O presidente do esgoto e o fim das Ciências Humanas, por Alexandre Filordi

Estamos diante de uma movimentação sagaz que, aproveitando das circunstâncias, expande o que já vamos perdendo de horizonte: a ativação total do ideário do Future-se.

O presidente do esgoto e o fim das Ciências Humanas

por Alexandre Filordi

Naomi Klein tem toda razão em sua obra A doutrina do choque: a ascensão do capitalismo de desastre: ações espúrias e pouco palatáveis aos interesses da população são tomadas quando desastre natural, econômico, social ou político emergem. O capitalismo aproveita, e até estimula, tais desastres com o intuito de causar desorientação nas pessoas. A desorientação ou o estado de choque enfraquece a nossa capacidade de atentar para questões de pouca visibilidade, mas quase sempre de grande impacto na vida futura, uma vez passado o choque. Mas, daí, invariavelmente é tarde demais.

Foi assim que a parte baixa de New Orleans foi toda confiscada pela especulação imobiliária pós-Katrina, além da privatização de vários serviços públicos, o escolar inclusiver; de igual modo acorreu nos paraísos litorâneos do Sri-Lanka depois do tsunami de 2014, quando seus povos autóctones foram despejados de suas terras, em nome da futura segurança, dando lugar aos resorts de luxo. Mas choques também são produzidos com finalidades específicas: a invasão do Iraque, em nome do combate ao terrorismo, para a expropriação de campos de petróleo; o golpe no Chile para impedir a reestatização das minas de cobre, a reforma agrária encaminhada por Allende, etc.

Com quase metade do planeta em quarentena devido à pandemia do COVID-19, um novo choque é vivenciado. Em terras tupiniquins, sob uma política quixotesca, o sistema político vigente, mordomo do rentismo e do patronato, está aproveitando a situação para, sub-repticiamente, atacar as Ciências Humana e, até mesmo, produzir condições políticas para o seu extermínio.

No último dia 20 de março, baixou-se o Decreto N. 10.282 para definir os serviços públicos e as atividades essenciais durante a pandemia do coronavírus. Abrangem-se muitos itens: desde atividades religiosas de qualquer natureza até atividades de pesquisa, científicas, laboratoriais ou similares relacionadas com a pandemia. O Decreto, celebrado no portal do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq, fundação pública vinculada ao Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações, sublinha a defesa das atividades científicas como essenciais. Por outro lado, há algo não dito, fazendo soar um importante alarme: em momento algum as Ciências Humanas foram e são consideras como atividades essenciais.

Seria ingênuo cogitar que tal lapso é circunscrito ao choque da pandemia. Na verdade, estamos diante de uma movimentação sagaz que, aproveitando das circunstâncias, expande o que já vamos perdendo de horizonte: a ativação total do ideário do Future-se. Excluído o cinismo beligerante contra tudo que é científico – terraplanismo, sucateamento dos laboratórios de pesquisas científicas decorrente do estancamento dos investimentos públicos, cortes de verbas para o investimento em recursos humanos, etc. – é preciso recordar que o Future-se defende: a) cessação do investimento público em todo nível universitário, empurrando as universidade para a privatização branda e/ou a precarização; b) ênfase nas áreas pretensamente lucrativas; c) beligerância o todo campo científico crítico – como se fosse possível ciência sem crítica; d) possibilidade de cobrança de mensalidades; etc.

Tudo isso coincide com a nova política de concessão de bolsas despachada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), em fevereiro deste ano, como já mostramos aqui. A partir de então, os Programas de Pós-Graduação passam a perder até 50% dos recursos destinados aos pesquisadores em formação, além de já sabermos que, desde 2016 e muito mais acentuado no atual governo, a cada ano as verbas foram sendo suprimidas vertiginosamente.

As Ciências Humanas são rentáveis, sim. A sua “renda”, contudo, não é reduzida aos dividendos; ao contrário, as Ciências Humanas interpelam a desumanização e o tecnocracismo que tais dividendos são capazes de produzir em todo tecido social, gerando pobreza, exclusão social, concentração de renda. Dotadas de uma vigorosa fortuna simbólica, cultural, subjetiva, singular e, essencialmente crítica, as Ciências Humanas assumem o risco de denunciar que não podemos continuar a viver como estamos vivendo; elas colocam o dedo na origem das feridas dos processos de desigualdades sociais; elas mostram o quanto a nossa história é basal das injustiças sociais. As Ciências Humanas gritam que o imperador está nu e, por ser soberano, o imperador não gosta.

Não é à toa que BolsoNero reduz tudo ao patético ridículo e gera sempre choque ao interlocutor ou ao espectador razoável. Aliás, se há alguém que gosta de esgoto deve ser ele e não os brasileiros que, alijados das condições do saneamento básico, vivem sem opções senão a do precariado e da vulnerabilidade existencial.

A esta altura, precisamos lembrar que esgoto vem do francês que alude, segundo o dicionário de Littré, ao que esgota. Estamos esgotados com tanta sandice; estamos esgotados com tanto descaso; estamos esgotados com um governo e uma equipe de alucinados que manejam a política e a máquina do Estado para caçar a capacidade científica de anunciar as razões pelas quais basta!

Educadores, Filósofos, Sociólogos, Antropólogos, Economistas, Linguistas, Jornalistas, Historiadores, Geógrafos, Antropólogos, Artistas, Advogados, Psicólogos, Servidores Sociais e sucessivamente são mesmo uma ameaça: revelamos o esgoto, com todos seus vermes e ratos, que têm nos governado.

Alexandre Filordi (EFLCH/UNIFESP)

Redação

3 Comentários

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  1. Prof. Alexandre, de fato, estamos esgotados e BolsoNero é perspicaz na estratégia caótica de desviar a atenção do que interessa. Quem mandou matar Marielle e Anderson? Neste mesmo tempo, o sucateamento da educação no geral está em marcha. As ciências humanas, alvo preferencial de Weintraub, aquele que desconhece a língua portuguesa mas é Ministro da Educação, deverão desaparecer. Só assim seu ídolo e guru astrólogo poderá vingar a sua ignorância. Lutemos. Parabéns pelo texto e pela bravura em tempos de silêncio de muitos das ciências humanas. O tempo urge e é preciso lutar, escrever, falar, expressar!!!

  2. A condução de tudo que é prerrogativa do Executivo Federal tem exaurido a todos nós, que esperamos construir uma sociedade menos desigual. A capacidade de reflexão do professor Alexandre sobre a realidade brasileira (dialogada também com experiências políticas e filosóficas de outras temporalidades) tem se mostrado bastante pedagógica e elucidativa. Filordi tem produzido de maneira sagaz antídotos para evitar nossa intoxicação cognitiva. É importante que ocupe esse espaço de fala. Precisamos de novos interpretes do Brasil, como vem defendendo alguns intelectuais, visto que estaríamos presos a modelos interpretativos que não foram devidamente atualizados, obscurecendo nossa compreensão do “ponto onde estamos”. É graças a compreensão proporcionada pelas Humanidades que muitos brasileiros se posicionaram nos últimos dias pressionando o governo e colaborando para reduzir os efeitos da “necropolítica”. Estamos numa Guerra e querem retirar todas as nossas armas. Mas do que nunca as atividades científicas de toda natureza tem se mostrado essenciais…todos ao combate!!!

  3. Parabéns pelo belo texto. Foi direto ao ponto. É um alerta importante em um tempo de irracionalidades. A minha preocupação, além desses ataques às ciências humanas, é a apatia dos partidos e movimentos de esquerda. O que esperamos para nos organizarnos e agir?

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