Sozinhos na Escola, por Fernanda Almeida

O projeto de poder bolsonarista baseia-se formal e materialmente num modelo anticivilizatório, portanto, contrário à educação como processo emancipatório.

Sozinhos na Escola[1]

por Fernanda Almeida

O veto do Presidente Jair Bolsonaro ao PL 3688/2000, que dispõe sobre a prestação de serviços de psicologia e de serviço social nas redes públicas de educação básica, publicado no diário oficial de 9 de outubro de 2019, é muito mais representativo e simbólico do que as razões supostamente técnicas apresentadas por ele.

Se existe algo autêntico no governo do Presidente Bolsonaro é a coerência. Lamentavelmente ele tem se mantido absolutamente coerente em suas medonhas convicções políticas e comprometido com a estratégia paranoica de sua campanha.

Não tendo participado de debates públicos durante o processo eleitoral, interditou o diálogo com a sociedade e não permitiu que sua proposta de governo fosse questionada ou confrontada. Com distanciamento de um ano é possível afirmar que sua proposta de governo expressa coerência com seu mandato: austeridade para destruir o campo dos direitos sociais e atender aos interesses neoliberais da economia financeirizada; ultraconservadora nos costumes para sacramentar o acordo com os setores reacionários, sobretudo vinculados às igrejas de matriz neopentecostal; obscura na área da Segurança Pública para camuflar suas relações e de seus filhos com as narcomilícias cariocas e, profundamente obtusa e delirante no campo ideo-político para preservar a horda de perversos anônimos, sujeitos cuja mentalidade é uma caricatura do pensamento anticomunista do período da guerra fria.

Para dar exemplo do teor superficial da proposta de governo, no item “Educação” – que tem a ver com o debate que aqui pretendo fazer – duas frases saltam aos olhos: “A Educação também deveria ser melhor com o valor que o Brasil já gasta!” e “Um dos maiores males atuais é a forte doutrinação.” Não há qualquer fundamentação sobre os dados de financiamento, tampouco fontes de evidenciem a tal “doutrinação”. É uma proposta política da profundidade de um pires, ancorada numa ideologia fundamentalista e persecutória.

Neste contexto, o veto ao PL 3688/2000 não causou estranheza aos especialistas das áreas. Ainda que a justificativa de “inconstitucionalidade” da proposição precise ser analisada, uma onda indignação e incredulidade por parte dos setores progressistas tomou conta das redes sociais. Independente do argumento jurídico e administrativo, perdemos a importante oportunidade de construção de um trabalho multiprofissional nas escolas públicas do país, pois é isso que estamos reivindicando: a inserção de profissionais com habilidades e competências específicas para qualificar o processo educacional de crianças e adolescentes.

O projeto de lei tramitava na câmara há 19 anos, seu conteúdo, justificativa e relevância tem base na realidade, ou seja, a situação precária das condições de educação nas escolas do país. Os projetos positivos realizados nos últimos anos, a exemplo, do “Programa Mais Educação”, perdem espaço na agenda política em benefício do modelo de “Escola Cívico-Militar” alardeado pelo ministro da educação fanfarrão, aspirante a ator de stand-up comedy.

O que precisa ser compreendido agora é que o veto é resultante da articulação e fundamentação de um processo muito maior: a aniquilação do direito fundamental à educação pública, gratuita, laica e de qualidade em todos os níveis. O projeto de poder bolsonarista baseia-se formal e materialmente num modelo anticivilizatório, portanto, contrário à educação como processo emancipatório. Em seu discurso na última Assembleia Geral da ONU isso ficou claro. Bolsonaro impressionou pelo tom beligerante, mal educado e desconhecedor do acúmulo histórico, político e social da ONU no enfretamento das questões relativas à pauta dos direitos humanos.

Se do ponto de vista estrutural e prospectivo Bolsonaro já demonstrou seu despreparo para enfrentar a grave situação da Educação no país, do ponto de vista conjuntural e cotidiano ele e sua equipe demonstram não ter ideia dos desafios dos educadores nas escolas públicas de quase todo país. São instalações precárias e condições gerais de trabalho aviltantes, com exceções que confirmam a regra. Como assistente social trabalhadora na área da saúde recebo solicitações de atendimento de alunos e alunas com quadros graves de sofrimento e adoecimento: automutilação, ideação suicida, violência e conflitos interpessoais e uso abusivo de substâncias psicoativas. Os professores, por sua vez, são os servidores públicos que mais sofrem transtornos emocionais decorrentes da precarização das condições de trabalho. A lógica neoliberal busca refirmar a individualização do sofrimento culpabilizando os indivíduos e seus familiares, a fórmula não é nova, ela apenas assume nova roupagem na medida em que com a decomposição dos direitos e das políticas sociais o sofrimento torna-se cada vez mais privado e muitos sucumbem.

Evidente que a inserção de profissionais de serviço social e psicologia na Rede de Educação não trará a imediata solução para os graves problemas enfrentados, afinal trata-se de um problema estrutural na construção e desenvolvimento do país, todavia, certamente a ampliação do quadro de servidores da educação com o acréscimo colaborativo de conhecimento teórico-metodológico, técnico-operativo e ético-político das duas áreas – Serviço Social e Psicologia – poderia aportar recursos importantes na construção e articulação de projetos pedagógicos, auxiliando educadores, pais e alunos no enfrentamento das condições objetivas e subjetivas no âmbito escolar. Como se pode notar não se trata de uma luta corporativa em defesa de novos espaços para os profissionais das duas áreas, ainda que essa aspiração seja legítima.

