Que sociedade resultará da extinção da classe média?, por José Mário Neves

Estamos, já adiantados, em um novo período histórico. Os sinais estão por todos os lados!

do Psicanalistas pela Democracia 

Que sociedade resultará da extinção da classe média?

por José Mário Neves*

A avançada crise do sistema social contemporâneo evidencia-se pelo descomunal acúmulo de forças destrutivas: seja na forma de ogivas nucleares, de armas químicas e de imensas máquinas de guerra especializadas na produção da morte e no extermínio de qualquer forma de resistência; seja na forma de processos de produção e de consumo devastadores para o ambiente; ou, ainda, na forma de relações sociais destrutivas das conhecidas formas coletivas de sociabilidade humana.

Do ponto de vista do risco ambiental, não se faz necessário discorrer extensamente para demonstrar que a humanidade está diante de um desafio inusitado. A “compulsão obsessiva” pelo lucro e pelo consumo coloca, pela primeira vez, o risco da ação humana produzir um dano irreversível e em larga escala para a vida no planeta. O aquecimento global já confirmado pelo Painel Internacional sobre Mudanças Climáticas (IPCC – órgão ligado à ONU), a poluição de mares e dos mananciais de água doce, a extinção de várias espécies colocam em riscodiversos ecossistemas, com enormes prejuízos para grande parte das atividades humanas, evidenciando a absurda irracionalidade dessa ordem social.

Do ponto de vista econômico, nem mesmo as políticas neoliberais, adotadas em larga escala nas décadas de 80 e 90, se mostram capazes de “reequilibrar” o sistema. Esse “retorno” do neoliberalismo não dá conta do nível de contradição atual do capital, que decorre do fato de que ele não consegue mais se valorizar no campo da produção real, dependendo, cada vez mais, da valorização artificial no sistema financeiro – valorização fictícia que não se sustenta na economia real e leva às periódicas explosões das bolhas especulativas.

Do ponto de vista da realidade dos trabalhadores, vemos que a acirrada corrida tecnológica entre as empresas, visando o aumento de produtividade e a redução de custos, acabou expulsando grande parte do trabalho do processo produtivo. As análises indicam que a indústria 4.0, a automação dos serviços e a inteligência artificial irão acabar com parcela significativa dos postos de trabalho nas próximas duas décadas – e não se trata apenas da extinção dos postos de trabalho operacionais, como operários e motoristas, mas também dos postos de advogados, contadores, médicos, professores, etc. No curto espaço de alguns anos, teremos o acréscimo de centenas de milhões de pessoas sem possibilidade de inserção no mundo do trabalho e, portanto, sem capacidade de sustentar as suas existências – os “inúteis para o mundo”, de que fala Robert Castel (“As Metamorfoses da Questão Social”, 1998).

Como desdobramento desse processo, teremos pela frente: a) a radical redução dos postos de trabalho e o brutal aumento da exploração e da precarização do pouco trabalho restante; b) a rapina dos recursos públicos – com a extinção do que ainda resta do Estado de Bem-Estar Social – como forma de viabilizar uma sobrevida para esse sistema de valorização artificial do sistema financeiro, que já se encontra a ponto de uma explosão derradeira.

Portanto, estamos frente à acelerada reversão do que foi o pacto social do século XX, que viabilizou a criação de uma “classe média” numerosa e de uma sociedade minimamente democrática, baseada nas políticas públicas do Estado de Bem-Estar e no consumo de massas.

Assim, podemos sintetizar esta breve análise observando que estamos diante de um processo acelerado de extinção da classe média e de regressão à estrutura de classes do Século XIX – caracterizada por uma aristocracia de super-ricos, vivendo em um mundo do hiperluxo, e uma massa de miseráveis, inservíveis e sem futuro.

Que sociedade irá resultar do esmagamento total da classe média? A resposta que daremos a esse processo de acelerada extinção da “classe média” – extinção tanto como realidade objetiva para um contingente significativo de pessoas, quanto como aspiração subjetiva para a massa de trabalhadores pobres que sonhavam um dia chegar a esse estamento social – vai definir o futuro da humanidade e da vida no planeta.

Nos tornaremos uma sociedade do apartheid mundial – com seus guetos de miseráveis, campos de refugiados e novas e inimagináveis formas de barbárie, convivendo com pequenas ilhas de opulência e ostentação – em meio a ecossistemas em ruínas, ou conseguiremos formular uma nova forma social, que supere o capitalismo e que construa um novo laço social e uma nova relação com a natureza?

