
Universidade Pública não é Empresa: de novo, o Future-se!
por Zara Figueiredo Tripodi
A afirmação sob a qual se constrói o título do ensaio supõe tamanha obviedade que mesmo defensores de novas formas de gestão pública, alicerçadas na concepção do cidadão-cliente, tenderão a relativizar os termos do debate, reconhecendo que as instituições de ensino têm especificidades que as diferenciam de uma empresa privada de outra natureza.
Todavia, se o discurso caminha, por um lado, rumo ao reconhecimento de se considerar, em alguma medida, variáveis específicas da política educacional, por outro, tem-se convivido com certa tendência de adoção de estratégias de empresas na sua gestão.
Nesse sentido, em julho de 2019, o MEC lançou o Programa Universidades e Institutos Empreendedores e Inovadores – Future-se, tendo como principais objetivos a captação de recursos próprios e a gestão das Instituições Federais de Ensino -IFES via Organização Sociais -OS’s.
Em setembro do mesmo ano, levantamento do “Estadão” dava conta de que 54% das Universidades tinham rejeitado, em alguma medida, a proposta de adesão ao Programa. Logo no início de 2020, uma nova versão do Future-se foi publicada como Projeto de Lei – PL pela Casa Civil e submetido à consulta pública.
Pode-se dizer que texto atual avança, em termos formais, em relação ao de julho de 2019, que apenas com muito esforço poderia ser considerado um PL.
Do ponto de vista substantivo, também é possível notar alguns avanços como o reconhecimento da autonomia universitária e a preservação do financiamento educacional, ambos positivados pela Constituição Federal, no que tange às IFES.
Já do ponto de vista ideológico, a proposta parece repousar sob o mesmo pressuposto inicial: haveria certa desconfiança em torno das instituições públicas e de seus agentes na capacidade de produzir valores públicos e gestão eficiente, o que seria apenas equacionado com a introdução de uma lógica privada, de empresa.
Para tanto, a contratualização de resultados entre Estado e algumas instituições do terceiro setor, como OS’s, parece ter se tornado a panaceia para a educação básica e superior, cujas propostas vão desde a gestão, como o caso do Future-se, à oferta da educação, como vem se esboçando em alguns estados brasileiros.
Os pressupostos teóricos que sustentam tais iniciativas encontram-se, sobretudo, no campo da economia, como a Theory of the Firm, de Jensen & Meckling (1976), e têm sido com frequência mobilizados para lidar com possíveis problemas de ineficiência no campo da educação.
Resumidamente, a Teoria da Agência trata do relacionamento, definido como o contrato, entre um “Principal” e um “Agente” para a execução de determinado serviço.
Para os autores, sendo o indivíduo autointeressado, ambas as partes do relacionamento tenderiam a maximizar seus interesses próprios, e, portanto, o Agente negligenciaria aqueles relativos ao Principal.
Assim sendo, se procuraria limitar as divergências relativas ao interesse “desproporcional” do Agente, por meio de criação de incentivos considerados apropriados, e expressos em um contrato ótimo que alinhasse as preferências do Agente às do Principal, reduzindo comportamentos oportunistas.
No caso do atual desenho do Future-se, o relacionamento da agência materializa-se em duas rodadas de contratualização: a primeira entre o MEC e as IFES, na qual metas seriam pactuadas em um contrato de resultados e a segunda se daria entre IFES e OS’s, com a utilização de contratos de gestão, para gerenciar atividades relacionadas aos 03 eixos do Programa.
Supostamente, os contratos de gestão efetivados com as OS’s permitiriam que as IFES alcançassem as metas pactuadas com o MEC nos contratos de resultados.
Pensada em termos de Teoria da Agência, a proposta de contratualização de resultados, no âmbito do Future-se, sugere, a rigor, a existência de interesses conflitantes entre um Principal (Ministério da Educação) e um Agente (IFES). Daí a suposta necessidade de se criar uma estrutura de incentivos com premiação, em caso de cumprimento de metas, de modo a inibir o comportamento oportunista do Agente, alinhando-o aos interesses do Principal.
