Uma psicanálise do fascismo, por Daniel Lirio

Quando a tensão entre agressividade e moralidade aumenta muito, o fascismo promete uma conciliação

do Psicanalistas pela Democracia 

Uma psicanálise do fascismo

por Daniel Lirio*

Vermelho ou laranja? Esquerda ou direita? Liberdade ou segurança? A favor ou contra? Falar ou calar? Casar ou comprar uma bicicleta? A cada dia precisamos tomar dezenas de decisões, sopesar a eficiência, a ética e as vontades do coração que, frequentemente, apontam caminhos opostos. Ora os sentimentos estão divididos em uma ambivalência doida, ora a razão, atônita, entende motivos diversos, contraditórios.

Sigmund Freud articula a disputa entre esses vetores conforme instâncias intrapsíquicas: cada pessoa tem um “eu interior”, que funciona como um servo que deve obediência a diferentes senhores. Um deles, o chamado Superego, é o imperativo de seguir os preceitos éticos e morais assimilados na cultura. Outro Senhor é a Realidade, que também deve ser reconhecida e considerada. Por fim, temos tendências humanas aparentemente contraditórias: uma que nos leva à ligação com o outro, a fazer laços sociais, a tudo que faz juntar e aproximar; outra que nos leva à separação e ao desligamento do outro e dos laços sociais. Quando essas duas tendências conseguem se articular constitui-se um cenário positivo de criatividade e potência; do contrário, teremos problemas… Para fins didáticos, vamos tratar essas tendências como duas entidades diferentes. Assim, o eu, ou ego, é um servo que deve obediência a quatro senhores: Superego, Realidade, Pulsão de Vida e Pulsão de Morte.

A tarefa do ego é ingrata, pois as vontades desses senhores são contraditórias entre si. O ego deve, portanto, superar-se, reinventar-se e usar de muita arte para satisfazer 2 ou 3 desses senhores, mas jamais conseguirá satisfazer os 4 de uma vez: sempre algum deles estará frustrado.

No início da teorização freudiana, a grande oposição era entre as pulsões eróticas e os princípios morais. Embora alguma inibição fosse necessária para a civilização, ele já alertava que a cultura exigia uma repressão desmedida, a qual a psicanálise poderia ajudar a equilibrar. Entretanto, há outra oposição bastante perturbadora e que sempre cobrou um preço alto; a saber, a oposição entre a pulsão de morte e os princípios ético-morais.

Separada da Pulsão de Vida, a Pulsão de morte se revela como agressividade, que poderia ser tomada como uma vontade de não se haver com o outro enquanto diferente, enquanto alteridade, pois toda tensão com o outro é sentida como desprazer, inquietação, angústia. Em contraposição, os princípios morais nos dizem que temos de conviver com as diferenças, respeitar as leis e até, pasmem, sermos bons com esse outro!

Quando a tensão entre agressividade e moralidade aumenta muito, o fascismo promete uma conciliação: e se criarmos uma categoria de pessoas para as quais possamos canalizar todo o nosso ódio e continuarmos de acordo com os demais? E se o ódio a essas pessoas for não apenas permitido, mas desejado, inclusive preconizado pelo princípio moral? Nesse caso, os dois senhores ficariam muito satisfeitos. A descarga de ódio como princípio moral constitui o que se chama em psicanálise de uma poderosa forma de gozo.

Essa estratégia funciona se conseguir superar um entrave: o Senhor Realidade exige respeito! Há de se encontrar, portanto, uma forma de ludibria-lo. Mussolini, como jornalista, e Hitler, como artista plástico, sabiam muito bem que a forma de comunicar suas propostas seria crucial para conquistar a adesão a seus discursos. Algumas poucas frases e ideias simples, constantemente repetidas e carregadas de forte apelo imaginário e afetivo são capazes de deixar o Senhor Realidade atônito, hipnotizado e negligente às mais óbvias provas de contradição. Assim, as quatro medalhas de ouro de Jesse Owens nas Olimpíadas de Berlim em 1936 não abalaram a crença germânica na superioridade da “raça ariana” – nem, diga-se de passagem, a superioridade da “raça branca” nos Estados Unidos.

Portanto, a oposição entre Bem e Mal deve ser apresentada por frases simples e um influxo ininterrupto de imagens, eximindo o pensamento de sua tarefa. De um lado, teremos a imagem do homem branco de olhos azuis, uma suástica, imagens de limpeza, pureza, o resgate das tradições, pessoas simples trabalhando, uma família feliz, unida: Deutschland über alles, dizia o hino nazista, “Alemanha acima de tudo”. Do outro lado, caricatura de judeus, imagens de sujeira, ratos, a corrosão moral exposta como corrupção física; toda a arte que destoasse de padrões estéticos tradicionais era tomada como arte degenerada.