A classe média vai seguir refém da aliança de classe com os “endinheirados do mundo” e se deixar extinguir, seguindo bovinamente narcotizada pela fantasia consumista para o abatedouro da história? Ou vai se disponibilizar a um novo ideal social e se aliar aos miseráveis, em troca de uma concepção de vida e de mundo sustentável – sem consumismo, sem luxo, sem ostentação, solidário e para todos?

Talvez já esteja passando da hora de atualizarmos uma convocação lançada há mais de 170 anos, dizendo: trabalhadores, ambientalistas, sem-terra, antirracistas, LGTBI+, veganos, povos tradicionais, miseráveis e inconformados de todos os tipos, uni-vos!!! 

*José Mário Neves é psicólogo. Doutor em Psicologia Social e Institucional pela UFRGS.

Redação

8 Comentários

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  1. Não se trata de buscar novo ideal social, pois levaria ao mesmo, substituindo o poder dos endinheirados pelos dirigentes do Estado que implantariam explicitamente a lei do mais forte, impedindo que surjam concorrentes, todos serão subordinados ao poder central. Mas por que tudo isso de ruim está acontecendo com o planeta, seus recursos naturais e sustentabilidade, e sua população? O dinheiro acabou se tornando a coroação do poder materialista, antes dessa fase o ser humano foi descendo de degrau em degrau da sua condição humana afastando-se progressivamente das leis naturais da Criação. Todo o relato contido no artigo atesta a desumanização da humanidade que para sobreviver condignamente precisa buscar o ideal natural da espécie humana.

  2. É bem verdade que há um processo de encolhimento da classe média em todo o Ocidente. Contudo, em outras partes do mundo esse processo não obedece ao ritmo ocidental, ou ocorre o exato contrário. No Japão e na Coreia do Sul não há essa intensa migração da classe média para a pobreza. Talvez ainda venha a ocorrer, talvez não chegue a acontecer. Na China há um imenso movimento de ascensão social. O PCCh tem patrocinado políticas de urbanização por toda China rural, ao mesmo tempo em que mantém diretrizes de industrialização e desenvolvimento de serviços urbanos nos municípios onde predomina a pobreza, via de regra associada à vida no campo e à baixa produtividade do trabalho rural, de modo a que haja a substituição deste pelo trabalho urbano, que agrega mais valor à economia.
    O imenso problema enfrentado pelo Capital dominante, basicamente americano e europeu, é a transição da dominância do segmento industrial para o financeiro. Há estudos sérios e bem conduzidos que demonstram que, no mínimo, 60% do PIB euro-americano é controlado, em última instância, por entidades financeiras.
    Enquanto os esquemas mentais de um capitalista industrial, no que concerne ao lucro e à acumulação, estão associados a, e limitados pela, inevitável realidade física da produção industrial e de seu objeto, o produto material a ser vendido, na mente do financista não há qualquer vínculo com isto. Seu produto é o dinheiro, e o dinheiro é apenas uma representação física de um valor subjetivo, ainda que construído coletivamente, que é o sentimento de riqueza. Este é o seu produto, que é também o seu resultado econômico. Um capitalista industrial resiste mais que um financista a demissões em massa, por exemplo, porque sabe que há limites físicos à produção e à sua retomada, pós crise, assim como há benefícios produtivos na manutenção em estoque do conhecimento e capacidade de sua mão de obra. Essas coisas sequer são cogitadas por financistas. O único que lhes interessa é o fluxo financeiro de curto prazo. E para maximizar este, pouco importa o quanto estarão comprometendo qualquer capacidade de retomada futura, numa crise. E mesmo fora de períodos de crise, esse imperativo de maximização do resultado financeiro no curto prazo leva a reduções de vagas e de salários, empurrando a classe média para o porão da economia.
    No longo prazo essa mentalidade é simultaneamente genocida e suicida. Genocida porque se a classe média é depauperada, o que estará acontecendo aos pobres, economicamente abaixo dela? A vida na miséria gera reprodução ampliada, por imperativo de sobrevivência da espécie, aumentando a miséria mais e mais, até que, no limite, também isto deixa de funcionar. A miséria tem duas companheiras inseparáveis, fome e doença. Ambas labutam para que o processo anterior se desenvolva lentamente. Mas em algum momento explodem, separada ou conjuntamente, provocando grandes ondas epidêmicas mortais. Não sei dar outro nome a isto que não genocídio.
    O suicídio dessa forma de Capitalismo está diretamente associado ao fetiche monetário. Sem uma classe média que sirva de referência de nível de riqueza tanto para os miseráveis quanto para os inimaginavelmente ricos, tudo que vai restar será uma imensa bolha financeira. O resto miserável da humanidade contribuirá pouquíssimo para a formação de novo Capital real, visto que poucos terão salário, e estes serão miseráveis. Todos mais viverão dentro de uma outra economia, como ocorre em inúmeros filmes sobre distopias dessa natureza. Qualquer perturbação dessa ordem, um boato, algum magnata que destrua seus nothingcoins tentando tacadas monumentais, qualquer coisa mais grave pode levar todos a uma corrida por lastro real para sua riqueza, destruindo a moeda num processo hiperinflacionário ao estilo República de Weimar.
    O Capitalismo, se quiser sobreviver, precisa de uma nova liderança, menos egoísta, menos fútil, com mais cultura e respeito pela Humanidade. Portanto, Capitalistas, se não querem que tudo acabe em guilhotinas e Terror, uni-vos. Nada tendes a perder, exceto alguns milhões.

