proposta do governo, é importante destacar:

1. Há desconfiança no centro e centro-direita sobre o formato da Agência de Desenvolvimento da Atenção Primária à Saúde (Adaps) como Serviço Social Autônomo (SSA) – há cada vez mais questionamentos na Justiça a entes do terceiro setor e instituições de direito privado assumirem grande proporção de atribuições que deveriam ser do Estado, ligados à administração direta. Ou seja, o que deveria ser complementar ou de cooperação vira a verdadeira “inteligentsia” da gestão da saúde, fragilizando autoridade de gestores municipais e estaduais.

2. A proposta de especialização em Medicina de Família e Comunidade trazida pelo governo, com remuneração por bolsa bem acima da residência médica, e incluindo algo que não havia no Mais Médicos – titulando não só especialização lato sensu, mas também especialidade – traz forte vetor de esvaziamento dos programas de residência em Medicina de Família e ComunidadeO governo, declaradamente, assumiu que não tem recursos previstos para complementação de bolsas de residência no país. Esta discussão foi jogada para um campo de “possibilidades” em um outro debate também polêmico, que envolve o novo modelo de financiamento da Atenção Primária à Saúde (APS). Ou seja, apostando em contextos transitórios e por dispositivos infralegais.

3. Ficou claro para as entidades médicas e o conjunto dos médicos brasileiros que a proposta trazida pelo governo Bolsonaro não configura uma Carreira de Estado para Médicos, tão almejada pelas entidades da categoria. Havia um jogo para minimizar este fato, com a tentativa de ressaltar os avanços da contratação via CLT, e um esboço de carreira (não de Estado). Contudo, sendo a proposta da Adaps, um ente privado paraestatal (Serviço Social Autônomo – SSA), o argumento foi por terra. Nem as salvaguardas previstas para celetistas de empresas públicas, por exemplo, são garantidas neste tipo de instituição contratante.

4. O relator apostou numa estratégia de sensibilização social, a partir da situação dos cubanos que permanecem no Brasil, garantindo que poderão ser contratados por mais dois anos dentro da proposta do Programa Mais Médicos, que  neste sentido será mantido, apesar do Médicos Pelo Brasil. Contudo, já há sinalização da liderança do governo na Câmara de veto do presidente à proposta e forte oposição das entidades médicas.

Controle da saúde em disputa

O ministro da saúde, Luiz Henrique Mandetta (DEM-MS) está sob pressão e em iminente risco de perda do cargo. Aprovar o Médicos Pelo Brasil virou praticamente uma questão de sobrevivência, visto que passados nove meses de governo, o Ministério da Saúde não tem nenhuma ação marcante para mostrar. O governo, fora a instabilidade política interna produzida por ele próprio, uma agenda de reformas da Previdência e Trabalhista paralisadas pelo avanço cadenciado do próprio DEM e a falta de recursos impostos pela Emenda Constitucional 95 – Teto de Gastos -, vive contexto de fortes disputas pelo cargo. Além de rumores do MDB querer mais espaço, com Osmar Terra ou Alberto Beltrame, entra também na disputa o PP, a partir do deputado Hiran Gonçalves (PP-RR), que se tornou o principal interlocutor das entidades médicas no Congresso. Posição aliás que em outros tempos foi ocupada pelo próprio Mandetta, hoje sob desconfiança das entidades por acordos assumidos e não cumpridos.

Em relação às disputas mais setoriais do campo da saúde, um novo time de técnicos busca sua legitimação política frente à categoria médica e em enfrentamento aos setores históricos do Movimento Pela Reforma Sanitária. São um grupo de médicos de família e comunidade, com orientação liberal-conservadora, valores e discurso do mercado, que tentam com a Adaps criar o seu “aparelho” dentro do Estado para sua reprodução política.

A Adaps será para estes uma espécie de “novo Inamps” para a APS brasileira. O intermediador de relações com o setor privado, inclusive podendo garantir a contratação de seguradoras e planos de saúde, projeto que está contando com a colaboração há uma década de muitos médicos de família e comunidade, que migraram para estas empresas e hoje são CEO dessas, ajudaram a construir capacidade instalada nessas instituições, e agora precisam achar um comprador que consiga proporcionar um avanço nos lucros a partir de compra em escala. Para isso, nada melhor do que o Estado…apesar do discurso “liberal”.

Mas para o Estado cumprir este papel, mecanismos como desterritorialização da APS, imposição de uma nova “cesta básica da assistência médica primária modernizada”, a partir de um “novo” modelo de carteira de serviços, e mudanças nas regras de financiamento da APS precisam ser impostos como medidas estruturantes.

É uma proposta que não difere em nada do receituário neoliberal: desregulamentar, focalizar, precarizar e privatizar. Agora revivido num formato ultra.

Estes novos setores da tecnoburocracia também mostraram como funcionam seus métodos de construção política. Na primeira ocasião “rifaram” a entidade que historicamente os projetou como interlocutores dentro do setor saúde, no caso a Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC). Apesar de ter sido mencionada como instituição prioritária no processo de construção do Médicos Pelo Brasil em audiências públicas pelo próprio governo, a SBMFC não foi mencionada no texto legislativo, não teve nenhuma de suas propostas sobre o tema incorporadas nas mediações para o acordo do texto proposto. Complementação de bolsas para os programas de residência em Medicina de Família e Comunidade e limite até 2022 para os dispositivos de redução da condicionalidade de tempo para titulação fora da residência não foram nem mencionadas em nenhum momento por estes interlocutores do governo.

Por trás do agencialismo

Assim, cabe atenção redobrada aos setores em defesa de Democracia e Saúde no Brasil, em relação a este novo ente que está sendo criado, a Adaps, e aos seus operadores políticos. Aproveitando-se do período de arbítrio e autoritarismo em curso, eles vêm ocupando espaço numa renovação conservadora da agenda do agencialismo, como estratégia de fragilizar o conceito de saúde como direito, reduzindo a pauta setorial a mero dispositivo baseado no gerencialismo e a saúde como mercadoria.

Para a população de um modo geral, o cuidado é com a cortina de fumaça que irá se formar. Com o argumento de “melhor gestão”, na verdade o que acontecerá é um sofisticado mecanismo de transferência de recursos públicos ao setor privado, sem uma devida correspondência na melhoria da atenção à saúde prestada, apesar do discurso e da promessa.

* Vinícius Ximenes Muricy da Rocha é médico de família e comunidade, sanitarista, servidor da Secretaria de Saúde do DF e professor universitário. Também é membro do Núcleo-DF da Rede Nacional de Médicas e Médicos Populares e do CEBES-DF.

Redação

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