Inundado por imagens, o campo da contradição deteriora-se em mero maniqueísmo, uma polarização pobre entre bons e maus. Logotipos, fotos, vídeos e memes prometem chapar a experiência e varrer os conflitos para fora; a contradição deixa de ser interna para tornar-se um mero Nós versus Eles.

O uso das imagens como forma de anular contradições também vale para tragédias brasileiras. O massacre ocorrido em Suzano, quando ex-alunos entraram em uma escola e mataram 8 pessoas, constituiu o primeiro momento da barbárie. Mas houve também uma segunda violência, pela exposição em TV aberta de imagens do massacre e pelos vídeos que circularam nas mídias sociais. Embora cause perplexidade, essa curiosidade mórbida pode ser compreendida como forma de desarticular elementos fundamentais. O cidadão comum que votou em um candidato que posava para as câmeras fazendo um gesto de arma na mão, que achava divertido ver grupos de jovens imitando o candidato, fazendo gestos com arminha – essa mesma pessoa, que se considera sinceramente um “cidadão de bem” – pode sentir-se penalizada com a tragédia de Suzano sem se deparar com a contradição que isto implica. Ou seja, ele pode simultaneamente se divertir com as cenas em que jovens simulam a posse de armas e se entristecer com o uso real de armas, quando as vítimas não são os inimigos designados, isto é, os comunistas, feministas, LGBTs, sem-terra, índios etc.

Prejuízos

A articulação entre moral e ódio promete uma solução eficiente para os sujeitos, mas é preciso reconhecer seus perigos e desvantagens. Um ponto importante é a aposta na limpeza pela eliminação do inimigo. Embora promissora à primeira vista, ela jamais poderia se completar. Quando todo o inimigo é eliminado, o mecanismo inconsciente que produz satisfação pelo gozo mortífero continua em jogo, exigindo a eleição de uma nova ameaça, externa ou interna. Ou seja, a ideia de encontrar a paz por meio da violência é necessariamente falaciosa.

Outro problema decorre de uma característica do erotismo, o qual resulta da articulação entre a pulsão de vida e a pulsão de morte. O erotismo implica a imbricação entre as tendências de vida, sexuais, e uma certa agressividade, algo que também barre o outro, ponha limites ao outro, possa subverte-lo; enfim, cause alguma desordem…. Quando a pulsão de morte se expressa isoladamente, portanto, ela também isola a pulsão sexual. O resultado é que o sexo, em situações extremas, tem dois tristes destinos: ora se transmuta em seu oposto, o estupro, a pura violência ao outro, ora se torna extremamente careta, civilizado, domesticado, que poderíamos nomear como o sexo sem sexo.

Aqui no Brasil, a desfusão pulsional promovida pelos campos conservadores tem como um dos lados a chancela às violências, com a criminalização da pobreza, a apologia às armas, as ideias de instaurar a pena de morte, reduzir a maioridade penal, restringir os direitos humanos, exaltar a tortura etc. O outro lado, paralelo a este, é o ataque a tudo que pareça erótico, tudo que dê notícia da singularidade do desejo: a população LGBT, o corpo nu nas artes, o carnaval, a liberalização do corpo, o debate sobre gênero, a educação sexual nas escolas, enfim, uma ideia de moralização da sexualidade, a militarização do sexo. A denúncia do Golden Shower como prática cotidiana revela a incapacidade de discriminar as expressões eróticas, características de uma sociedade saudável, de eventuais transgressões dos costumes: qualquer forma de viver o desejo singularmente aparece como aberração.

Finalmente, podemos nos perguntar se é possível dizer que um país ou boa parte de sua população seja fascista. Em discussões sobre a Alemanha nazista, é comum descrever que determinado oficial era capaz de massacrar pessoas durante o dia, mas, findo o expediente, voltar pra casa e ser um bom pai de família, escutar boa música durante o jantar, ler um bom livro para os filhos dormirem. E o que dizer do restante da população, que não realizava diretamente o serviço sujo, podia até mesmo dizer-se pacifista, mas que, mantendo-se fiel ao sistema, era fundamental para a escalada da barbárie? Se a população assistia como os judeus foram perseguidos e deportados, como não imaginava o que poderia acontecer com eles em seu destino? Existiria alguma forma de lutar contra o regime totalitário sem arriscar a vida da própria família? São questões delicadas cujas respostas não são simples.

