Miragens e milagres asiáticos, por Luiz Gonzaga Belluzzo

Do Valor

Ásia, miragens e milagres

Luiz Gonzaga Belluzzo

Publicado na “Folha de São Paulo”, na edição de domingo (2 de agosto de 2015), o artigo de Samuel Pessoa sobre a experiência asiática suscitou minhas dúvidas e discordâncias. 
 
Volto a 1993, ano da publicação pelo Banco Mundial do estudo “The East Asia Miracle”. Ao investigar o desempenho das economias asiáticas os economistas do banco escreveram: 
 
“Nós sustentamos (neste estudo) que as Economias de Alto Crescimento da Ásia criaram condições e desafios que combinam a concorrência com os benefícios da cooperação entre as empresas e entre o governo e o setor privado. Tais condições vão desde simples normas de alocação de recursos não baseadas no mercado, como é o caso do acesso facilitado ao crédito para os exportadores, até a complexa coordenação do investimento privado, no Japão e na Coreia, executada pelos conselhos formados por empresários e representantes do governo. A característica central de tais ‘concursos’ é que o governo distribui prêmios -­ acesso ao crédito ou a divisas -­ sob critérios de avaliação de desempenho”. 

 
O êxito do Japão e dos tigres asiáticos, como Coreia e Taiwan, não pode ser explicado apenas pelas “virtudes econômicas” dos seus modelos. A geopolítica intrometeu-­se. A revolução chinesa de 1949 e a guerra da Coreia, travada entre 1950 e 1953, foram cruciais: ocupado pelas forças do general Douglas MacArthur e ameaçado de “pasteurização”, o Japão foi estrategicamente desobrigado de desmontar práticas e instituições que marcaram o desenvolvimento de sua economia, desde a revolução Meiji, na segunda metade do século XIX. 
 
Os Estados Unidos aceitaram os modos asiáticos de impulsionar o crescimento. Modos que contemplavam políticas industriais “protecionistas” e de fortes incentivos às exportações. A tolerância americana foi ampla e irrestrita. Incluía não só a abertura do seu mercado para a invasão dos produtos japoneses ­- mais tarde coreanos e taiwaneses -­ como também admitia o regime autoritário de Park Chung Hee na Coreia. 
 
A investigação sobre o desenvolvimento dos países asiáticos deu origem a uma volumosa bibliografia cuja estante não pode, nem deve, ser adornada pela etiqueta da oposição Estado x Mercado. Essa etiqueta binária oculta a complexidade das realidades asiáticas. Não pretendo pontificar a respeito de tais realidades, como o fazem os físicos e engenheiros da sociedade. Mas arrisco algumas sugestões. Julgo dignas de consideração: 
 
1­) a natureza e relevância da intervenção do Estado, particularmente das políticas industriais e de direcionamento do crédito; 
 
2) a importância dos acordos implícitos e das relações de “cooperação” e “reciprocidade” entre os agentes relevantes; 
 
3) a subordinação das políticas macroeconômicas ao arranjo autoritárioburocrático comprometido com a incorporação de novos setores “competitivos” à estrutura produtiva; 
 
4) ajustamento da matriz educacional às exigências do crescimento acelerado e do avanço tecnológico; 
 
5)­ a forma da inserção internacional. 
 
Nesta “organização capitalista” prevaleciam os nexos “cooperativos” e de reciprocidade nas relações Estado­-empresas, nas negociações entre os grandes conglomerados e seus fornecedores, na íntima articulação entre os bancos (em sua maioria estatais em Taiwan e na Coreia) e a grande empresa, no provimento de mão de obra capacitada e, finalmente, na “administração estratégica” do comércio exterior e do investimento estrangeiro. 
 
O economista Ajit Singh, em seus trabalhos sobre o desenvolvimento da Ásia, não hesitou em escolher, como fator crucial do sucesso do “catching up”, a capacidade revelada pelas economias asiáticas de transformar continuamente investimentos em lucros (poupança das empresas) e os lucros em investimento, o investimento em ganhos de produtividade durante um longo período, sem que se insinuassem indícios mais sérios de fragilidade financeira. A isto o economista japonês Michio Morishima chamou da “combinação ótima” entre o máximo de competitividade e o máximo de cooperação e planejamento. 
 
