SAMBAS E AFINS – para ouvir na quarentena (III), por Walnice Nogueira Galvão 

No tempo de Noel, os malandros eram figuras habituais, entre os quais ele contava amigos; e muitos deles, como ele mesmo, eram sambistas.

Jessé Ribeiro

SAMBAS E AFINS – para ouvir na quarentena (III)

por Walnice Nogueira Galvão 

A famosa polêmica: malandro x trabalhador

Lenço no pescoço (Wilson Batista)
Rapaz folgado (Noel Rosa)
Mocinho da Vila (Wilson Batista)
Feitiço da Vila (Noel Rosa)
Conversa fiada (Wilson Batista)
Palpite infeliz (Noel Rosa)
Terra de cego (Wilson Batista)
Frankenstein da Vila (Wilson Batista)

No tempo de Noel, os malandros eram figuras habituais, entre os quais ele contava amigos; e muitos deles, como ele mesmo, eram sambistas.

Como era o caso de Wilson Batista, que compôs Lenço no pescoço em 1933, apresentando-se assim: “Meu chapéu de lado/ tamanco arrastando/ lenço no pescoço/ navalha no bolso/ eu passo gingando/ Provoco e desafio/ Eu tenho orgulho/ em ser tão vadio”.

Esse foi o estopim de uma célebre polêmica, em que ele e Noel Rosa se engalfinharam, dando origem a excelentes sambas, com réplicas e tréplicas.

Em Rapaz folgado, logo em seguida, Noel, boêmio notívago que freqüentava as mesmas rodas que Wilson Batista, avança uma advertência, pondo reparo até nas impropriedades de linguagem: “Deixa de arrastar o teu tamanco/ pois tamanco nunca foi sandália…” (Com tamanco se pisa duro fazendo barulho no chão – experimentem arrastar um tamanco!) E prossegue, admoestando: “Malandro é palavra derrotista/ que só serve pra tirar/ todo o valor do sambista”. Fica clara a tentativa de tornar respeitável o sambista, e com ele o samba, já que até então seu lugar era a marginalidade social.

Wilson Batista abespinhou-se e retrucou com Mocinho da Vila, epíteto pejorativo com que mimoseia o adversário, que era de Vila Isabel, reduto da pequena burguesia branca: ou seja, não pertencia nem ao morro nem aos rincões negros do Rio, portanto não tinha direito de fazer samba. Por sua vez, admoesta-o: “… Se não quiser perder o nome/ cuide de seu microfone/ e deixe quem é malandro em paz”, pois não deve “falar de malandro quem é otário”.

Noel devolveu-lhe “Feitiço da Vila” (1934), um de seus maiores sambas, em que defende seu bairro e seu talento: “Em Vila Isabel/ quem é bacharel/ não tem medo de bamba…”. Continuando e concluindo: “São Paulo dá café/Minas dá leite/Vila Isabel dá samba”. Com estes versos aproveita para inserir a questão na famosa e histórica divisão de poder na República Velha, em que o chamado Eixo Café-com-Leite comandava a política e elegia presidentes.

Depois, é a vez de Wilson Batista, com “Conversa fiada”: “É conversa fiada dizer /que o samba na Vila tem feitiço”. Este não é dos mais inspirados: limita-se a contradizer afirmação por afirmação de “Feitiço da Vila”. Ainda manda os moradores da Vila darem duas voltas no cadeado, insinuando que não é uma vizinhança segura. E termina pelo peremptório “Assassinaram o samba”.

É até covardia, mas Noel contrapõe “Palpite infeliz” (1935), em que faz o elogio dos bairros negros e favelas do Rio, mas igualmente de Vila Isabel: “Quem é você que não sabe o que diz/ Meu Deus do céu, que palpite infeliz/ Salve Estácio, Salgueiro, Mangueira, Oswaldo Cruz e Matriz/ Que sempre souberam muito bem/ Que a Vila não quer abafar ninguém/ Só quer mostrar que faz samba também”.

Wilson apela ainda com mais dois sambas, “Terra de cego” e “Frankenstein da Vila”. Neste último, realmente perdeu as estribeiras e  visou à jugular, ao zombar do aleijão facial de Noel, que o desfigurava; mas o ofendido não mais respondeu. Dizem que depois dessa troca de amabilidades o malandro e o boêmio fizeram as pazes, tornando-se amigos.

Com os termos desta polêmica, os dois compositores estavam expressando o que se passava no samba ao redor deles. É justamente então que o malandro, protagonista principal do samba, começa a ser desestabilizado, surgindo a figura do trabalhador, esteio da política de Getúlio Vargas. Noel – branco e não favelado – é o pivô da transferência de classe do samba. Do mesmo modo, o samba em geral vai adquirindo respeitabilidade e ainda nessa década descerá do morro, quando as escolas de samba ganharem o direito de desfilar no carnaval no centro da cidade, passo decisivo em sua legitimação.

Walnice Nogueira Galvão é Professora Emérita da FFLCH-USP

Walnice Nogueira Galvão

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