Soberania Alimentar: balanço de um desmonte, por Susana Prizendt

Indústria, agronegócio e governo procuram minar os programas de combate à fome e apoio à agricultura familiar. Para maximizar o lucro, nos fazem engolir agrotóxicos e ultraprocessados. É preciso retomar luta por modelo agroecológico

Foto: MST

do Outras Palavras

por Susana Prizendt*

Sempre que nos dispomos a realizar uma reflexão sobre como o setor agroalimentar se estrutura em nossa sociedade, precisamos nos fazer uma pergunta essencial: quem define o que vai compor o prato de cada um de nós e, portanto, controla o que a população brasileira come?

Em um mundo globalizado, em que as diferentes culturas alimentares de cada região foram substituídas pela imposição de um conjunto homogêneo de espécies cultivadas, modos de preparo e hábitos de consumo, é um árduo desafio buscar a manutenção de uma autonomia por parte dos povos que habitam o planeta. São as grandes empresas transnacionais que regem a agricultura e a alimentação dos países em todos os continentes e impor limites a este domínio tem sido uma luta constante dos movimentos sociais que atuam nos territórios.

Aqui no Brasil, esta luta vem se acirrando intensamente após Bolsonaro assumir a presidência, já que, logo em seu primeiro dia de governo, ele promoveu um conjunto de medidas que, entre outros ataques à soberania alimentar, extinguiu o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea). O Conselho é uma instância essencial de participação social no desenvolvimento de políticas públicas no setor de SAN e colaborou para os avanços no combate à fome nos últimos anos. Ele se constitui em um instrumento importante, que a sociedade possui, para fazer frente ao poderoso lobby do agronegócio e da indústria alimentar, sempre ávido pelo aumento de sua lucratividade, mesmo que às custas da saúde e da dignidade da população.

Desde então, os representantes das grandes empresas agroalimentares seguem atuando com mais liberdade junto ao poder público, de modo a desmontar nossa legislação e os programas de incentivo a uma alimentação saudável e ao cultivo de base agroecológica.

Instrumentos essenciais para o combate à fome e à má nutrição, como o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), vêm sendo enfraquecidos, mês a mês, e correm o risco de serem desfigurados por mudanças na legislação, como a que institui a reserva de mercado nas compras públicas destinadas ao abastecimento escolar e a que retira a prioridade para que os assentados da reforma agrária e os povos das comunidades tradicionais sejam os fornecedores escolhidos pelos gestores dos municípios do país.

A definição de cotas mínimas para produtos de alguns setores da indústria alimentícia, como a de leite de vaca ou a de carne suína, é mais um claro ataque à soberania alimentar de diferentes regiões do Brasil, já que impede a adoção de cardápios adequados às condições sociais e ambientais de cada uma delas, além de ignorar a questão da sazonalidade, empobrecendo o cardápio dos estudantes, limitando a atuação de nutricionistas e prejudicando os agricultores dos povos quilombolas e campesinos, responsáveis por cultivar alimentos da biodiversidade e da cultura de cada local do país.

Em um momento de crise aguda, como a que vivemos, em que segundo o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19, metade da população está em situação de insegurança alimentar e nutricional no Brasil, a alimentação escolar, seja na escola ou através de cestas às famílias de estudantes, é essencial para frear o aumento da fome e do consumo de produtos alimentícios que não sejam saudáveis. O Observatório da Alimentação Escolar emitiu uma nota em defesa do PNAE e também criou uma petição para que a sociedade se mobilize para impedir os retrocessos em curso. Como as modificações já foram aprovadas na Câmara dos Deputados, a mobilização agora é para que o Senado reverta a decisão.

