Sobre os abusos sexuais no meio religioso: minha carta póstuma a Sabrina Bittencourt, por Lucia Helena Issa

Há pouco mais de um ano morria a ativista de direitos humanos e contra os abusos sexuais no meio religioso, Sabrina Bittencourt.

Sobre os abusos sexuais no meio religioso: minha carta póstuma a Sabrina Bittencourt

por Lucia Helena Issa

Há pouco mais de um ano morria a ativista de direitos humanos e contra os abusos sexuais no meio religioso, Sabrina Bittencourt.

Sabrina decidira tirar a própria vida naquele dia, depois de incontáveis ameaças de morte, torturas emocionais e perseguições covardes perpetradas por homens do meio evangélico e espírita no Brasil e por seguidores do guru do bolsonarismo em sua forma mais primitiva e violenta, Olavo de Carvalho. A escolha de Sabrina devastaria o coração de todas nós.

Sim, Sabrina, um ano se passou e você não chegou a ver a primeira condenação de João de Deus por seus crimes sexuais contra quatro das muitas mulheres que ele dilacerou e cujas vidas destruiu. Você não pôde ver, Sabrina, a força de tantas mulheres que, com a sua ajuda, decidiram falar.

Ao reler essa CARTA que escrevi a você, descobri que ainda dói muito saber que você não está conosco, ainda  dói ver o Brasil mergulhado no fanatismo religioso, no obscurantismo que agride, na intolerância que incendeia templos afrobrasileiros, no ódio que agride uma refugiada. Mas também há focos de esperança e luz, Sabrina.

Deixo aqui, como uma mensagem na garrafa, a carta que lhe escrevi naquela manhã de imensa dor.

“Anoitecia no Rio de Janeiro quando comecei a receber as primeiras mensagens  relatando o seu  desaparecimento, Sabrina, o desaparecimento da ativista pelos direitos das vítimas de abuso sexual, o desaparecimento da  amiga, da mulher que ajudou a desmascarar o médium  João de Deus e também o “guru” Prem Baba, dois dos muitos líderes religiosos acusados de estupro no Brasil, da menina que foi abusada na infância por Mórmons, por homens da religião de sua família e que deveriam protege-la, a mulher que se fortaleceu e  passou a combater e denunciar o abuso sexual no meio religioso, a ativista que vinha fazendo um fantástico  trabalho contra o silêncio e a hipocrisia que protegem os abusadores no Brasil.

Poucos minutos depois de entrar em casa, recebi uma  mensagem da amiga Gabriela Cilento Conti Montenegro, pedindo que eu a ajudasse a descobrir, através de amigos meus na Embaixada brasileira no LÍBANO, se você havia ido para o Oriente Médio,  já que vinha mudando de país frequentemente devido às ameaças de morte que recebera.

Mas as informações que eu recebia, Sabrina, eram confusas e me deixavam a cada minuto mais apreensiva.

Alguns amigos afirmavam que você havia entrado de fato no Líbano e, horas depois, seu filho, Gabriel, confirmou que você entrara no Líbano, no Oriente Médio que tantas vezes me acolheu e onde nasceram meus avós.  

Hoje acredito que talvez tivéssemos conseguido salva-la, Sabrina, se você tivesse se afastado um pouco da atmosfera tóxica das redes, das ameaças de homens medievais que dedicam suas vidas vazias ao ódio à mulher, à misoginia e às fogueiras inquisitórias virtuais em que se transformaram as redes sociais no Brasil.

Você lutou muito para dar voz às vítimas de um João que jamais foi de Deus, você fez longas travessias emocionais e geográficas, mas continuou conectada com algo sombrio demais,  sendo alvo de uma das facções criminosas mais perigosas, sombrias e hipócritas do mundo hoje: a extrema – direita – fundamentalista – pseudo – cristã que chegou ao poder no Brasil.

A facção que guindou ao poder homens como Jair Bolsonaro e também os seguidores fanáticos de Malafaias, Olavos, João e Macedos.

Você  estava geograficamente distante , mas permanecia acessível ao que há de mais cruel  e canalha no Brasil, recebendo  ameaças de morte de  homens inseguros e pouco viris que celebram a morte de crianças indígenas, de crianças palestinas, de crianças negras no Rio, que sonham com uma arma que lhes faça sentirem  mais viris do que realmente são, homens que celebram a morte de mulheres por todo o Brasil e afirmam que o feminicídio não existe,  homens que  idolatram o estado genocida dirigido por Netanyahu, homens que jamais leram o suficiente para entender que o Israel atual, que nasceu  em 1948, não é o Israel bíblico que acabou há mais de  2 mil anos (e a própria Bíblia diz isso), homens que  cultuam apenas a morte.

Homens hidrófobos, lobotomizados, alimentados com rações diárias de misoginia e ódio por anões morais como Paulo Pavesi, Olavo de Carvalho e Silas Malafaia.

Há pouco mais de um ano, Sabrina, eu comecei a, além do meu trabalho como escritora e  jornalista, gravar vídeos falando sobre a intolerância religiosa no Brasil, sobre a misoginia no Brasil, sobre o que me surpreendeu no que vi no Oriente Médio, sobre meu trabalho com as  mulheres refugiadas e sobre o ódio religioso alimentado por Olavo de Carvalho. Foi quando milhares de seguidores insanos de Olavo, e ele próprio, invadiram de forma covarde esse espaço para me agredir, causando imensa dor à minha família e à minha filha, de apenas 12 anos naquele momento

Eu decidi lutar.

Você lutou incansavelmente também, mas ontem, por razões que só você conhece verdadeiramente, decidiu partir.

Não conseguimos salvá-la. 

Os falsos profetas, que nada têm em comum com a mensagem de Cristo, venceram na sombria noite de ontem.

Perdoe- me, Sabrina.

Eu passaria em abril pela Espanha, antes de voltar para a Síria, para o meu trabalho humanitário com as mulheres refugiadas, e nós nos encontraríamos em Barcelona. 

Perdoe- me, Sabrina.

Chorei hoje por você, pelo Brasil, pelo triste país em que nos transformamos, pelo abraço que não lhe dei em tempo, pelas palavras que não pude lhe dizer em tempo, pelo livro que não pude lhe entregar, pela sua vida, que não consegui salvar.

A dor me dilacera hoje, mas sei que, de alguma forma, você estará viva em cada uma de nós.

Você foi semente de trigo e germinará para sempre em cada uma de nós.”

Lucia Helena Issa é jornalista, escritora e embaixadora da paz por uma organização internacional. Foi colaboradora da Folha de S.Paulo em Roma. Autora do livro “Quando amanhece na Sicília”. Pós-graduada em Linguagem, Simbologia e Semiótica pela Universidade de Roma. Atualmente, vive entre o Rio de Janeiro e o Oriente Médio e está terminando um livro sobre mulheres palestinas que lutam pela paz.

Redação

4 Comentários

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  1. Combatente, guerreira Sabrina, com certeza você será sempre a semente de trigo que há de germinar entre nós, combatendo o odio, o racismo, o feminicidio, o homofobismo e toda e qualquer tipo de preconceito civil politico e religioso ! Vida eterna á Sabrina!!

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