Pós-fascismo e produção de inexistência, por Túlio Muniz

Atiça a chama sempre acesa nos quartéis, cujos episódio mais notório recente, e nunca elucidado de todo,  foi a queima de papéis na base da Aeronáutica em Salvador, em 2004.

Pós-fascismo e produção de inexistência

por Túlio Muniz

A intenção de Sérgio Moro de destruir provas de investigação da PF – contida pelo próprio potencial de escândalo – vem de longa tradição do legalismo brasileiro para “produção de inexistência” *.

Mecanismo semelhante foi utilizado por Rui Barbosa quando, em 1890, com a ‘boa intenção’ de eliminar uma ‘mancha na História brasileira’ ordenou a queima de documentos referentes à escravidão. Ao mesmo tempo, Rui Barbosa privou pessoas de conhecerem a própria trajetória e, quem sabe, usar dos documentos destruídos para reivindicarem alguma compensação (que os ex-escravos nunca tiveram), e destruiu fontes de pesquisa para o futuro – eram livros aduaneiros com matrículas de escravos e registros de impostos que incidiram sobre as transações, dados preciosos para pesquisas de Economia, Sociologia, História, Antropologia.

Moro repetiria Barbosa: destruindo provas que poderiam vir a ser útil à defesa dos próprios acusados de produzi-las (os tais ‘hackers de Araraquara’), e também ao supostos alvos das mesmas. 

Rui Barbosa também ocupou a função similar à de Moro,  foi o primeiro dos ministros da Fazenda da República. Para não soar como anacronismo, justiça seja feita: Rui Barbosa, em que pese o ato de queima de documentos, era abolicionista e movido por um positivismo humanista. Moro, não. 

Ele defende a manutenção de um regime autoritário, pós-fascista, que rende tributo a longeva inquisição brasileira que determina: “se há demónios e assombrações entre nós, vamos queima-los”, sejam indígenas, negros, pobres, loucos, prostitutas, adversários políticos. 

Atiça a chama sempre acesa nos quartéis, cujos episódio mais notório recente, e nunca elucidado de todo,  foi a queima de papéis na base da Aeronáutica em Salvador, em 2004 (ver aqui https://atarde.uol.com.br/politica/noticias/1145584-queima-de-arquivos-na-base-aerea-ainda-sem-respostas). 

Esse pós-fascismo tem raízes no protofascismo nacional de Plínio Salgado nos anos de 1930, cuja Ação Integralista buscou, em vão, apoio do Partido Nazista alemão. Não o obteve por contar com pessoas negras nas suas fileiras, o que era completamente incompatível com a ideologia nazista ariana, da eugenia racial. 

Aliás, seria interessante aprofundar, noutro momento, essa característica do Integralismo, para compreender como é possível, hoje, a postura de gente como Hélio “Negão” Lopes (deputado federal/RJ), Fernando Holiday (vereador em São Paulo) e Douglas Garcia (deputado estadual/SP), todos negros e apoiadores incondicionais de Bolsonaro.

Mal comparado, mas nem tanto, a “produção de inexistência” se repetiu na decisão do STF, de 2010, de validar de vez a Lei da Anistia, por 7 votos a 2. O STF abafou ainda mais o debate desde sempre necessário na sociedade brasileira: aprofundar o conhecimento acerca dos crimes da Ditadura, responsabilizar e punir seus agentes, coibir manifestações de apoio a seus atos. 

Tivesse ocorrido assim, hoje Moro não se sentiria tão à vontade no regime pós-fascista que busca se legitimar, determinando o que deve ou não ser investigado e conhecido, quem deve ou não ser banido do país, quem será encarcerado perpetuamente, quem vive e quem deve ser eliminado pelo Estado – seja em ação direta ou por omissão deste.

E dificilmente teria chegado ao poder uma triste e perigosa figura como a de Jair Bolsonaro.

*Agradeço a Roberto Mendes pelo contato, através sua tese de doutorado, com o conceito de “produção social de inexistência”, de Norma Valêncio – ver aqui https://repositorio.ufu.br/bitstream/123456789/16327/1/SobrevivenciasModoVida.pdf

aqui .

Túlio Muniz é jornalista, historiador e doutor em Sociologia/Un. de Coimbra.

Redação

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