Eliara Santana
Eliara Santana é doutora em Linguística e Língua Portuguesa, com foco em Análise do Discurso. Ela é pesquisadora associada CLE/UNICAMP, onde participa do projeto Pergunte a um/uma Cientista. É integrante do Observatório das Eleições. Desenvolve pesquisa sobre desinformação, desinfodemia e letramento midiático no Brasil.
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Uma escolha difícil parte 6, por Eliara Santana

Não foi uma escolha difícil antes, e não será uma escolha difícil em 2022 – e editorial do Estadão deixa isso bem claro

Por Eliara Santana*

Nunca foi uma escolha difícil. E em 2022 não será uma escolha difícil. Mas o jornal Estado de São Paulo insiste nessa ideia estapafúrdia e desonesta. E, claro, contribui para a minha série – que chegará a 100 até a eleição, daqui a um ano.

Muito bem, no editorial de hoje, um dia após as manifestações contra Bolsonaro  convocadas pela esquerda e que foram sim expressivas e importantes e vibrantes, o jornal traz a máxima “Agressividade à esquerda”, em que coloca de novo no mesmo barco Bolsonaro e Lula, ou o bolsonarismo e o lulopetismo, como . Por mais que os editorialistas do jornal paulista tenham perdido a capacidade de analisar qualquer cenário estrategicamente – e parece que de fato perderam – essa comparação é inaceitável e desonesta.

Para compor a argumentação estabelecendo a ligação que estabelece entre os dois atores políticos e para dizer que a esquerda é também tão agressiva quanto os bolsonaristas, o Estadão recorda o caso do tuíte que José de Abreu compartilhou contra Tábata Amaral. Antes de prosseguir, deixo clara minha posição absolutamente contrária a qualquer insinuação de violência contra a mulher no Brasil – um país machista e misógino. Portanto, condenei e condeno a manifestação de José de Abreu e do autor do tuíte. Não se faz apologia à violência contra a mulher. Qualquer mulher. 

Feito esse aparte, voltemos à tentativa de construção argumentativa do editorial do Estadão para mostrar que a esquerda também não presta. Ao longo do texto, o jornal tenta usar apenas a estratégia de desqualificação do oponente (pra eles, inimigo, sem dúvida). Tenta, porque para uma desqualificação efetiva e bem feita, que produza resultados simbólicos expressivos, é preciso ter talento na construção argumentativa, com argumentos potentes que possam de fato deslocar o oponente e mostrar ao leitor que aquele de quem se fala é péssimo.

Mas, sinceramente, para falar que a esquerda não defende a democracia de verdade, como o bolsonarismo também não defende, o jornal recorre ao exemplo da Venezuela? Dizendo que “o apoio de Lula a regimes não democráticos, como o da Venezuela ou de Cuba, campeões de violações de direitos humanos em nome do “socialismo”, revela que sua defesa da democracia depende da plateia. Não se trata de uma convicção firme. Outros interesses podem condicioná-la, sem maiores rubores”. Francamente! Dilma, Lula e o PT foram atacados por anos. Nunca deram uma resposta que não fosse pela via institucional. Dilma não fez uma única declaração contra os Poderes da República. Lula não aceitou se exilar e se entregou à prisão. Nunca incitaram qualquer tipo de reação fora da institucionalidade. Comparar essas atitudes à atitude de Bolsonaro, que ataca o STF a todo o momento, dizendo que esquerda e bolsonarismo se equivalem na não defesa da democracia é de uma desonestidade calhorda.

Há ainda uma pobreza conceitual extrema que compõe a tentativa de argumentação do editorial, uma não clareza em relação ao significado das coisas. Como no trecho a seguir:

“Por fim, o lulopetismo e o bolsonarismo se equivalem no negacionismo. Bolsonaro, por exemplo, não reconhece que errou ao dificultar a aquisição de vacinas e continua pregando o uso da cloroquina no tratamento contra a covid, custando milhares de vidas de brasileiros, apenas para satisfazer os interesses eleitorais do bolsonarismo. Incapaz de enfrentar com responsabilidade a pandemia, Bolsonaro optou por negar sua gravidade, instaurando uma revoltante política de descaso com a vida da população. Igualmente negacionista e repleta de interesses políticos é a recusa do PT em admitir seus erros na seara econômica, na conivência com a corrupção e com o mau uso do dinheiro público e na disseminação do ódio no País. Mesmo depois de todos os danos causados ao Brasil, Lula continua pregando a irresponsabilidade fiscal e a cizânia, como se vê pelo comportamento de seus apoiadores”.