Mas não são somente os programas governamentais, como o PNAE, o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e a Política à Garantia de Preços Mínimos (PEPM) que estão sendo atacados; o agronegócio e as empresas da área alimentar vêm ameaçando também a difusão do conhecimento sobre o tema. A iniciativa Mães do Agro, capitaneada pela mesma elite gananciosa do setor, busca cercear a divulgação de conteúdos que revelem os danos provocados por alimentos ultraprocessados e ultraenvenenados e que ofereçam alternativas ao modelo agrícola e industrial hegemônico. Através de uma campanha denominada De Olho no Material Escolar, estimula familiares de estudantes a registrar e denunciar materiais didáticos que mencionem associações entre o agronegócio e o desmatamento, a concentração de terra, as intoxicações e doenças provocadas pelo uso de agrovenenos e outras informações que arranhem a imagem POP, TECH, TUDO que seus marqueteiros, muito bem pagos, por sinal, tentam vender para a população.

Se o termo latino sapere está na origem tanto da palavra saber, como da palavra sabor, o conluio entre a elite agrária, as empresas de agrotóxicos e a indústria alimentar visa controlar o que sabemos e o que comemos, definindo ambos conforme seja conveniente para a maximização de seus lucros.

Não é à toa que a Associação Brasileira da Indústria de Alimentos (ABIA) e a Sociedade Rural Brasileira se apoderaram, respectivamente, da presidência e da vice-presidência do Consea-SP. O estado mais rico e populoso do país tem justamente o mercado consumidor mais rentável e influência intensa na economia e na política nacional brasileiras. Assumidamente contra o Guia Alimentar para a População Brasileira, documento internacionalmente reconhecido como excelente na orientação para uma alimentação saudável, a ABIA e a SRB podem utilizar o Conselho para promover retrocessos nas políticas públicas de SAN e minar de vez a luta pela soberania dos povos sobre seus alimentos.

Conflitos de interesse são frequentes na atuação empresarial do setor agroalimentar e a Comissão de Presidentes(as) de Conselhos Estaduais de Segurança Alimentar e Nutricional – CPCE, que é um mecanismo permanente de articulação dos Conseas Estaduais para a concretização do Sistema de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN), divulgou uma carta em que denuncia a apropriação do CONSEA-SP por representantes de interesses privados, “em detrimento da participação legítima da sociedade civil organizada para a defesa do DHAA e da Soberania Alimentar”. Mas o governo paulista parece seguir firme na tentativa de dinamitar as instituições públicas e os mecanismos de participação.

A aprovação do PL 596, que terceiriza o serviço de inspeção agropecuária, realizada sob protesto de diferentes segmentos da sociedade, é mais um claro sinal de que o poder financeiro vai ganhando cada vez mais espaço no Estado de São Paulo.

Ao invés de contratar pessoas para trabalhar nos cerca de 8 mil cargos vagos na Secretaria Estadual de Agricultura e Abastecimento, a atual administração paulista segue precarizando ainda mais a já fragilizada estrutura pública da pasta e entregando um setor absolutamente essencial para ser manipulado pela dupla Agronegócio/Indústria Alimentar que, soma-se, por sua vez, à dupla Indústria Química/Farmacêutica, já que o uso desenfreado de agrotóxicos rende lucro dobrado: pela produção e venda desses venenos químicos e pela produção e venda de remédios para tratar as doenças que eles geram.

As doenças decorrentes da fome e da alimentação composta por produtos não saudáveis são uma carga pesada para a saúde pública ao redor do mundo. No Brasil, tal carga ganha ainda mais peso pela adoção de um sistema tributário que concede isenções fiscais aos agrovenenos e às bebidas açucaradas, deixando explícito como o lobby das indústrias dessas áreas é poderoso. O resultado é o valor falsamente barato de alimentos ultraprocessados e ultraenvenenados, estimulando seu consumo, sobretudo em períodos de crise econômica, como a que vivemos, por parte de setores de menor poder aquisitivo.

