O novo esquerdismo burguês, por Carolina Maria Ruy

O que temos hoje, vendido como novo, são distorções dessas lutas. Distorções ancoradas em ideias que fomentam a diferenciação e o ódio. Que fomentam o nós contra eles.

O novo esquerdismo burguês

por Carolina Maria Ruy

O esquerdismo infantil, que ainda é forte e que ainda atrapalha, está perdendo lugar para um esquerdismo ainda mais nocivo o esquerdismo burguês.

Na ânsia de mostrar-se “novo”, ânsia essa que contaminou a política atingindo também a esquerda, até mesmo conceitos tradicionais que aludem à Revolução Soviética estão sendo jogados no balaio das velharias.

Isso também vale para nosso velho lema: “Trabalhadores do mundo, uni-vos!”

Hoje esta sentença do passado está sendo substituída em alguns grupos – não todos, por uma minoria ruidosa, vale dizer – por frases e conceitos com vernizes mais “modernos” e mais competitivos, com melhor desempenho entre algoritmos como: Me too, Black Lives Matter, mansplaining. Além de outros que não são importados ao pé da letra, mas são adaptados à esquerda brasileira, como: Lute como uma garota e o recauchutado Lugar de Fala.

São conceitos típicos dos liberais americanos que se reconhecem em um viés de esquerda alicerçado na luta pelos justos direitos civis e pelos direitos humanos, mas que cada vez mais rejeitam a luta de classes.

Claro que a luta pelos direitos civis e humanos são fundamentais e são parte do repertório do pensamento progressista. Claro que a luta antirracismo, pela igualdade de gênero, contra a opressão das minorias, contra a homofobia e pela preservação do meio ambiente, são parte do processo civilizatório e evolutivo da humanidade.

O que temos hoje, entretanto, vendido como novo, são distorções dessas lutas. Distorções ancoradas em ideias que fomentam a diferenciação e o ódio. Que fomentam o nós contra eles. Quanto mais específica e segmentada é a causa, mais inimigos ela cultiva e mais estranha e inacessível ela é ao cidadão comum.

Por exemplo:

Quando houve aquela movimentação, em 2018, de mulheres contra Bolsonaro, li nas redes sociais uma postagem que, a pretexto de convocar mulheres para a grande manifestação do Ele Não, realizada no Largo da Batata, dizia:

“Desçam do muro, recatadas, submissas, deprimidas, viciadas em Rivotril. #elenao”.

Este é o tipo de chamada que atrai ou que afasta mulheres que não são militantes? A ideia embutida aqui seria formar um movimento amplo, acolhedor e abrangente ou repelir o cidadão comum e criar um movimento de gueto?

Em agosto deste ano, a historiadora Lilia Schwarcz, que é especialista em história do Brasil e em escravidão, fez comentários críticos sobre um filme da cantora Beyonce. Logo que o texto foi publicado na Folha de São Paulo ela foi vítima de ataques de pessoas da esquerda nas redes sociais chegando ao ponto de se retratar publicamente por ter se atrevido a comentar sobre a arte da cantora americana. Os ataques se fundamentavam, pasmem, no fato de a historiadora ser branca e a cantora ser negra! Por ser branca não seria seu “lugar de fala” tratar em seu artigo de um filme que alude às raízes africanas, produzido por uma artista negra.

Ouvi recentemente uma das principais vozes desta “nova esquerda” justificar que as pautas identitárias não são divisionistas uma vez que a sociedade já é dividida, que não existe um ser humano universal e que tais pautas incomodam porque trazem à tona esta realidade evidenciando que o homem branco e hétero também faz parte de um nicho de identidade. Ora, tudo bem mostrar que o homem branco e hétero não é o ser universal e etc. Até aí tudo bem. Mas qual é o sentido de manter e aprofundar esta divisão alimentando o ódio e o sectarismo? Qual o ganho político se a sociedade é comum a todos e todas?

Além disso, é falsa a ideia de que as tradicionais pautas da esquerda, baseadas no combate às agruras e nas contradições do capitalismo, levam a uma padronização de identidades. Ao contrário, a luta deve ser ampla não para padronizar, mas para abranger os diferentes que se unem sob o amplo guarda-chuva do combate à miséria, ao desemprego e à exclusão social. Porque somente com avanços no campo da igualdade de condições, se poderá de fato pensar em uma sociedade em que todas as pessoas possam desenvolver seus talentos individuais e suas particularidades. No mundo atual “miséria é miséria em qualquer canto” e só “riquezas são diferenças”.

Concluo, desta forma, que, se o nosso antigo lema do manifesto comunista unia os trabalhadores do mundo, na nova esquerda burguesa ninguém se entende e todos se acusam. Se no esquerdismo denunciado por Lenin como a doença infantil do comunismo, o problema estava no sectarismo, no radicalismo e na falta de diálogo dentro da luta política, no esquerdismo burguês o problema é ainda mais prejudicial. Muitos de seus adeptos chegam a negar a política como forma de luta.