O editorialista não entendeu de fato a que se refere o conceito de “negacionismo”. E é cretino ao dizer que o PT disseminou ódio no país. O Partido dos Trabalhadores foi vítima , isso sim, de uma campanha sórdida ancorada pela Lava Jato e a mídia corporativa, Estadão incluído, ao longo de sete anos. De fato, a resiliência do partido deve deixar furiosos os envolvidos na trama, e isso até explica um editorial tão estúpido.

E como não poderia deixar de ser, o editorial menciona o calo da mídia corporativa, o debate sobre a regulação da radiodifusão. Diz  o texto:

“A defesa lulopetista da “regulação da mídia”, sob o argumento de que a imprensa persegue Lula, também contraria os fundamentos do Estado Democrático de Direito, sendo, portanto, tão constrangedora quanto a hostilidade bolsonarista à imprensa. Não cabe ao Estado determinar o que os cidadãos podem ou não saber”.

O argumento pífio é eivado de mentiras e não resiste a 10 minutos de debate bem pautado. Pra começar, é preciso deixar claro que a discussão envolve a radiodifusão no Brasil, que é uma concessão pública. A discussão sobre a regulação da mídia parte do pressuposto da comunicação como direito, comunicação plural, conceito que não se sustenta e não se coloca em prática com o cenário de altíssima e inaceitável concentração da mídia no Brasil. O debate sobre a regulação não contraria fundamentos do Estado de Direito, pelo contrário; primeiro porque  os grupos midiáticos são empresas, têm interesses econômicos e toda atividade econômica deve ser regulada; segundo porque a proposta prevê que sejam regulamentados artigos da Constituição, sobre a comunicação, que ainda não estão regulamentados. Por fim, a proposta de regulação em nenhum momento versa sobre regulação ou controle do que os cidadãos devem ou não ver. Quem de fato faz isso são os grandes conglomerados de mídia que mostram ao público uma só voz.   

Esse editorial – argumentativamente pobre e precário, uma lástima do ponto de vista da produção textual – confirma o que falei mais cedo: as manifestações de 2 de outubro mostraram que a esquerda está viva, vibrante e cada vez mais vermelha. Portanto, pronta para o embate, organizada para a luta. E que a coisa amorfa que os jornais paulistas chamam de terceira via continua amorfa, continua sem identidade, sem força, continua sem nenhuma condição de se colocar no debate e na pista. Seria muito mais produtivo para o debate nacional se o Estadão fizesse um editorial propositivo, falando quais as propostas efetivas que a tal terceira via tem para o país. Mas parece que nem eles sabem. E aí, o melhor caminho é mesmo dizer barbaridades sem sentido e atacar a esquerda.

Enfim, nunca foi uma escolha difícil. E não será.

*Eliara Santana é uma jornalista brasileira e Doutora em Linguística e Língua Portuguesa pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG), com especialização em Análise do Discurso. Ela atualmente desenvolve pesquisa sobre a desinfodemia no Brasil em interlocução com diferentes grupos de pesquisa.

Este texto não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN

Eliara Santana

Eliara Santana é doutora em Linguística e Língua Portuguesa, com foco em Análise do Discurso. Ela é pesquisadora associada CLE/UNICAMP, onde participa do projeto Pergunte a um/uma Cientista. É integrante do Observatório das Eleições. Desenvolve pesquisa sobre desinformação, desinfodemia e letramento midiático no Brasil.

1 Comentário

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  1. Essa gente sempre foi golpista e corrupta. Batem a carteira e gritam pega ladrão.
    É preciso não cair na ladainha deles e sair para a discussão de sua pauta.
    O combate corrupção não é e nem pode ser proposta de governo. esse combate deve acontecer através dos meios legais e,ao governo cabe,quando muito,junto com os poderes legislativo e judiciário,elaborar mecanismos para que se possa combater com maior efetividade esse mal.
    É preciso entender que essa gente insiste nessa pauta única não por questões morais e sim por questões de interesse próprio.
    A corrupção,tão combatida na Petrobras quando administrada nos governos populares,virou,vejam só,sinônimo de competência no atual governo ao adiantar mais de 30 bilhões de dólares aos acionistas,somente neste anos. Ao praticamente doar a BR distribuidora e,de quebra,ainda lhe garantir o monopólio.
    Este é somente um dos exemplos do que eles chamam de corrupção.
    Se querem falar em corrupção deveriam,minimamente,mostrar como surrupiaram 1 TRILHÃO de dólares de nosso PIB a cada ano.
    Foi isso que o golpe nos mostrou.
    Aliás,faríamos muito bem se começassemos a listar o que tinhamos antes do golpe e que,agora,não temos mais. Devemos começar logo porque a lista é grande.

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