Nem tanto ao céu, nem tanto à terra
por Jorge Alexandre Neves
Acho imprudente fazer o vaticínio de que Bolsonaro não conseguirá a reeleição, como fez Marcos Coimbra, na Carta Capital (1). Todavia, acredito ser um grande equívoco superestimar sua força política e eleitoral, como tem feito Marcos Nobre (2). De todos os muitos equívocos que enxergo na entrevista deste último ao Marco Zero, o maior é este:
“Nós temos pouco tempo e não só Bolsonaro não está parado, como ele está muito bem organizado. E ele sabe que está no piso dele. Daqui pra eleição, ele só vai crescer, não vai diminuir. A menos que aconteçam mais catástrofes, mais tragédias, e ninguém pode torcer por isso. Torcer por terceira ou quarta onda, apagão? Você vai torcer pra uma desgraça acontecer com o país? Não pode. O que é isso, gente? Não dá”.
Vamos por partes, pois nesse curto trecho há vários equívocos:
- Não só nessa entrevista, mas em várias outras, Marcos Nobre tem deliberadamente tentado diminuir o papel e a atuação de Lula, em relação à eleição do próximo ano. Sabemos que Bolsonaro não está parado, mas dizer que ele está “muito bem organizado” é demais. Embora Bolsonaro não esteja parado, não conseguiu fazer algo extremamente básico – criar um partido pra chamar de seu – e, embora tenha o poder da caneta e orçamento federal, até agora, não conseguiu sequer “comprar” um partido para lhe ceder a legenda. Por sua vez, o que dizer do alucinado ritmo de articulação política de Lula, um craque incontestável no assunto?
- Em segundo lugar, de onde vem tanta certeza de Marcos Nobre (ele faz essa afirmação também em outra parte da entrevista) de que Bolsonaro está no seu piso? Há razões abundantes para esperar que possa ocorrer um maior derretimento da popularidade e da intenção de votos nele. E boa parte dessas razões está justamente no que ele fala em seguida e comentarei no próximo tópico.
- De tanto analisar os bolsonaristas e se preocupar com eles, Marcos Nobre teria passado a acreditar em pensamento mágico? Que conversa é essa de torcida? Definitivamente, Marcos Nobre não pensa como um cientista. Não se trata de torcida, há informações objetivas para acreditar que há uma probabilidade bastante razoável de ocorrer apagões ou até mesmo racionamento de energia elétrica. E quem está dizendo isso é o ONS (por pressão política, deu uma aliviada recentemente). No mínimo, a escassez de energia irá ter dois impactos: a) irá impulsionar a inflação, que já está muito alta e; b) irá funcionar como um freio de mão para o crescimento econômico. O mesmo se pode dizer sobre uma nova onda de contágio da Covid-19 (3). Essa previsão vem de instituições científicas das mais renomadas do Brasil e do exterior. A volta da média móvel diária de mortes ao patamar de 2.000 casos pode ser o marco inicial da terceira onda. Adicionalmente, os entraves econômicos são muito significativos. A inflação alta tem levado o COPOM a elevar a taxa básica de juros – embora uma política equivocada e ineficaz, neste momento – e isso será mais um freio no crescimento. Além disso, tem-se:
- 1. Há, de fato, um relevante boom de commodities que teve início no final do ano passado. Todavia, um crescimento do PIB baseado fundamentalmente na exportação de commodities está longe de beneficiar naturalmente a maior parte da população. Um bom exemplo é o da Colômbia, que tem tido um crescimento continuado do PIB totalmente baseado na exportação de commodities. Em 2018, o crescimento foi de 2,7% e em 2019 de 3,3%. Em 2020, a queda foi maior do que a brasileira, -6,6%, mas no primeiro trimestre deste ano o crescimento foi de 2,7%, mais do que o dobro do Brasil. Esse desempenho relativamente bom da economia colombiana não tem sido suficiente, contudo, para dar popularidade ao presidente Iván Duque, muito pelo contrário. Por que? Simplesmente porque o modelo de crescimento não beneficia a maior parte da população.
- 2. Mesmo que o crescimento econômico gere empregos, isso não é garantia de melhoria das condições de vida da população em geral. Em outubro de 2019, publiquei um artigo no GGN (4) mostrando exatamente isso numa comparação entre Portugal e Espanha. Embora a economia portuguesa tenha conseguido criar muito menos empregos (inclusive em termos relativos) do que a espanhola, a geringonça conseguiu permanecer no poder em Portugal, ao passo que o governo de direita foi derrotado pelo PSOE. Por que? A resposta está no artigo, enquanto os salários subiam nas terras lusitanas, eles caiam entre os castelhanos (mesmo com um forte crescimento do emprego). Isso ocorreu, em muito, devido à reforma trabalhista espanhola, que fez com que as correias de transmissão do crescimento econômico para gerar melhores empregos com maiores salários fossem rompidas. O mesmo vai acontecer no Brasil, pois tivemos uma reforma trabalhista semelhante à espanhola. Ou seja, para que o crescimento econômico gerado pelo boom de commodities – que será limitado pela escassez de energia, pela falta de investimentos e pela elevação das taxas de juros – se transforme em melhorias reais para a maior parte da população, faz-se necessária a implementação de políticas públicas que o governo Bolsonaro não quer fazer, não sabe fazer e não tem tempo de fazer até a eleição.
Eu lembro de um texto de Adam Przeworski num livro com Bresser Pereira e José María Maravall (5). Ele estima um Modelo de Equações Estruturais para mostrar que o peso negativo sobre o voto do desemprego é maior do que o da inflação. Imagine-se o atual caso, no Brasil, quando temos tanto o desemprego quanto a inflação em níveis muito altos (6).
Adicionalmente, ficamos sabendo, agora, que o nível de felicidade dos brasileiros está extremamente baixo (7), que o país caiu drasticamente no ranking internacional de investimentos produtivos externos (8), que metade dos jovens brasileiros quer ir embora do Brasil (9), que o consumo das famílias caiu no primeiro trimestre (10) – apesar da retomada do crescimento do PIB –, que o poder aquisitivo da população está despencando (11) e que o endividamento das famílias está crescendo rapidamente (12). Um cenário como este está longe de indicar que Bolsonaro bateu no seu piso de popularidade e chegará muito forte na campanha de reeleição. É óbvio que irá agir para tentar reverter esse cenário até lá. Todavia, não será nada fácil conseguir a reversão. Além da absurda incapacidade administrativa, haverá restrições orçamentárias. Mesmo considerando certa folga de caixa em 2022, não haverá os R$ 300 bilhões gastos com um auxílio emergencial robusto, como em 2020. As crescentes manifestações de rua e o desgaste advindo da CPI serão as cerejas do bolo de dificuldades que Bolsonaro terá a enfrentar até as eleições. Ele terá que enfrentar ainda muitos meses de “tempestade mais do que perfeita” (13). Alea jacta est!
6. Principalmente o desemprego, que está em níveis recordes. Mas a inflação para a maior parte da população também está muito alta, acima do padrão geral que já é elevado. https://www1.folha.uol.com.br/colunas/viniciustorres/2021/06/alem-de-lula-adversarios-de-bolsonaro-sao-abstracoes-sem-forma-politica.shtml.
10. https://www.moneytimes.com.br/consumo-das-familias-cai-17-no-primeiro-trimestre-de-2021/.
Jorge Alexandre Barbosa Neves – Ph.D, University of Wisconsin – Madison, 1997. Pesquisador PQ do CNPq. Pesquisador Visitante University of Texas – Austin. Professor Titular do Departamento de Sociologia – UFMG – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas
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