Três ou quatro filmes apocalípticos, por Walnice Nogueira Galvão

O espectro de Kafka, e toda a coorte do teatro do absurdo, insiste em rondar o cinema

Cena do filme “À espera dos bárbaros”. | Reprodução

O espectro de Kafka, e toda a coorte do teatro do absurdo, insiste em rondar o cinema.

É o que se verifica em À espera dos bárbaros (2020, dir. Ciro Guerra), realizado sob a égide de Caváfis, o bardo de Alexandria e da decadência dos impérios, que lhe empresta o título. Num posto avançado colonial insignificante e remoto, no meio do deserto, o Magistrado legisla e cuida de, sem muita convicção, manter os bárbaros à distância. Mas estes são uns pobres-diabos, e não ameaçam ninguém. Até que surge um coronel interventor, que instaura a tortura e os interrogatórios brutais, sob pretexto de erradicar uma sedição. O conflito está armado, e seu desenvolvimento é o fulcro do filme. O entrecho lembra ainda O deserto dos tártaros, romance de Dino Buzzatti.

J. L. Coetzee, autor do romance em que o filme se inspira, é o sul-africano que, logo depois de Nadine Gordimer, ganhou o Prêmio Nobel. Ambos  foram dedicados militantes que em sua ficção denunciaram os crimes do apartheid que, esse sim, era genocida e tremendamente cruel. Felizmente já se foi, e não sem luta, vide os 27 anos que Nelson Mandela passou encarcerado. O apartheid encontrou nesses e em outros escritores e artistas, como a cantora Miriam Makeba, opositores de peso e respeito, para maior glória da nação..Bela safra de filmes viria mais tarde, perpetuando os gloriosos fastos da resistência, mas o teatro, a canção e a literatura tiveram a honra de enfrentar a repressão ao vivo.  

O diretor do filme é colombiano e já chamou a atenção com outra obra, O abraço da serpente, em que um índio, último remanescente de sua nação, e um explorador branco partem numa demanda um tanto vaga. Como se vê, o diretor insiste em revolver a dolorosa chaga da fricção étnica e das catástrofes que acarreta. Exige registro a escalação de um trio de atores que não podia ser melhor: Mark Rylance é o protagonista, o Magistrado, acolitado por Johnny Depp como o sádico coronel e por Robert Pattinson como seu lugar-tenente.

Dos três, o menos conhecido entre nós é Mark Rylance, aliás não só entre nós, em Hollywood também: um artista com seu currículo extraordinário só tardiamente ganhou um Oscar, e mesmo assim de ator coadjuvante. Isso ocorreu no filme A ponte dos espiões, de Steven Spielberg, em que faz o Coronel Abel, o espião russo que, julgado e condenado a 30 anos de prisão nos Estados Unidos, nunca abriu a boca, nem confessou nem se entregou à delação.

Desconhecido propriamente o ator não era, pois já ganhara nada menos que três Tonys, o maior prêmio teatral americano, nos palcos da Broadway. Grande ator shakespeareano, vem da Royal Shakespeare Company. Quando reconstruíram o Globe Theater consumido por um incêndio, de que o bardo inglês foi dono e ator, foi Mark Rylance seu primeiro diretor, e por dez anos, de 1995 a 2005.

O teatro reconstruído fica bem à vista no Embankment, na margem do Tâmisa e segue o modelo das casas de espetáculos à época. A plateia não tem assentos: todo mundo ficava de pé, com o palco à altura dos olhos. Ali ficava a plebe, em grande algazarra, torcendo conforme os lances do enredo. De planta arredondada, ao longo das paredes sobrepunham-se três ou quatro andares de lugares mais caros com bancos, tudo isso coberto por telhado de colmo, enquanto o centro do círculo ficava a céu aberto, por razões de iluminação e de oxigênio.

Durante toda a década em que Mark Rylance dirigiu a casa, não deixou de se apresentar como ator, e é possível apreciá-lo em documentários do Globe Theater.  Assim o vemos em Twelfth night, com elenco masculino (obrigatório no teatro elisabetano),  vivendo uma impagável Condessa Olivia, que desliza pela ribalta com passinhos miúdos encobertos pelas volumosas saias. Deve ter-se divertido à beça.

Este filme, feito agora, certamente é uma alegoria do fim do mundo, ou do Apocalipse, um dos gêneros cinematográficos mais numerosos atualmente. A pandemia e a ascensão da direita, decretando o fechamento dos horizontes que descortinavam o futuro, tornaram esse tipo de filme comum e banal – mas este À espera dos bárbaros nada tem de comum ou de banal. Ao contrário, convida à meditação.

*Walnice Nogueira Galvão é Professora Emérita da FFLCH-USP

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