A pandemia causará uma ruptura na arte moderna?

Aqui mesmo no GGN fiz algumas observações sobre a ruptura que a pandemia já está causando na esfera política e econômica https://jornalggn.com.br/artigos/hobsbawm-a-pandemia-e-o-fim-de-uma-era/. Volto ao assunto para falar um pouco sobre os possíveis efeitos dela na arte.

Durante toda a Idade Média e mesmo após seu final a morte ocupou um papel central na vida cotidiana e na arte. O desprezo pela vida, quase sempre incerta e muito curta, era considerado indispensável. Qualquer coisa que pudesse fazer o homem apreciar sua existência (riqueza, poder, sexo, prazer, etc) era objeto de desconfiança e de rejeição. A morte e a mortificação decorrente da obsessão por ela, entretanto, eram franqueadas ao homem. O homem medieval vivia para contemplar seu fim inexorável.

“O espírito do homem medieval que renuncia ao mundo sempre apreciou demorar-se junto ao pó e aos vermes: nos tratados religiosos sobre o desprezo do mundo, todos os horrores da decomposição já tinham sido evocados. Mas a elaboração dos detalhes só vem mais tarde. Só por volta do final do século XIV as artes plásticas se apropriariam desse motivo; um certo grau de habilidade na expressão realista era necessário para dar a forma apropriada à escultura ou à pintura, e essa capacidade foi atingida por volta de 1400. Ao mesmo tempo, o motivo da literatura religiosa espalha-se para a literatura popular. Até muito tarde no século XVI as lápides serão ornadas com imagens repugnantes de cadáveres nus e apodrecendo, com as mãos e pés crispados, com os vermes retorcendo nas estranhas. O pensamento se demora frente a esse espetáculo horroroso. Não é estranho que eles não ousem dar um passo adiante para ver como também esse apodrecimento outra vez se desfaz, transformando-se em terra e flores?” (O outono da Idade Média, Johan Huizinga, Cosacnaify, São Paulo, 2010, p. 223 e 226)

Segundo o historiador Philippe Ariès, a morte deixou de ocupar um lugar muito proeminente na sociedade industrial moderna.

“Até o começo do século XX, a função atribuída à morte e a atitude diante da morte, eram praticamente as mesmas em toda a extensão da civilização ocidental. Esta unidade foi rompida após a Primeira Guerra Mundial. As atitudes tradicionais foram abandonadas pelos Estados Unidos e pelo noroeste da Europa industrial, sendo substituídas por um novo modelo do qual a morte foi como que expulsa. Em contrapartida, os países predominantemente rurais, que, aliás, eram muitas vezes católicos, permaneceram-lhes fiéis. Há uma década, vemos o novo modelo estender-se à França, a começar pela classe intelectual e a burguesia; está em vias de ganhar as classes médias, apesar das resistências vindas das classes populares.” (História da Morte no Ocidente, Philippe Ariès, Saraiva de Bolso, Rio de Janeiro, 2012, p. 270)

A sociedade industrial fez justamente aquilo que era impensável durante a Idade Média. Ela deu “…um passo adiante para ver como também esse apodrecimento outra vez se desfaz, transformando-se em terra e flores” (Huizinga).

Uma síntese perfeita dessa passagem pode ser vista na cena final do filme “A vida de Brian” (1979). Os soldados romanos soltam vários de seus prisioneiros e fogem quando são atacados por um exército de judeus suicidas. Vitoriosos, os judeus cometem suicídio ao invés de reconquistar a Judeia. Brian lamenta seu destino (ele não foi libertado), mas é consolado por um ladrão que também não foi solto. O refrão da música que o ladrão crucificado canta é “E sempre veja o lado bom da vida” https://www.youtube.com/watch?v=FBeeXepAS_Y.

Nossas consciências foram modeladas por uma era em que a vida e o prazer de desfrutá-la ocupam o centro das preocupações pessoais e estéticas. Tudo aquilo que era interditado ao homem medieval passou a ser valorizado no mundo moderno (e se tornou objeto de culto obsceno na era neoliberal). E até mesmo a morte de Jesus na cruz pode ser transformado numa celebração do lado bom da vida.

