Jorge Alexandre Neves
Jorge Alexandre Barbosa Neves professor Titular de Sociologia da UFMG, Ph.D. pela Universidade de Wisconsin-Madison, nos EUA. Professor Visitante da Universidade do Texas-Austin, também nos EUA, e da Universidad del Norte, na Colômbia.
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Universidade Pública: os dois lados da moeda, por Jorge Alexandre Neves

O presidente da República se expôs ao ridículo de dizer em uma entrevista que quem produz ciência e tecnologia no Brasil são as universidades privadas

Foto Luciana Quieratti / UOL

Universidade Pública: os dois lados da moeda

por Jorge Alexandre Barbosa Neves

Talvez as universidades públicas brasileiras jamais tenham ficado tão em evidência na mídia como nos últimos dias. O ataque do governo Bolsonaro (incluindo o próprio presidente) – com destaque para o inacreditável (no pior sentido possível) ministro da Educação, o Sr. Abraham Weintraub – às universidades públicas levou as comunidades universitárias a partirem para uma estratégia bastante adequada de demonstração dos méritos da universidade pública brasileira. Em oposição, os detratores do sistema público de ensino superior brasileiro passaram a circular informações e imagens – algumas verdadeiras e outras falsas – para desqualificá-lo.

O sistema federal de ensino superior merece respeito, sim. Os investimentos intensivos feitos a partir da década passada trouxeram importantes retornos, que só não estão sendo mais impactantes porque, desde 2015, entramos em um túnel de políticas econômicas pró-cíclicas que está estrangulando a demanda e o emprego (1). Inclusive, um ponto que é muito criticado nos investimentos em educação superior iniciados com o governo Lula, a interiorização das universidades e institutos federais tem um claro impacto positivo (2).

O presidente da República se expôs ao ridículo de dizer em uma entrevista que quem produz ciência e tecnologia no Brasil são as universidades privadas (3). O mesmo foi feito pelo ministro da Casa Civil. A verdade é que os investimentos nas universidades públicas brasileiras a partir da década passada tiveram os retornos esperados. Houve uma enorme expansão do número de vagas para alunos de graduação e pós-graduação (embora eu acredite que esse aumento poderia ter sido ainda maior, em vista dos vultosos investimentos feitos). A produção científica cresceu de forma exponencial (4). E, pela primeira vez em nossa história acadêmica, o número de depósitos de patentes começou a crescer significativamente, apresentando também um perfil de crescimento exponencial (5).

A verdade é que o Brasil acumulou, na última década, um significativo estoque de conhecimento científico pronto para ter um impacto tecnológico significativo. Seria o momento de elevar os investimentos e intensificar as iniciativas como a da criação da Empresa Brasileira de Pesquisa e Inovação Industrial (EMBRAPII), fundada no primeiro governo Dilma, buscando ligar a produção científica e tecnológica das universidades públicas ao setor produtivo, reduzindo os custos de transação e os riscos envolvidos na inovação. O que faz o governo atual? Tenta desqualificar e enfraquecer as instituições que teriam potencial para gerar um salto tecnológico jamais visto no Brasil, as universidades públicas.

Após o Brasil ter esgotado quase que completamente seu processo de Industrialização por Substituição de Importações (ISI), entramos numa fase de crescente desindustrialização, baixo crescimento do PIB per capita (com alguns períodos de exceção, principalmente entre 2003 e 2014) e estagnação da produtividade. Acredito que uma reindustrialização do Brasil só será possível a partir do avanço tecnológico que poderá nos levar a competir dentro do padrão da chamada “Indústria 4.0”, que permitirá a elevação da produtividade e um crescimento econômico, pelo menos em parte, baseado na exportação de bens e serviços com alto valor agregado. Isso é impossível sem a valorização das universidades públicas brasileiras. Portanto, o governo Bolsonaro tem ido na contramão do que precisamos para alcançar um desenvolvimento socioeconômico sustentável no longo prazo.

Dito tudo isso, temos que reconhecer que precisamos enfrentar alguns problemas com os quais temos convivido em algumas universidades públicas. Os detratores têm tentado nos desqualificar com a divulgação de algumas informações que mostrariam o uso indevido do dinheiro público. Como disse acima, algumas são verdadeiras e outras falsas. Entre as verdadeiras, algumas estão relacionadas à falta de compreensão de muitas pessoas sobre a necessidade da autonomia e da liberdade criativa dentro dos campi universitários. Por exemplo, divulgam imagens de pessoas despidas (algumas falsas e outras verdadeiras). Isso é algo que ocorre em qualquer grande universidade do mundo (6). Em particular nas escolas de belas artes das universidades, é absolutamente corriqueira a presença da nudez. Uma universidade multidisciplinar que pretenda ser criativa e inovadora tecnologicamente irá conviver com a liberdade de expressão. Faz parte! O mesmo vale para alguns trabalhos escatológicos produzidos por pesquisadores das humanidades. Muitos dos grandes problemas do mundo no qual vivemos – inclusive decorrentes do desenvolvimento tecnológico e do crescimento econômico que tanto desejamos – são mais bem enfrentados com as reflexões e resultados de pesquisas das humanidades. Alguns poucos trabalhos escatológicos no meio de um mar de reflexões e pesquisas empíricas são encontrados nos melhores sistemas universitários do mundo, inclusive no americano, que é o mais produtivo de todos. Portanto, é mais um caso em que podemos dizer: faz parte!