E, para deixar claro que a contaminação por agrotóxicos não se restringe aos alimentos frescos, o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (IDEC), realizou um levantamento, denominado Tem veneno nesse pacote, em que analisa 27 produtos ultraprocessados, identificando agrotóxicos em 16 deles! Ao comer itens repletos de açúcar, sal, gordura, corantes, aromatizantes, etc, as pessoas que ingerem tais produtos ainda levam para seus corpos uma dose de veneno agrícola e deixam de comer nutrientes que os alimentos in natura fornecem. Prato cheio para doenças e desequilíbrios.

Destacamos que todos os produtos que foram pesquisados e que possuíam o trigo como ingrediente, continham agrotóxicos. Na iminência de uma possível aprovação do uso do trigo transgênico no Brasil, algo inédito no mundo, corremos o risco dos dados apurados no levantamento se agravarem ainda mais. A Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida produziu um manifesto contra a aprovação deste novo trigo OGM e convoca todas as organizações a serem signatárias.

Para coroar o poder corporativo que descrevemos no presente artigo, o governo federal anunciou, há alguns dias, que escolheu enviar à Cúpula Mundial dos Sistemas Alimentares, a ser realizada em setembro na Organização das Nações Unidas (ONU), um ruralista histórico como representante de nosso país, o sojeiro Sérgio Luis Bortolozzo, que é vice presidente da Sociedade Rural Brasileira (sim, a mesma SRB que se apropriou da vice presidência do Consea-SP!), rompendo uma atuação que o Brasil seguia nos tempos de governos progressistas, na qual seus representantes costumavam ser lideranças reconhecidas na promoção de políticas de Segurança Alimentar e Nutricional.

Vale lembrar que o mês de abril, no qual a produção de grãos bateu novo recorde no país, também foi o mês em que houve o maior desmatamento da Amazônia dos últimos 10 anos. E que a destruição dos mecanismos de licenciamento ambiental, recém aprovada na Câmara dos Deputados e que segue em debate no Senado, deve agravar ainda mais este cenário.

Nós, conjunto de organizações que lutamos para acabar com a fome, com o envenenamento da comida e com o domínio da indústria de alimentos não saudáveis no país, desafiamos o dito representante, senhor Sérgio, a relatar o conjunto de medidas adotadas pelos governos do Brasil e de São Paulo, que descrevemos neste artigo, frente aos demais representantes da Cúpula. Se nosso país já é visto como pária internacional devido ao negacionismo em relação à pandemia e à devastação ambiental, o relato do que vem ocorrendo este ano no setor de SAN pode dar uma dimensão mais precisa da tragédia que vivemos.

Mas, é preciso ponderar que mesmo a organização da Cúpula vem sofrendo pressões corporativas e corre o risco de ser manipulada para afastar as organizações da sociedade civil e impedir um debate que leve a medidas eficazes para a promoção de Sistemas Alimentares saudáveis, justos e em equilíbrio com a natureza. Para alertar sobre essa ameaça e promover a mobilização das organizações atuantes em SSAN, estão sendo realizados encontros autônomos, em que a voz é dada a quem realmente busca resoluções aos atuais problemas enfrentados globalmente. Vale a pena acompanhar esse processo democrático no Brasil, através das redes da Conferência Nacional Popular por Democracia, Direitos e Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (CPSSAN)

Até lá (e sempre que necessário!), seguimos em luta para impedir mais retrocessos, cientes de que enfrentamos forças poderosas, mas plenamente convencidos de que somente um modelo produtivo de base agroecológica, ancorado em uma verdadeira Reforma Agrária, capaz de produzir alimentos saudáveis para toda a população, de gerar trabalho e renda no campo e de restaurar nossos biomas, poderá nos trazer um futuro viável.

Basta de engolir ultraprocessados e ultraenvenenados, queremos botar um freio no trator corporativo agroalimentar que atropela nossa soberania e tanto adoece nossa Casa Comum, o planeta tão especial, no qual a Vida, em suas incontáveis formas de manifestação, ainda pulsa e nos inspira a seguir em frente.

*Susana Prizendt é arquiteta e urbanistas, da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida (CPCAPV) e do MUDA-SP.
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