O esquerdismo burguês prima pela incoerência e guarda em si uma crise de identidade fundamental: quer ser a esquerda das bandeiras sociais, mas ao mesmo tempo quer para suas causas um militante diferenciado e destacado no cenário do livre mercado.

9 Comentários

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  1. Preta e mulher estou completamente de acordo. Na hora H de conseguir emprego digno, saude de prevencao e tratamento consequente, educacao de valor que beneficia a todos, a rua ta vazia de pequeno burgueses que se dizem de esquerda. Poderia nomear muitos destes esquerdistas de sofa…rsrsrs
    Voce acertou.
    Assino embaixo.

  2. “A situação ‘revolucionária’ desta bosta mental sul-americana, apresentava-se assim: o contrário do burguês não era o proletário: era o boêmio!”
    Oswald de Andrade, prefácio ao romance “Serafim Ponte Grande”, em 1933.
    Pouca coisa mudou.
    Se você, como eu, é branco, independente da classe, convença-se, o mais breve possível, de que o Barão de Itararé estava falando de você quando disse que, de onde menos se espera, daí é que não sai nada, mesmo.
    A salvação desse país está no povo negro, no povo indígena. A Bolívia está aí, para comprovar.
    E ambos são vítimas sistemáticas de um genocídio comum, às vezes brando –ah, a Folha! – mas consistente.
    Moro em bairros pobres há trinta anos, aqui em Salvador. O que tenho visto fermentar, aqui, é o desânimo e a apatia, além da onipresente violência cega, indiscriminada, que com tanta facilidade domina mentes vazias. Mas tenho a esperança de que, uma vez que nos convençamos que não precisamos dar “lugar de fala” à essa gente, mas ouvir de fato a sua voz, ou seja, sem as arestas aparadas que lhes impomos quando fazemos circular essas vozes no tom edulcorado dos nossos canais de comunicação – inclusive os blogs sujos – daí possa fermentar algo mais efetivo.
    A fala deles, às vezes, é rude e agressiva. Mas é autêntica, e expressa, sem contornos suaves, a sua realidade.
    Nossa vocação não é branca, burguesa, européia.
    É negra, indígena.
    https://www.youtube.com/watch?v=WAmJR3Km__A

  3. Já disse em outro ocasião: a unificação das pautas históricas da esquerda (ou pelo menos parte do que sobrou dessa pauta…) passa pelo movimento sindical. Onde mais você tem negros, mulheres, homossexuais, evangélicos, etc, etc? Todos querem melhores salários, melhores condições de vida, saúde, etc.
    Não é por acaso o sucesso de Lula. Ele entendeu e ainda entende muito bem isso. E como conciliar…

  4. Muito bom o artigo. Há muito os diversos identitarismos e seus estragos na esquerda vêm me preocupando e transbordaram depois do despolitizado e despolitizante “Ele Não”. Entretanto, vozes consequentes como a da jornalista Carolina Ruy têm se levantado para denunciar e apontar os equívocos e desvios provocados por essas “novas” fórmulas de movimento, que desprezam a principal contradição a ser vencida, a de classe.

  5. Bem, até pouco tempo depois do início do governo Lula ainda havia aquela burguesia q se dizia de esquerda. Mas era assim: alguns lugares eram feudos dessa gente rica q se dizia consciente da necessidade de diminuir as desigualdades econômicas e sociais. Entre essas frações, estavam, por exemplo, os solos sagrados das universidades federais. Desse modo, as preocupações sociais dessa gente foram por água abaixo a partir do momento q a esquerda no poder resolveu parcelar tais latifundios. E foi aí q a esquerda começou a ruir. Filho de pedreiro em universidade? E o meu filho? Diarista em avião? Por que não de ônibus? E assim por diante… Não há união possível entre as classes mais favorecidas e os desvalidos. Os ricos bem criados morrem de medo. Mas nem precisariam ter medo, pois a classe média média lhe dá proteção e insiste em não morrer de burrice. É essa classezinha média média q sempre enxerga baderna em toda e qualquer movimentação popular contra a exploração do ser humano. Insiste-se na necessidade de uma autocrítica da esquerda. Só se for pra reconhecer q errou ao fazer o q era certo.

  6. Quase não existe mais classe operária. Está desaparecendo e fica menor a cada ano. No ABC, que conheço muito bem há décadas, nem as fábricas existem mais. Todas as de autopeças, que eram milhares até 40 anos atrás, fecharam uma após a outra, e em 2010 já eram raras na região, porque as montadoras já compravam as peças da da China, Índia, Indonésia, até do Vietnam e da Tailândia – eu vi.
    A esquerda terá de mudar de alvo e de rumo.

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