Todavia, há o outro lado da moeda que não vou me esquivar de encarar, pois sempre o fiz durante minha carreira acadêmica. A universidade pública está sendo alvo de um novo ataque do sistema de justiça (7). Dessa vez, contudo, demos munição para nossos detratores. É possível que, mais uma vez, estejamos sendo vítimas de ações arbitrárias, mas, pelo menos com base em minha experiência pessoal, preciso reconhecer que o ataque não é totalmente descabido.

Na universidade onde trabalho (8), houve nesta semana última uma ação policial para cumprimento de um mandado judicial de busca e apreensão de drogas em dois prédios da instituição. Em 2015, tivemos outra situação complicada do mesmo tipo, daquela vez, porém, resultante de uma reportagem dura de um jornal. Se não queremos a presença de forças repressivas dentro de nossos campi universitários, precisamos chamar para nós a responsabilidade de enfrentar o problema do tráfico ostensivo de drogas em prédios das nossas universidades públicas (não sei em quantas universidades isso ocorre e, baseado em minha experiência, é algo menor do que muitos querem fazer parecer). Particularmente, sou a favor da regulamentação da produção, comercialização e consumo de drogas. Todavia, do mesmo jeito que não vejo a universidade como um local adequado para as pessoas ficarem vendendo e consumindo álcool de forma regular, aplico o mesmo tipo de lógica para o caso das drogas não legalizadas. Adicionalmente, acredito que o tráfico de drogas em campi de universidades públicas é um ato patrimonialista. Assistimos indivíduos obtendo enormes taxas de lucros com suas vendas dentro de uma instituição pública. Uma total privatização do patrimônio público. Talvez Milton Friedman, um dos papas do que veio a se tornar o neoliberalismo, adorasse assistir essa demonstração de dinamismo da iniciativa privada. Eu prefiro que ela esteja fora dos nossos campi!

 

P.S.: Escrevo esta coluna antes das manifestações do dia 26 de maio a favor do presidente Bolsonaro. Acho que muitos analistas estão querendo fugir da realidade ao dizer que, mesmo sendo um grande sucesso, essas manifestações serão ruins para o presidente. O que pensam do presidente Bolsonaro e do que ele quer? Olhemos a história e veremos o que sempre pretendem líderes com valores autoritários quando incentivam mobilizações populares. O caso da Hungria de Orbán é particularmente útil para refletirmos sobre a plausibilidade do caminho autocrático.

  1. É espantoso que economistas neoliberais venham afirmar que um grande entrave para a retomada do crescimento no Brasil hoje seja um déficit de capital humano, como fez Monica de Bolle, recentemente (https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2019/05/brasil-oscila-entre-a-estagnacao-e-a-depressao-avaliam-economistas.shtml). Claro que o Brasil precisa retomar seus investimentos em educação. Contudo, há hoje, no país, um enorme estoque de capital humano ocioso, que tem crescido devido à inércia dos investimentos feitos até 2014.
  2. Esta semana, passei mais um período de trabalho na Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri, em Diamantina. Cada vez que vou participar de atividades acadêmicas lá, fico mais impressionado com o impacto positivo dessa jovem universidade sobre as regiões mais pobres do estado de Minas Gerais. A interiorização do ensino superior público foi pensado e executado por quem, realmente, pensa que o Brasil pode ser grande.
  3. Tanto no que diz respeito à produção científica (http://www.abc.org.br/2019/04/15/universidades-publicas-respondem-por-mais-de-95-da-producao-cientifica-do-brasil/) quanto tecnológica (https://ufmg.br/comunicacao/noticias/ufmg-lidera-ranking-de-patentes-no-brasil e https://www.prg.unicamp.br/index.php/noticias/449-unicamp-lidera-ranking-de-maiores-depositantes-de-patente-nacionais), são as universidades públicas que lideram os indicadores, com uma distância abissal das instituições privadas.
  4. É verdade que ainda ficamos devendo no que diz respeito ao impacto científico de nossas publicações. Todavia, é muito provável que esse indicador passasse a responder positivamente ao enorme aumento da massa crítica, bem como pode ser significativamente melhorado com incentivos corretos, como bem argumentou Jacques Wainer (http://www.ic.unicamp.br/~reltech/2012/12-23.pdf).
  5. Ver o trabalho de Pereira, Costa e Mello (https://www.researchgate.net/figure/FIGURA-3-Evolucao-dos-Depositos-de-Patentes-de-Universidades-Brasileiras-Fonte_fig1_306078588).
  6. Segundo algumas testemunhas com quem conversei, no XIII Congresso Mundial de Sociologia ocorrido na Universidade de Bielefeld, na Alemanha, em 1994, um homem subiu no palco onde um sociólogo (se não me engano era um francês) fazia a conferência de abertura, se despiu e começou a fazer exercícios de exibição dos seus músculos. A conferência seguiu normalmente, naquela prestigiosa universidade da supostamente sisuda Alemanha.
  7. O primeiro se deu a partir do MPF e do judiciário federal, com acusações absolutamente descabidas ou exageradas, com uma postura totalmente arbitrária. Denunciei esse ataque, em 2017 (https://www.hojeemdia.com.br/opini%C3%A3o/colunas/jorge-alexandre-1.457816/o-ataque-%C3%A0-universidade-p%C3%BAblica-1.581943).
  8. Que é uma das melhores universidades da América Latina, e uma das líderes nacionais em produção científica e tecnológica (anualmente, está sempre entre as três com maior número de patentes registradas, tendo sido a primeira colocada em 2016).
Jorge Alexandre Neves

Jorge Alexandre Barbosa Neves professor Titular de Sociologia da UFMG, Ph.D. pela Universidade de Wisconsin-Madison, nos EUA. Professor Visitante da Universidade do Texas-Austin, também nos EUA, e da Universidad del Norte, na Colômbia.

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