A China replicou à sua moda as experiências do Japão, da Coreia, de Taiwan e de Cingapura e iniciou sua escalada nos mercados mundiais tornando­-se a maior exportadora de manufaturas do planeta, desde o “low end” dos têxteis, vestuário e brinquedos até o “high end” da eletrônica de consumo, microprocessadores, bens de capital, robótica e outros componentes de informática e microeletrônica. 
 
É impróprio, para não dizer empobrecedor, apontar o dedo para causas singulares do desempenho das economias asiáticas: a “educação”, “a taxa de poupança” ou a “estabilidade macroeconômica”. No caso da Coreia, por exemplo, a taxa média de inflação na década de 60 foi de 17,4% ao ano, subindo para 19,8% nos anos 70. (Essa é uma constatação histórica e não uma defesa de regimes inflacionários). É vasta a literatura a respeito das políticas de estabilização dos países asiáticos, sempre administradas com múltiplos instrumentos e com o cuidado de não ferir a taxa de investimento e a competitividade das exportações. 
 
A propósito da “estabilidade macroeconômica”: até a eclosão da crise no segundo semestre de 1997, a resistência das economias asiáticas aos choques externos deve ser atribuída, em grande parte, à “repressão” financeira e aos controles estritos exercidos sobre os mercados cambiais. As operações cambiais estavam praticamente restritas à compra e venda de divisas para saldar obrigações nascidas da balança de transações correntes. Os governos exerciam controles rigorosos sobre a conta de capitais. 
 
O estudo do Banco Mundial foi escrito na “fase de aquecimento” do ciclo de expansão comandado por uma imprudente “liberalização financeira” que culminou na crise cambial e monetária do final de 1997. Tailândia, Coreia, Malásia juntaram a imprudência financeira ao vigor da acumulação de capital e de incorporação do progresso técnico para aumentar a sua participação nos mercados mais dinâmicos e “competitivos” da economia mundial. Neste período, a estagnação japonesa já exibia as consequências da “descompressão” financeira que levou ao colapso dos preços dos imóveis e da bolsa de Tóquio no início dos 90. Não demorou o estouro da outra bolha asiática insuflada por crédito externo. 
 
Luiz Gonzaga Belluzzo, ex­-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda, é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp e escreve mensalmente às terças-­feiras. Em 2001, foi incluído entre os 100 maiores economistas heterodoxos do século XX no Biographical Dictionary of Dissenting Economists. 
Redação

12 Comentários

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  1. Se fosse no Brasil a Lava a Jato já estava em cima.

    Vejam, fica claro que o setor público “serve” ao setor privado de forma mais intensa que no Brasil, se isto ocorresse no Brasil já seria denunciado pelos “brilhantes e espertos” procuradores do MPF, que acham que o Brasil deve se ajustar a procedimentos que dizem haver nos países ocidentais (que na realidade não o é).

    Cochinhas, além de serem cochinhas são BURROS ou malintencionados 

    1. Lá não tem o nacional-estatismo

      O modelo lá não é o nacional-estatismo, mas grandes conglomerados de empresas privadas (Samsung, Hyundai, LG, etc.) Cada conglomerado inclui seu próprio banco. Não é como o nosso nacional-estatismo que tem um banco estatal (BNDES) despejando dinheiro barato ao séquito de empresários amigos-do-rei, ou uma empresa estatal contratando empresários amigos em licitações viciadas. É claro que esse modelo cria um conluio entre empresários e o Estado, e dá origem a uma imensa corrupção, bem mais do que no modelo asiático. É por isso que lá não tem lava-jato.

  2. Continuando a discussão…

    A discussão levantada pelo professor Belluzzo pode ser continuada com a leitura de “O estado empreendedor: desmascarando o mito do setor publico vs. o setor privado”, da economista italiana Mariana Mazzucato (Portfólio Penguin, 2014).

    Nesse livro há uma grande análise sobre o desenvolvimento das economias de países asiáticos, como Japão e China.

    Um exemplo, ao meu ver, de simplificação de processos complexos está no artigo “Como o Brasil afasta-se da inovação energética”, de Ricardo Abramovay, pubicado no site Outras Palavras. Aqui está o link: 

    http://outraspalavras.net/brasil/como-o-brasil-afasta-se-da-inovacao-energetica/

    Nesse artigo, educação explica tudo… E o autor nem se pergunta o que explica a nossa educação…

    Os livros de José Luis Fiori também tratam as questões levantadas por Belluzzo de modo mais complexo, geopolítica e economia juntos…

    A complexidade não está nas coisas, mas no olhar…

     

  3. Milagre da cooperação.

    Em alguns países asiáticos, não todos evidentimente, existem projetos de nação. Cooperação entre sociedade civil e governos para atingir um objetivo comum. Não é o caso do Brasil e da América Latina. Aqui o que interessa são projetos de poder, e só.

