Racismo e revolta em tempos de Trump e Bolsonaro, por Paulo Ramirez

Racismo e revolta em tempos de Trump e Bolsonaro

por Paulo Ramirez     

Eu confesso que durante alguns dias não tive coragem de ver o vídeo do assassinato de George Floyd. Ontem o vi após uma semana repleta de bancas, aulas, reuniões, avaliações e planejamentos, rotina de um professor em meio ao home office promovido pela pandemia.

Trata-se de uma sequência de imagens que chocam, geram náusea, indignação e revolta. Walter Benjamin, talvez para definir essas imagens, utilizasse o termo “imagem dialética” ou “de pensamento”, pois causam o sentimento de revolta, considerando a imagem alegórica, portanto, capaz de falar e expor problemas sociais para além de si mesma e conduzir à análise critica do momento histórico vivido.

Há várias questões a serem debatidas. A primeira delas é sobre o quanto a branquitude é tóxica e excludente. É repugnante, e todos os brancos devem se envergonhar de sua cultura branca, quando estamos diante de imagens como as que levaram à morte de Floyd. E não apenas isso! O policial de joelhos, esmagando o pescoço de Floyd, no chão, almejado e sufocado, enquanto este suplica para poder respirar, apenas respirar!, é uma alegoria de todos os males que a branquitude causa aos negros, e isso inclui a forma como todos nós brancos, sobretudo os mais abastados e de classe média, ignoramos onde e como trabalham, como são olhados e tratados. Onde estão os negros na sociedade? Não pensem nas exceções para responderem a essa pergunta. Observem sim o que é comum. Negar a existência do racismo torna qualquer branco racista.

   A segunda questão é a restauração do discurso racista em governos no Ocidente, fenômeno promovido por Trump e Bolsonaro, e a maneira como esse discurso está diretamente relacionado à violência policial contra os negros. Desde antes do fim do Apartheid na África do Sul não víamos discursos ou gestos notórios e públicos racistas proclamados por governos formalmente estabelecidos, e amplamente divulgados nos meios de comunicação.

Isso não significa dizer que outros governos anteriores no Brasil e EUA não tenham sido racistas, mas ao menos buscaram criar a aparência de que não eram, por meio do uso de um discurso de tolerância que nunca chegou a se efetivar, e nem ao menos reduzir drasticamente as desigualdades entre brancos e negros nesses países.

Ainda que, por exemplo, no Brasil se busque sustentar a ilusão freyriana (me refiro a Gilberto Freyre) de democracia racial, discurso esse também afirmado durante a ditadura militar, sabemos que este discurso pertence aos brancos e não aos negros, não passando de uma forma hipócrita de justificar o domínio sobre os negros. O racismo mascarado, cordial (usando um termo de Sérgio Buarque de Holanda), revela a maneira dissimulada como os brancos fingem não existir racismo no Brasil. A democracia racial é uma fachada, fantasia que esconde o racismo..

Quando avaliamos o papel da polícia exercido hoje contra os negros, compreendemos mais precisamente a passagem que estamos vivendo de governos com discursos de aparência tolerante racial para governos de discurso ou gestos explicitamente racistas. Essa passagem pode ser traduzida na forma como as forças policiais nos últimos anos perderam o pudor ao expor publicamente sua violência contra os negros.

Até algum tempo atrás víamos na maioria das vezes câmeras escondidas, quebradas ou censuradas por policiais que cometiam os atos de violência contra negros e os mais pobres. Hoje é mais comum vermos transeuntes gravando com seus celulares a polícia na rua exercendo seu racismo e logo em seguida as gravações são postadas no youtube, depois sendo vistas e compartilhadas por milhares de brancos que aplaudem o papel autoritário e racial da truculência policial; há programas patrocinados e ampla audiência na Tv e canais na internet sobre rondas policiais nas grandes cidades, geralmente mostrando as chamadas “batidas” contra negros que simplesmente transitam pelas suas regiões e comunidades ou nos bairros de predomínio branco. As operações policiais realizadas nos morros do Rio de Janeiro, televisionadas e também aplaudidas pela classe média, oferecem constantes demonstrações dessa violência injustificável contra negros.

A violência policial no Brasil e EUA é reflexo da forma como pensam os segmentos dominantes de uma sociedade, estabelecidos pela classe social e cor de pele. Quando governos realizam gestos racistas e escancaram a rudeza e intolerância frente aos negros acabam por autorizar consciente ou inconscientemente as forças policiais e demais órgãos governamentais a também adotarem posturas racistas. É necessário admitir que a função primeira da polícia em países como o Brasil e EUA é garantir o domínio psicológico e físico do mundo dos brancos sobre os negros.

No nosso país, nos deparamos com o genocídio policial que ocorre diariamente contra a população negra. A polícia constitui-se como escudo racial burguês. Trump e Bolsonaro com seus governos promovem gestos que os associam ao racismo. O silêncio frente ao assassinato de negros por forças policiais ou a tentativa permanente de relacionar o negro com o crime são os subterfúgios usados pelos governos racistas que neutralizam a indignação dos brancos, cegos e acomodados pelos privilégios (salários, moradia, cidadania, emprego e oportunidades) que mantêm em relação aos negros.

O assassinato de Floyd pela polícia é contemporâneo à maior onda de demissões e depressão econômica nos EUA desde a Crise de 1929, resultado da pandemia de Coronavírus. O desemprego e subemprego, a queda do consumo e da produção conduziram agora milhares de brancos de classe média às mesmas condições de exclusão e humilhação que a maioria dos negros sofrem diariamente nos EUA. Essa possível identificação entre o caso Floyd e o descontentamento com a crise econômica podem tornar os EUA um barril de pólvora e mesmo conduzir a uma rebelião popular contra Trump.

Nos EUA há um movimento crescente de revolta popular de negros e brancos progressistas contra seus governos racistas e desdenhosos diante do racismo. A morte de Floyd é o estopim do que pode estar por vir, a destruição dos governos que flertam com o autoritarismo e que apresentam sua postura racista ora de forma velada ora declarada.

A situação do Brasil é ainda imprevisível diante da possibilidade de haver alguma  influência da rebelião norte americana por aqui. Seria necessário que muitos brancos brasileiros, assim como hoje ocorre com brancos americanos,  se envergonhem de sua branquitude. Além disso, enquanto a atual crise econômica atingir de maneira predominante os mais pobres e negros a tendência é que esse sentimento de revolta contra o extermínio de negros pela polícia seja muito reduzido entre os brancos, mesmo porque há um anestesiamento e relativização do genocídio de negros, pois os assassinatos são  erroneamente relacionados à criminalidade.

No entanto, se considerarmos o apoio irrestrito de Bolsonaro a Trump e o aprofundamento da crise econômica no Brasil, levando parte significativa da classe média branca à pobreza, os sentimentos de revolta contra o governo podem aumentar ao lado da revolta dos negros contra o extermínio diário que ocorre no Rio de Janeiro e outras cidade do país. As redes sociais tendem a fortalecer o debate entre os brancos a respeito de seu racismo mascarado e sobre o entendimento das revoltas contra o racismo que estão ocorrendo nos EUA.

Se os EUA podem ser considerados o termômetro econômico e político do que pode estar por vir para o resto do mundo, provável é que cedo ou tarde no Brasil tenhamos revoltas da população negra contra os seus governos e polícias racistas, com ou sem o apoio de brancos progressistas.

Redação

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