Aqui no Brasil também não faltam dados vergonhosos de nossa história: último país ocidental a abolir a escravidão, jamais puniu os criminosos de suas ditaduras, como o fizeram Argentina e Chile, por exemplo, e segue sendo um dos países campeões em desigualdade social, violência urbana, feminicídio, assassinato da juventude negra, de ambientalistas, índios e da população LGBT. Poderíamos prolongar essa lista indefinidamente, mas, por hora, importa dizer que temos uma parcela da população que participa ou incentiva essas práticas e, no extremo oposto, pessoas corajosas dispostas a lutar pelos direitos humanos. Em sua maioria, contudo, a população divide-se em um dégradé entre esses polos, abrangendo aqueles que não assumem, mas apoiam a barbárie, aqueles que a toleram, outros que fingem indignação mas, no fundo consideram necessária para se manter alguma ordem, culpabilizando as vítimas; aqueles completamente alienados e seguindo até aqueles que se opõe de forma mais ou menos firme, oscilando ao longo do tempo. Segundo esse raciocínio, importa menos a atuação dos polos do que a atitude do grosso da população, quando tem firmeza ética para se posicionar claramente contra as modalidades do fascismo ou quando é condescendente, aceitando as práticas opressoras silenciosamente quando estas lhes são convenientes.

Assim, é difícil dizer que o fascismo seja uma especificidade de alguns países. Antes, sugerimos que cada país tem sua forma típica de se haver com a sua história de barbárie. No modelo americano, por exemplo, fomenta-se uma narrativa dos momentos gloriosos da nação como forma de esconder os momentos vergonhosos. Exaltar como os EUA contribuíram para derrotar o nazismo é uma verdade que esconde a verdade de que sua estrutura social era – e continua sendo – extremamente racista e segregacionista.

Há também o modelo polonês, segundo o qual é proibido fazer qualquer tipo de alusão da colaboração de poloneses com o nazismo ou da participação de poloneses no massacre de judeus. É simples assim, resolveu-se o problema proibindo que se fale nele.

O modelo israelense é mais polêmico e delicado, talvez seja o mais difícil de se superar, consiste em anular uma tragédia com outra. Assim, quando se fala da tragédia palestina (Nakba) é preciso pôr na mesa a tragédia judaica (Shoá), de modo que a insistência colocaria o interlocutor ao lado dos nazistas. É difícil apontar uma saída nesse caso, mas trata-se de uma curiosidade triste que, nos últimos dois mil anos, os grandes perseguidores do povo judeu tenham sido os cristãos europeus, ao passo que a relação com os árabes muçulmanos foi muito mais fraterna. A rusga entre os povos semitas se intensificou apenas no século passado, muito pouco para povos tão antigos, de modo que não deixa de ser triste que Israel tenha de disputar as eliminatórias da copa do mundo de futebol na chave europeia.

O modelo brasileiro também é bastante complexo. Em seu polo brutal,  conduz ao apagamento, eliminação e culpabilização daquele que difere da norma. Em seu lado cordial, produz a estetização do sofrimento pela crença no “jeitinho brasileiro”. Aqui, a precariedade de serviços essenciais como saúde, educação, moradia e transporte seria superada pela criatividade, malemolência e garra do povo brasileiro “que não desiste nunca” e que, em sua simplicidade, “consegue ser feliz com pouco”.

Esses modelos ensejam diferentes modos de anulação das contradições, onde os críticos são taxados de traidores da pátria. Como contraponto, vale colocar o salutar modelo alemão, segundo o qual as contradições devem ser veiculadas e debatidas constantemente. Dificilmente se pode assistir a um canal de jornalismo alemão sem se deparar com alguma reportagem sobre os momentos mais tristes de sua história, com o declarado motivo de que “é preciso lembrar para que nunca se repita”. Certamente, existem grupos de extrema direita que retomam ideais nazistas, cujo racismo e xenofobia têm se alimentado da crise migratória dos últimos anos. Especialmente no leste do país, na parte oriental, esses grupos tem ganho força e já assustam por seu radicalismo. Há, inclusive, os negacionistas, os quais minimizam as atrocidades do Holocausto, o que, em tese, seria conveniente para a história alemã. Ainda assim, eles não encontram guarida na opinião pública e são prontamente rechaçados. Em 2009, quando o então Papa Bento XVI tencionava retirar a excomunhão de um bispo negacionista, foi duramente criticado pela chanceler Angela Merkel, a qual lhe exigiu explicações. Enfim, esperamos que a grande parte da população alemã se mantenha firme na defesa de ideais necessários para a convivência minimamente harmoniosa entre os cidadãos e que sirva de referência aos demais países, onde a luta pela ética e pela responsabilidade social está tão difícil.

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*Daniel Lirio é psicanalista, analista institucional, mestre em Psicologia Social pela USP; é autor de um livro e diversos artigos sobre psicanálise, cultura e saúde mental, todos disponíveis no site www.daniellirio.com.br

Redação

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