Contudo, cabe perguntar qual seria o interesse conflitante entre MEC e Universidades Públicas, no caso do Future-se? Se ambos os atores sociais (Principal e Agente) estão circunscritos ao mesmo Estado, sendo o Agente, inclusive, aquele que o serve, portanto, um servidor público, o que o torna um agente oportunista? Já no caso de contratos de gestão entre IFES e OS’s, que conjunto de razões levaria Organizações Sociais a serem mais eficientes que servidores públicos na gestão da pesquisa, empreendedorismo e internacionalização, incluindo contratação de pesquisadores, senão certa antipatia ideológica ao Estado?
Nesse sentido, é curioso observar que grande parte das propostas apresentadas pelo PL do Future-se já vem sendo desenvolvida pelas universidades públicas: empresa júnior, fundações de apoio, programa de internacionalização e de acreditação já são objeto dos Planos de Desenvolvimento Institucional (PDIs). Isso sem contar com o Plano Nacional de Educação, aprovado pela Lei n˚ 13.005/2014, cujas metas e estratégias foram pensadas para uma década, como dispõe o art. 214, da CF.
Um segundo aspecto que precisa ser melhor observado na perspectiva da Teoria da Agência é a estrutura de incentivos, em si. Tal estratégia está posta no PL do Future-se no art. 6˚, § 2˚, que trata do Contrato de Resultados a ser firmado entre União e IFES, intermediado pelo MEC.
De acordo com o Documento, estão entre os “prêmios” a serem concedidos às Instituições que alcançarem as metas pactuadas: recebimento de recursos provenientes do Fundo de Investimento do Conhecimento a ser criado, recursos orçamentários adicionais consignados pelo MEC, mas também concessão preferencial de Bolsas da CAPES aos participantes do Future-se.
Ora, a lógica de premiação instituída no PL tem uma relação perversa com aquelas IFES que, porventura, não aderirem à Contratualização e, por tabela, com seus alunos. Nesse sentido, a estrutura da agência aplicada no âmbito do Estado, ao que tudo indica, tende a levar a uma “externalidade negativa”, expressa no aumento das desigualdades em termos de qualidade da educação ofertada.
De um lado, aderindo ao Programa, IFES mais maduras e com pesquisas mais consolidadas, tenderão a aumentar e melhorar sua capacidade, por meio de mais recursos, bem como maior aporte de bolsas aos Programas de Pós-Graduação, na medida em que se atingirem as metas do contrato de resultados.
De outro, instituições que vêm se destacando em dimensões como ensino e extensão, com bons índices de inserção social nos respectivos territórios, poderão não apresentar as condições para avançar em pesquisas, por conviver com uma lógica que privilegia, exatamente, aqueles que já a realizam.
Neste caso, o centro do conflito decorrente do comportamento oportunista, especialmente se examinado à luz do direito constitucional à educação com padrão de qualidade, não parece vir do comportamento do Agente, mas, neste caso, do Principal, ou seja, do MEC.
E, por fim, em caso de recursos adicionais, não se deveria, minimamente, reequilibrar o orçamento das IFES cujos cortes foram significativos, ao invés de direcioná-los às instituições que aderirem ao Programa e atingirem as metas definidas?
A manutenção desta proposta, somada à ausência de uma política redistributiva, neste âmbito, só tende a aumentar desigualdades em um sistema que nasceu e permanece desigual, também em termos de qualidade de educação ofertada; legitimado, nesse caso, por um Estado que acolhe e aceita a convivência de diferentes padrões de qualidade de ensino e pesquisa dentro do seu sistema federal de ensino.
Zara Figueiredo Tripodi – Professora do Departamento de Educação da UFOP. Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Educação

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