Francisco Celso Calmon
Francisco Celso Calmon, analista de TI, administrador, advogado, autor dos livros Sequestro Moral - E o PT com isso?; Combates Pela Democracia; coautor em Resistência ao Golpe de 2016 e em Uma Sentença Anunciada – o Processo Lula.
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Novos caminhos à esquerda, por Francisco Celso Calmon

Na dialética da luta política, ação e organização se retroalimentam. Organização sem ação produz o burocratismo diletante, ação sem organização produz aventureirismo. Pela organização do povo em comitês!

Novos caminhos à esquerda*

Comitês Populares pela Democracia

por Francisco Celso Calmon

Precisou a casa ruir após o golpe parlamentar-judicial de 2016 e instalar-se o golpismo aos direitos dos trabalhadores, ao patrimônio e à soberania nacional, para acordar a todos da letargia política no exercício da luta de classes.

A luta pela redemocratização, iniciada nos anos 80 após a anistia, levou a esquerda gradativamente a abandonar a concepção de luta de classes como eixo central das transformações (ou retrocessos) sociais. Adotou, em substituição, uma visão bonapartista do Estado, a serviço de todas as classes, e a crença na sua conciliação, como foram os governos de Lula e Dilma.

Quando a casa começou a ruir com o golpe de 2016, o diagnóstico de que a esquerda estava desconectada das bases foi unânime.

Mas parou por aí e nas críticas ao PT.

Na verdade, era mais do que isso: a esquerda estava de calças curtas na luta de classes.

A causa das causas ficou na margem, à espera de ser resgatada para o centro da questão.

“De tempos em tempos os operários triunfam, mas é um triunfo efêmero. O verdadeiro resultado de suas lutas não é o êxito imediato, mas a união cada vez mais ampla dos trabalhadores” (Marx e Engels, Manifesto Comunista).

A concepção e operação da luta de classes se concentram no eixo perene de Formar, Organizar, Protagonizar – FOP – os trabalhadores, para construir o empoderamento e a consciência de classe de um projeto alternativo ao capitalismo e à democracia burguesa.

Ao abandonar a concepção de luta de classes e adotar a da conciliação, a arena de atuação ficou especialmente circunscrita ao cercadinho institucional, e as relações republicanas foram a expressão comportamental do bonapartismo caboclo. Como efeito em cadeia, produziu-se a burocratização e alienação dos partidos de esquerda e das entidades dos trabalhadores como sujeitos da transformação estrutural.

Essa adoção vai ocasionar, na dialética das lutas sociais, um divórcio amigável entre as lutas segmentais, como a pugna dos negros, indígenas, mulheres, LGBTs, de um lado, e a luta matriz, que é a luta coletiva de classes, de outro. Amigável, mas que nutriu a concepção bonapartista-republicana, consolidou o peleguismo, ampliou a atomização, e gerou uma plêiade de líderes sociais que viveram – e parte ainda vive – às custas e como satélites dos governos, melhor ainda: como pirilampos.

Nestas últimas décadas o vermelho da esquerda desbotou. Daí a adjetivação de esquerda desbotada, esquerda rosinha-salmon e esquerda cosmética – que é a minha preferida. Com quaisquer denominações, estamos, como sempre estivemos na história, entre a predominância do peleguismo ou do esquerdismo bravateiro.

A debacle do Estado Democrático de Direito pelo golpismo comprovou que, em última instância, a democracia popular é incompatível com o capitalismo, sobretudo com o capitalismo no Brasil, patrimonialista e sem riscos aos capitalistas, cuja classe dominante é marcadamente conservadora e reacionária, portadora de preconceitos e autoritarismo. A democracia burguesa serve aos interesses dos capitalistas, assim como no futuro a democracia popular servirá aos interesses dos trabalhadores. Nesse entendimento, o Poder Judiciário sempre foi o garantidor dos interesses do poder dominante. Oportunidade de alteração qualitativa nos tribunais superiores houve e fora desperdiçada, por método errado, pelos governos de Lula e Dilma.

Por tudo, a evolução da democracia terá limites, via golpes das classes dominantes, ou terá ruptura, via classes trabalhadoras. Golpes e rupturas fracassados fazem parte do cardápio da história. A construção perene da democracia sustentada dependerá das classes trabalhadoras, especificamente do seu estágio de consciência e organização.

Meia sola, isto é, organização tradicional e consciência reformista, não sustenta a democracia e muito menos protagoniza uma ruptura.

A organização deve ser de base, produzindo a consciência coletiva de um projeto capaz de ser agregador da maioria da sociedade, inclusive da classe média.