    1. Só que o capitalismo financeiro, diferentemente do que você afirma, não é fruto da ambição desalmada de financista s endinheirados, a ponto de o sistema como um todo poder ser salvo com algum tipo de guinada ética que refreie o financismo e distribua renda e riqueza aos mais prejudicados economicamente, por meio da distribuição de valores gerados pelo capitalismo de mercado (“alguns milhões a perder”). Essa é uma visão ahistórica da questão, que ignora, justamente, a realidade de que o capitalismo fim de linha, em seu atual estado financeiro, é justamente o desenvolmento histórico do capitalismo, poupador de mão de obra por excelência, um que praticamente não gera mais valor real em seu conjunto e por isso não se paga, daí a necessidade do capitalismo financeiro adiantar hoje em dinheiro, sob a forma de crédito, o lucro fictício que não poderá obter no futuro cada vez mais infinitamente distante. Tudo isso apesar de, marginalmente, em países periféricos de industrialização tardia, como a China, a classe média ainda ter espaço para aumentar, enquanto existirem as cada vez mais escassas massas de consumidores no mundo que possam pagar por seus produtos. Nesse sentido, sinto informar que de nada adiantará a união de capitalistas da economia real e/ou a “redenção” de financistas da economia ficcional para a salvação de um sistema com data de validade vencida.

      1. Nabantino, perfeito conforme descrito por Marx Volume III, Parte III capítulo 13, a chamada A lei da tendência de queda da taxa de lucro. Que não é aceita pelos economistas burgueses, porque simplesmente eles teriam que aceitar que a criação de riqueza no capitalismo é obtida pela retirada da mais valia do trabalhador. Os Neo-keynesianos se apegam a explicação do capitalista bom e do mal capitalista.
        Quanto a pergunta proposta no título do artigo:
        Que sociedade resultará da extinção da classe média?
        Podemos responder que há somente duas hipóteses, ou a resposta que o autor sabiamente coloca no seu último parágrafo ou os cenários vislumbrados por filmes de ficção científica e/ou séries distópicas do tipo:
        Soylent Green (1973), Zardoz (1974), Jogos Vorazes (2012) e The Maze Runner (2009 – o livro).
        A pergunta foi corretamente colocada, a evolução foi perfeitamente diagnosticada, só falta saber qual a solução que daremos (ou não daremos).

  3. A classe média nunca se aliou aos miseráveis. Ao contrário, ela sempre foi o elemento de resistência aos avanços sociais, manipulada pelos donos do poder.
    Talvez quando esteja quase extinta, sentindo na própria pele o que sentem os miseráveis, aí todo o contingente do lado miserável poderá se mobilizar e mudar radicalmente o sistema econômico. Não vai ser pacificamente.
    Com o capitalismo, selvagem ou manso, nunca haverá verdadeiro progresso. Gerras sim, certamente.

  4. Vai dar, não… A classe média não tem o menor cacoete solidário, muito menos revolucionário. O refluxo deste setor se dá sempre nos momentos de crise extrema. É aí que a possibilidade de mudança começa a fazer algum sentido. O problema de ser classe média é não ter pra onde correr. Por se identificarem com as elites sem ter o mesmo suporte de proteção, acabem servindo de escudo vivo para os mais ricos quando os mais pobres partem pra cima. Se criticam as elites, se tornam perigosos e passam a fazer parte do cardápio autoritário dos de cima. E se tentam comer as migalhas acabam por ter de admitir que não são mais do que… pobres.
    Quer saber? Que se fodam! São uma anomalia social, mesmo. A classe média é herdeira do jeca e, como tal, pode ser definida com a terminologia usual: lumpenburguesia. Mais atrapalham do que ajudam.
    Não sei de onde o Lula foi tirar que o brasileiro comum queria virar isto!

  5. Um comentário trivial para ilustrar um ponto mínimo. Conversava animadamente com texistas sobre a competição com a Uber, e ficou clara uma coisa: o problema prático da categoria não é a competição, mas o encolhimento da demanda; ou seja, dos passageiros de classe média. Faz sentido.

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