    1. Nosso problema foi o excesso de projetos de nação

      Tivemos projetos de nação em excesso, com muito cacique para pouco índio. O Estado acabou sentando em cima do setor privado, sufocando-o.

      Na Ásia, por mais que o Estado interfira na economia, o núcleo econômico é formado por grandes conglomerados privados – Hyundai, LG, Samsung, Mitsubichi, Panasonic, etc. Não tem essa de empresa estatal distribuindo o nosso dinheiro para os empresários amiguinhos.

  4. O Japão há 12 anos atrás tentou eliminar o dinheiro físico
    Tentaram acabar com o uso físico do dinheiro, pais ocupado não têm vontade própria, recebe uns pixulés e cala a boca.

    O povo ficou tão revoltado que não usam pagamento eletrônico para nada.

    A banca tenta de novo agora, mas no desespero, pois as moedas eletrônicas estão desafiando o seu monopólio do dinheiro.

    A Ásia está nas mãos das finanças internacionais.

    1. Então está em boas mãos

      Se a Ásia está nas mãos das finanças internacionais, então está em boas mãos, pois estão cheios de dinheiro. O Japão é um dos países mais ricos do mundo. Eu bem que queria estar nas mãos das finanças internacionais, ao invés de estar nas mãos dos larápios nacionais.

      1. Esta é A discussão

        Mas depende do acordo e o que o garante. As finanças internacionais estão assanhadas como nunca se viu antes, logo existe espaço para novas tratativas.

        Como sempre digo, o diálogo faz parte da solução dos problemas.

  5. Negando o óbvio

    Realmente, o sucesso dos países asiáticos é um pesadelo infindável para os teóricos da economia tupiniquim. Esses países desgraçados vem tendo sucesso há décadas fazendo exatamente o contrário do que nossos economistas sempre pregaram! Desde então, uma quantidade enorme de tinta e teclado tem sido gasta para “provar” que eles estão errados.

    É claro que se entrarmos em detalhes, mil digressões podem ser feitas. Mas uma coisa não dá para negar: lá na Ásia, por mais que o Estado interfira, o núcleo da economia é composto por grandes conglomerados privados, cada um com seu próprio banco – Hyundai, LG, Samsung, Mitsubichi, Panasonic, e a lista não acaba mais. Não tem nada disso de empresa estatal distribuindo dinheiro do povo aos empresários amiguinhos, pagando por um navio com soldas defeituosas o dobro do preço que é cobrado por um navio coreano com soldas perfeitas. Não dá para explicar tudo com poucas palavras sem entrar em digressões, mas é evidente que a educação, a taxa de poupança e a estabilidade macroeconômica são o sustentáculo desse modelo – justamente o pau da barraca que o autor do artigo tentou chutar, e não sem motivo, pois educação, poupança e estabilidade macroeconômica são coisas que nós, brasileiros, abominamos. Gostamos mesmo é de inflação, pois assim dá para meter a mão no bolso do povo sem criar um novo imposto – por que outro motivo o autor do artigo foi desencavar os índices de inflação da Coréia nos anos 60 e 70? Faltou lembrar que nos anos 60 e 70 a Coréia ainda estava bem atrás – quem cresceu muito nessa época fomos nós – e só foi disparar mesmo nos anos 80, quando enfim se convenceu, entre outras coisas, de que inflação era ruim.

    A História está cheia de exemplos de grupos renitentes que agiram como bancadas do atraso, perderam o bonde e mostraram-se incapazes de enxergar as mudanças que aconteciam bem debaixo de seus narizes, como a nobreza rural francesa do século 18, os junkers prussianos do século 19 e agora, os adeptos do nacional-desenvolvimentismo na América Latina. Há 40 anos atrás, nós éramos a região emergente do mundo, e os asiáticos bem mais pobres do que nós. Hoje, eles nos fazem comer poeira enquanto a América Latina vai aos poucos encostando na África como a região mais pobre do globo. Ao invés de imitar as fórmulas de sucesso, nossos “especialistas” gastam o intelecto construindo teses fuleiras para negar o óbvio. Parados na estação, ficamos vendo o trem da História lá longe, avançando sem nós…

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