O que o veto evidencia é o absoluto descaso do atual governo brasileiro com a educação dos mais pobres e com o futuro da nação. O Serviço Social brasileiro tem acumulado nos últimos quarenta anos um histórico de luta pautada pela defesa dos direitos dos trabalhadores e das trabalhadoras. O projeto profissional construído coletivamente tem em seu DNA o enfrentamento do arbítrio e do autoritarismo. A profissão foi regulamentada no país no ano de 1957 e, de lá para cá, as/os assistentes sociais participaram ativamente da construção de políticas públicas, de programas e projetos com a perspectiva de ampliação de direitos sociais. Não será esse veto que nos impedirá de dar continuidade à defesa daqueles que mais necessitam do Estado. A compreensão de que se trata de mais uma medida no processo de captura do fundo público por interesses do poder econômico nos é revelada na atuação prática.

No mês passado, dia 19 de setembro, o Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae recebeu em seu auditório a professora emérita do Hunter College City University of New York, Elizabeth Ann Danto, para o lançamento de seu livro “As Clínicas Públicas de Freud: psicanálise e Justiça Social”, uma pesquisa exaustiva sobre a ambição e as iniciativas de Freud na proposição e implantação das Clínicas Públicas de atendimento e cuidados aos pobres e desvalidos no pós-guerra. Na noite de lançamento no Instituto Sedes, Danto exibiu um filme muito interessante sobre o trabalho e a pesquisa de Anna Freud na área da pedagogia e da educação infantil, embasados pela psicanálise. Para nós, ficou muito clara a importância da perspectiva de atenção integral ao desenvolvimento de crianças e adolescentes.

Como não poderia deixar de ser, no Brasil de Bolsonaro o filósofo da educação e educador Paulo Freire tornou-se o inimigo preferencial do projeto obscurantista. Mesmo sendo considerado internacionalmente um dos mais notáveis pensadores da história mundial da pedagogia, o patrono da educação brasileira e fundador do movimento da pedagogia crítica é o objeto de vilipêndio e perseguição das hordas obscurantistas e regressistas. Neste Brasil de Bolsonaro, Theodor W. Adorno é atacado por Olavo de Carvalho – ideólogo do governo – por ter supostamente sido autor das letras e músicas dos Beatles. Se tivessem lido Adorno, “bolsolavistas” saberiam que muito mais importante que as supostas “canções”, o filósofo e sociólogo autor de uma vasta bibliografia nos legou uma coleção de textos fundamentais para compreender a educação como instrumento de emancipação. Em “Educação após Auschwitz”, Adorno nos oferece memorável reflexão sobre a devastação que o projeto nazista de Adolf Hitler promoveu e sobre a imperiosa necessidade de que isso não mais se repita.

O veto ao projeto reacende a necessidade de reestabelecimento de contato real com os sujeitos mais afetados pela medida, ou seja, pais e estudantes moradores dos bairros mais afetados pela maciça destruição de direitos. É preciso diálogo com setores da população num amplo trabalho de base. A escola, o posto de saúde e demais equipamentos públicos de maior capilaridade são locais estratégicos. Neste sentido é preciso construir espaços de diálogo que reafirmem direitos sociais e convoquem ao debate coletivo. A defesa da Educação universal, pública, gratuita, laica e de qualidade precisa fazer sentido no cotidiano desses sujeitos. Felizmente, setores da sociedade seguem mobilizados; os Conselhos Federais de Serviço Social e Psicologia estão trabalhando articulados pela derrubada do veto presidencial. Vale dizer que em algumas cidades estas categorias profissionais já desenvolvem trabalhos no âmbito educacional. Um projeto de lei com o mesmo teor do PL 3688/2000 está tramitando na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo.

Que tenhamos serenidade para suportar os descalabros desse governo e disposição de luta para recompor o campo democrático. Em relação ao veto, a fórmula se repete ad nauseam: o “Mito” destrói; parte atordoada do povo grita, outra parte segue o baile; em seguida uma névoa de resiliência toma conta do ambiente até que o “Mito” acorde no dia seguinte e promova para mais desolação. “Tem que mudar tudo isso que taí, talquei?”

Fernanda Almeida – Assistente social, coordenadora do curso de Pós-Graduação em Serviço Social e Saúde da Faculdade Paulista de Serviço Social – FAPSS. Pesquisadora desde 2005 do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Ética e Direitos Humanos (NEPEDH) da PUC-SP. Atua na Rede Pública de Saúde-SUS em Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas, CAPD-AD. Aluna do curso Clínica Psicanalítica: Conflito e Sintoma do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.

[1] O título do artigo é uma menção ao livro “Sozinhos na Escola” de José Pacheco, educador. Um exemplo de como a Educação pode ser livre e democrática. Em 2007 pudemos ver em lócus sua utopia na admirável Escola da Ponte em Portugal.

Redação

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