Reformas executadas por governo popular devem estar em sintonia com a Formação, Organização e Protagonização – FOP – dos trabalhadores, sob pena de ficarem sujeitas a retrocessos sem efetiva e pronta resistência.

A teoria libertadora se tornará em força material à medida que a intelectualidade de esquerda seja organicamente da classe trabalhadora e/ou das organizações dela. A intelectualidade acadêmica fechada em guetos não colaborará com o movimento transformador consoante a sua potencialidade. Será necessário ligar-se às comunidades nos seus entornos e realizar a mediação entre o saber e a práxis. Nesse sentido, os trabalhadores do magistério, mormente do ensino médio, têm potencialmente o papel da interseção dialética entre a teoria revolucionária e a prática da luta de classes.

O Sistema, através dos seus aparelhos ideológicos, mantém a hegemonia. Construir aparelhos para o contraponto faz parte do eixo FOP. O enfretamento ao Sistema deve ser amplo, continuado e permanente.

Se entendermos a luta de classes como fenômeno objetivo (motor da história), que independe de querer ou não, e perene, consoante à concepção materialista da história, a estratégia terá que estar em conformidade a essa concepção, com variações e adequações táticas.

A história da esquerda no Brasil é pendular entre o peleguismo e o infantilismo. Como romper é um desafio tão importante quanto a busca da unidade.

A compreensão de alguns conceitos que foram deformados na teoria e na prática pode ser um primeiro passo.

A luta de classes ocorre em três níveis, em termos didáticos: o primeiro no econômico, o segundo no social e o terceiro no político.

No primeiro, a demanda é basicamente por melhores salários e eventualmente por melhorias nas condições de trabalho. Muitos líderes, ainda repetindo o século dezoito, acreditam que essa luta atinge o capital, quando às vezes até trabalham em seu favor, pois os patrões aproveitam para reestruturar os meios de produção e as folhas de pagamento. Numa falsa impressão de terem cedido, dão com uma mão e retiram muito mais com a outra. Na luta econômica, o trabalhador mantém a consciência de classe em si, ou seja, de preservar a sua sobrevivência enquanto tal, ou cai na ilusão de conquistar elevados salários que possibilitem comprar os direitos sociais, sem ir além disso.

Destaco nesse nível a importância dos trabalhadores do setor financeiro (bancos, bolsas, corretoras de valores etc), uma vez que no ápice do sistema econômico está o capital financeiro.

Na luta social, a classe trabalhadora amplia seus interesses e a sua visão da estrutura do sistema e incorpora segmentos médios da sociedade, possuidores das mesmas demandas pelos direitos sociais. Saúde, educação/cultura, emprego/lazer, moradia, transporte, segurança e seguridade, compõem a plêiade pelo bem-estar social dos trabalhadores.

Cada demanda social possibilita agregar a maioria da sociedade carente de cada um desses direitos. Do salário mínimo ao transporte gratuito aos necessitados, aos idosos e à juventude, saúde e educação gratuita para toda a população, passando pela aposentadoria digna, compõem uma plataforma de luta que agrega todos os segmentos de trabalhadores, da base estrutural aos segmentos intermediários.

É na luta social que a classe trabalhadora amplia a sua consciência e organização e começa a construir sua liderança por uma sociedade alternativa à atual, que oprime e explora a maioria esmagadora do país.

Destaco nessa categoria a importância da luta pela valorização do salário mínimo.

Na luta política é onde se dá a disputa pelo poder, tanto institucional quanto não institucional. Os poderes institucionais reais, como o Executivo, Legislativo, Judiciário, Ministério Público, Policia Federal e Forças Armadas, são ocupados por sufrágio ou por concurso. Os poderes ocupados via concursos estão hipertrofiados quando deveriam ser hipo, pois não são oriundos da soberania popular. Os poderes fora do campo institucional são os partidos, sindicatos, federações, centrais, frentes, fóruns, movimentos sociais, conselhos, enfim, entidades organizatórias da sociedade.

É na luta política que se concentra a disputa decisiva da luta de classes. Dos três andares na estrutura da sociedade, é a política o andar mais alto. Entretanto, na dialética da luta há mediações entre eles, que se encontram e se reforçam mutuamente, e por isso se diz que toda luta de classe é uma luta política.

Nos três campos de luta pode e deve-se travar a luta ideológica, quer dizer, diagnosticar os males do sistema capitalista e contrapor com outros valores. Nessa seara conscientizar que a corrupção, por exemplo, tem origem no sistema de classes e está no coração do atual capitalismo de desastre.

