O Dia da Verdade, por Paulo Teixeira e Camilo Vannuchi

Patricia Faermann
Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.
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Dia Internacional pelo Direito à Verdade

Por Paulo Teixeira e Camilo Vannuchi*

As balas que atingiram Marielle Franco em 14 de março de 2018, no Rio de Janeiro, são da mesma linhagem da munição que matou Dom Oscar Romero em 24 de março de 1980, em El Salvador. Foram ensinadas, essas balas, a perseguir mulheres e homens que ousam erguer sua voz contra a tortura, o extermínio, o arbítrio e demais violações de direitos humanos praticadas em democracias ainda em construção — ou já em ruína? — como a nossa.

Oscar Romero foi nomeado arcebispo de San Salvador em 1977. Após o golpe militar deflagrado naquele país em outubro de 1979, Dom Romero passou a denunciar a truculência da repressão, repetindo a postura assumida no Brasil por religiosos como Dom Paulo Evaristo Arns, Dom Helder Câmara, Dom Pedro Casaldáliga e Dom Angélico Sândalo Bernardino. Seu ativismo não durou seis meses. Dom Romero foi assassinado enquanto celebrava missa numa capela, alvejado por um atirador de elite do Exército salvadorenho a mando do major Roberto D’Aubuisson, político e chefe dos esquadrões da morte de El Salvador.


Foi em homenagem a Dom Romero que a Assembléia Geral da ONU de 2010 proclamou o dia 24 de março como Dia Internacional pelo Direito à Verdade acerca das Graves Violações de Direitos Humanos e à Dignidade das Vítimas. O nome é extenso; o significado da data é ainda maior. Construção mais ou menos recente no âmbito dos direitos humanos e do direito internacional, o direito à memória e à verdade é parte constitutiva e indispensável do processo de transição democrática, ainda longe de ser consumado no Brasil.

Em razão disso, é oportuno registrar com entusiasmo a criação, também no Brasil, do Dia Internacional do Direito à Verdade, sancionado em janeiro após aprovação de Projeto de Lei de Luiza Erundina (PSB/SP), Érika Kokay (PT/DF), Domingos Dutra (PT/MA), Luiz Couto (PT/PB), Jean Wyllys (PSOL/RJ) e outros.

O que isso tem a ver com o Brasil de hoje? Muito. É notável que o país se livrou da ditadura militar, mas até hoje não tenha se livrado de abusos de direitos humanos tão comezinhos quanto a censura, a tortura e o genocídio.

É lamentável que a criminalização dos direitos humanos persista como discurso e prática nos setores mais reacionários da população três décadas após a promulgação da Constituição Federal de 1988. É lamentável que Voltaire tenha usado pela primeira vez a expressão “direito humano” em 1763, ocasião em que publicou o livro “Tratado sobre a tolerância” criticando o fanatismo religioso dos juízes que condenaram o protestante Jean Calas à tortura e à morte no ano anterior, e que ainda hoje intolerância e tortura sejam práticas constantes no Brasil, a exemplo de Amarildo, e que defensores dos direitos humanos sejam tão estupidamente ridicularizados e criminalizados, a exemplo de Marielle.

É lamentável que o Brasil continue a apresentar estatísticas vergonhosas que o colocam entre os campeões em número de jornalistas mortos em atividade e em número de civis assassinados pela polícia em alegada situação de confronto. É lamentável que ainda não tenhamos aprovado o Projeto de Lei 4471/2012 (de autoria do deputado federal Paulo Teixeira) para extinguir a figura dos autos de resistência, instrumento que permite ao policial que mata safar-se sem qualquer investigação.

A extinção dos autos de resistência foi uma das recomendações feitas no relatório final da Comissão Nacional da Verdade (2014), o mesmo documento que declinou os nomes de 434 mortos e desaparecidos amealhados pela ditadura e de 377 responsáveis por essas e outras violações. Diante da verdade dos fatos, os cúmplices — de ontem e de hoje — preferiram desautorizar a Comissão.

Marielle acabara de assumir a relatoria da comissão criada na Câmara Municipal do Rio para acompanhar a intervenção federal quando foi assassinada. Ela sabia que uma intervenção nos moldes propostos por Temer tinha tudo para se tornar um potente catalisador de violações de direitos. Em razão disso, não seria prudente esperar 50 anos para a criação de uma comissão da verdade sobre a intervenção. Com a urgência de quem não admite nem um minuto de silêncio, Marielle desempenhava papel precioso na defesa da vida e da justiça.

Menos de um mês antes de sua execução, o general Eduardo Villas Bôas, comandante do Exército, havia declarado a respeito da intervenção: “Militares precisam ter garantia para agir sem o risco de surgir uma nova Comissão da Verdade”. A história recente nos ensina o contrário. É preciso buscar a verdade, é preciso registrar e anunciar a verdade dos fatos para que todos a conheçam e para que as violações de direitos, elas sim, recebam pena de morte. Para que nunca mais aconteçam.

* Paulo Teixeira é deputado federal (PT/SP) e mestre em Direito do Estado pela USP. Camilo Vannuchi é jornalista e integrou a Comissão da Verdade da Prefeitura de São Paulo na gestão Haddad (2014-2016).

Patricia Faermann

Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.

2 Comentários

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  1. O Dia da Verdade….

    É lamentável que existam Esquadrões da Morte de Forças Policiais Paulistas, para manterem a ordem, porque é progressista não discutir pena de morte. Então tais Governos façam vista grossa às chacinas semanais que ocorrem. E forças políticas com simpatia ideológica se calem. É lamentável que Forças Policiais Paulistas tenham emboscado e matado 16 supostos integrantes de Facção no pedágio da Rod. Sen. José E. de Moraes (Castelinho) Sococaba, e todas forças progressistas tenham feito um pacto de silêncio numa defesa ideológica. Onde estão o resultado de inquéritos de dezenas de chacinas? Da Pavilhão 9? Do Diretor da Mancha? Onde está a verdade na morte de Celso Daniel? E do Prefeito de Campinas do PT? É lamentável que tais forças progressistas queiram condenar Policiais Militares, no exercício da profissão e obedecendo ordens, enquanto livraram de responsabilidade o Governador Fleury e Secreterário Campos, de pseudo- progressismo de OAB e USP? É lamentável que usem do mesmo artifício, querendo condenar os Donos da Boate Kiiss, em Santa Maria/RS, enquanto livraram de responsabilidade as Autoridades Públicas. De Prefeito a Secretários, Vereadores e Fiscais  É lamentável que há alguns meses atrás, a mesma Policia Paulista, numa emboscada no Bairro do Morumbi, tenha matado 10 supostos criminosos, sem que tenha havido um úunico sobrevivente. E o mesmo silêncio comparsa das Elites Progressistas. É lamentável que se capture mais de 500 Kg de cocaína no helicóptro de Senador e o Governo mate moradores de favelas, dizendo procurar acabar com o tráfico. É lamentável que já se passaram 40 anos de Redemocracia. É lamentável que se busque lucros políticos na dor de familias e sobre cadáveres. Brasileiros que deveriam estar protegidos. É lamentável.   

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