Consumismo desenfreado, acúmulo e ostentação de riqueza, sexo vulgarizado, prazer liberado, poder valorizado etc. Nada mais é interditado ao homem e a religião (digo isso pensando especificamente nos evangélicos) passou a cultuar o sucesso material transmutando-o numa dimensão espiritual. Somente a morte nos foi interditada. Ela foi expulsa do cotidiano e da arte obrigando os artistas (ou a maioria deles, pelo menos) a celebrar a beleza de uma existência farta, tranquila e prazerosa. “E sempre veja o lado bom da vida”. O refrão da música final do filme “A vida de Brian”, foi transformado num mantra estético da modernidade.

Quando muito, a morte é encarada com desdém e comicidade. Ao ver os filmes da série John Wick, em que o protagonista mata centenas de adversários usando todos os tipos de armas de fogo e de outros objetos, a platéia não fica apreensiva em razão da violência. Muito pelo contrário, ela fica excitada querendo ver de que maneira o personagem matará sua próxima vítima. A platéia delira quando John Wick mata um adversário usando um livro ou uma caneta.

Aqueles que apreciam games certamente estão acostumadas a matar representações virtuais de seres humanos e monstros. A morte deles não tem qualquer significado profundo. Nesse caso, porém, o que desliga as pessoas dos aspectos mais desagradáveis da morte pode despertar em algumas delas o prazer pela verdadeira carnificina. Centenas de milhões de pessoas ficaram horrorizadas ao ver seres humanos sendo despedaçados por tiros de metralhadora no vídeo Collateral Murders https://www.youtube.com/watch?v=5dgKAxPbJ0w&has_verified=1&bpctr=1586338950. Mas para o piloto que efetuou os disparos aquelas pessoas que estavam há alguns quilômetros de distância eram apenas bonequinhos numa tela de computador. Não por acaso as Forças Armadas dos EUA usam videogames para recrutar candidatos a oficiais e soldados.

O COVID-19 transformou a irrealidade da morte numa presença onipresente, onisciente, onipotente e opressiva. A festa neoliberal terminou https://jornalggn.com.br/blog/fabio-de-oliveira-ribeiro/historia-da-morte-no-ocidente/. A celebração da vida não é mais possível. Não existe um lado bom da vida quando podemos ver as pessoas cair mortas nas ruas do Equador, quando elas morrem abandonadas em suas casas na Espanha ou na Itália, quando o governo dos EUA avisa ao “respeitável público” que abrirá covas coletivas nos parques para enterrar as vítimas da pandemia. Milhares de pessoas já morreram. Muitas mais irão morrer antes que a pandemia seja derrotada.

A morte sorrateira que espreita em cada superfície que tocamos. E que penetra em nossos pulmões quando respiramos gotículas microscópicas lançadas no ar por uma pessoa doente que tosse ou espirra perto de nós. A morte que sufoca e leva os pacientes impedidos de respirar. E que não poupa os médicos e enfermeiros. A morte que ocupa quase todo o noticiário. E que nos impede de celebrar a vida como estávamos acostumados.

Perda e dor, medo e incerteza… Tudo isso certamente vai se refletir na arte. O COVID-19 é o coveiro de uma era. O arauto do retorno triunfal de Augusto dos Anjos:

“Essa obsessão cromática me abate.
Não sei por que me vêm sempre à lembrança
O estômago esfaqueado de uma criança
E um pedaço de víscera escarlate.”
https://www.pensador.com/frase/NDY3NjE/

Trancados em suas casas em razão da quarentena músicos, escritores, pintores, escultores, dramaturgos, poetas, atores, cineastas, etc também estão experimentando o sabor amargo do início de uma nova era na história da arte. Eles serão profundamente marcados pela pandemia.

Os artistas têm a sensibilidade mais aguçada e treinada. Portanto, devemos supor que eles sofrerão muito e ficarão com cicatrizes profundas. Em breve eles começarão a regurgitar suas experiências de maneira criativa. A morte será inevitavelmente a principal temática das obras de artes. A maneira de encará-la também sofrerá algumas mudanças significativas.

Fábio de Oliveira Ribeiro

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