Estratégia e Projeto de nação precisam focar no modo de conquistar a paridade de armas com vistas a construir a hegemonia ideológica (a maioria da sociedade favorável a um sistema alternativo), que permitirá a ruptura e transição. Nesse vetor a soberania e o patrimônio nacional são outros valores a defender. É preciso galvanizar todos os segmentos sociais vítimas do Sistema.

A maioria da sociedade é de mulheres, 52,5%. A maioria da sociedade é de negros, 54,5%. A maioria da sociedade é de trabalhadores, em torno de 66% da população.

Na outra ponta, os capitalistas no país constituem uma minoria tão ínfima que têm nome e sobrenome.

Se as mulheres são discriminadas, se os negros são discriminados, e todos os trabalhadores são explorados e oprimidos, por que a correlação de forças na política é favorável aos representantes da classe dominante?

As lutas segmentais/identitárias devem ser matizadas à luz da luta de classes. Todas elas devem apontar e se inserir nesse leito, caso contrário servirão aos carreiristas, arrivistas, que almejam chegar às elites ao invés de objetivarem as transformações estruturais.

Estratégia e Projeto serão os instrumentos potencias da unidade na prática. Não é a busca da unidade pela unidade, mas da unidade na práxis. Sua construção não depende de uma pré-unidade, mas de estarem abertos para correções e inclusões na dinâmica da política, pois, nem uma e nem o outro são acabados.

Com os fundamentos e alicerces argamassados, as torres de edificação sustentarão transições e impedirão, com resistência, retrocessos rumo à barbárie.

Os parlamentares no Congresso, Assembleias e Câmaras; governadores e prefeitos democráticos apoiando a resistência em conexão e trincheiras próprias; juristas, advogados e demais operadores do direito, no judiciário, nos ministérios públicos e em suas respectivas entidades; intelectuais, artistas e demais, nas cátedras, palestras, manifestos, teatros, cinemas, meios de comunicação; trabalhadores nas suas organizações preparando e disparando greves – geral, locais, departamentais, operações tartaruga e outras formas mais; movimentos sociais em seus acampamentos, marchas e ocupações; a juventude, com sua ousadia e destemor característicos, em passeatas, ocupações e criativas formas de protestação; e TODOS nos Comitês Populares pela Democracia – CPD, criando uma rede com o objetivo geral de derrubar a tirania protofascista instalada nas instituições do Estado e de construir a democracia de todas e todos.

Os comitês Lula livre podem e devem ser ampliados para o objetivo maior da luta pela democracia, sem perder a centralidade de curto prazo. O trabalho de construir uma democracia popular sustentável é de médio para longo prazo. Recomeçar evitando os mesmos erros é a autocrítica prática, com os ensinamentos da história.

No combate à ditadura militar tivemos a experiência exitosa dos Comitês Brasileiros pela Anistia – CBAs –, no país e no exterior, de composição ampla e de estruturação e ação horizontal.

Cada CPD – Comitê Popular pela Democracia – deverá definir o que fazer no seu chão: chão da moradia, chão do trabalho, chão da terra, chão do estudo, usando das características conhecidas como guerrilhas democráticas: fustigamentos, constrangimentos, surpresas, ocupações temporárias, avanços e recuos, et caterva, com inteira autonomia e mobilidade, com os focos centrais imediatos na luta pela liberdade do Lula e por dar um basta ao governo protofascista e seus aliados institucionais. (Basta de Bosta!).

Parafraseando Carlos Marighella, nenhum comitê precisa pedir licença para realizar ações contra a tirania.

Na dialética da luta política, ação e organização se retroalimentam. Organização sem ação produz o burocratismo diletante, ação sem organização produz aventureirismo.

Pela organização do povo em comitês!

Pela democracia popular de todas e todos os brasileiros.

* Texto escrito há dois anos, atualizado em abril/2019.

Francisco Celso Calmon é Advogado, Administrador, Coordenador do Fórum Memória, Verdade e Justiça do ES; autor do livro Combates pela Democracia (2012) e autor de artigos nos livros A Resistência ao Golpe de 2016 (2016) e Comentários a uma Sentença Anunciada: O Processo Lula (2017).

Francisco Celso Calmon

Francisco Celso Calmon, analista de TI, administrador, advogado, autor dos livros Sequestro Moral - E o PT com isso?; Combates Pela Democracia; coautor em Resistência ao Golpe de 2016 e em Uma Sentença Anunciada – o Processo Lula.

1 Comentário

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  1. Olha, desde 2016 existem os comitês de luta contra o golpe, uma política de setores de base do PT, do PCO e do movimento operário. Quem não chega junto é justamente a esquerda pequeno-burguesa individualista de classe média. Exatamente os setores que se consideram mais “arejados” são os mais despolitizados na prática.

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