12 poesias de RR.
todos partirem
1.
quando todos partirem
eu vou ficar sem muros
e o silêncio dos cachorros
vai desabar sobre mim
penso nas ladainhas a rezar
nos bancos que serão meus assentos
e na ausência das aves
as pedras do meu olho
vão cair nos rios
e a minha mão
vai moer as cordas do tempo
pela noite
minhas facas saberão das noites a cortar
dos bichos a saber
e do meu corpo desfraldado
as carnes não deixarão rastros
e o ferro das ruínas
não caberá no poema.
2.
quando o mundo acabar
vou mutilar meus braços
meu hálito, meu desacerto.
quando o mundo acabar
vou desatar a glória
dos deuses correntes:
todos os diabos vão ficar nos cantos
das vias destratadas
os sóis serão banidos
e o começo de tudo estará pronto
(cozido, costurado, morto)
no adro do tempo
nem o meu coração tremido
vai bater.
vila, 1
esta vila é uma verdade
plena de matos e pedras
rica de ouros e águas
espraiados pelos corpos
que ontem se viram escravos
nos atos mais comezinhos
onde cada ponte leva
onde cada água afunda
a memória dos algozes
do ouro por sucumbir
em lanhos, facas, machados
nos próprios ossos das gentes?
quanta carne se abriu
nos cantos desta cidade
que a fizeram roer ossos
e quebrar-se pelas pedras
entremeadas, devotas
com verdes caldos de lama?
o seu corpo é do diabo
a sua alma é fundida!
montar a musa, 5
montar a musa é mais do que fatal
que além de tudo a engrenagem entoa
(que importa a mim se a bicharia roa?)
e eu enfio os pés no lodaçal.
juntadas as regiões nobres e as paletas
lavradas em oficinas, todas elas retas
montá-la é desmontá-la pelo avesso:
onde faltar questão, eu ponho gesso.
quanto de mim vale um anjo
quanto de mim vale um anjo
se cada vazio oculto
se traduz por um diabo
na alma cheia de dentes
meus cavalos e pedreiras
minhas glândulas atávicas
os umbrais da minha sede
prontamente se revelam
uns bois de olhos sagrados
me contemplam com seu dorso
de pura dureza vista
nos antanhos já bebidos
são anjos, demônios, roncos
de uma pele atrevida
já pisada de histórias
e pratas não semeadas
quantos deuses me engolem
quantas almas me sufragam
se a avó em ato louco
pôs suas asas sobre mim?
os mestres, os vandálicos, os loucos
1.
os mestres, os vandálicos, os loucos
não são os todos, e nem são muito poucos.
seus edredons são peles de camelos
suas carnes se respaldam em novelos
seus ovos são férteis nutrientes
a desmanchar e recozer os dentes.
quantas manhãs os vi a trovejar
os seus bafejos chegados d’além mar.
2.
seus atos dominados por bobinas
se atropelam em todas as esquinas.
travessia, 1
se ela quiser eu vou
faço logo a travessia.
manuelzão já me chamou.
inda que seja na cheia
atravesso o vau de rio
com um cavalo na veia.
o sertão é gado limpo
música semi colcheia.
com que roupa eu chego lá?
que pente que me penteia?
aço, 1
eu construí a musa de improviso
com uma carne feita de maçã
e uma terra certa: o paraíso.
mas eu padeço de febre terçã
e o seu olhar de aço foi o aviso:
a minha musa é toda em rolimã.
o braço de manuelzão, 1
minas é um rio comprido
como um cachorro latido
no braço de manuelzão
eu olho minas de perto
como tecido coberto
pelo balaço do mar
manuelzão e mar são coisas
de fazer minas chorar.
o corte da terra
a vida, solidão, toda impotência
caminha numa pele de novelo
onde ela rasga a carne em desmantelo
a demonstrar ao mundo abstinência.
pudera ser mais torpe e mais estrada
nos meus cavalos, encantos, aguaceiros.
a vida se acabou em quase nada.
desmontar a musa, 1
1.
eu pego da amada os parafusos
e reconheço cada, nos seus usos.
jumelos, lambrequins e outras gentes
monto e desmonto os olhos e os dentes.
daí carrego a musa em meus arreios
pra assegurar os tanques e os freios.
a vida já virou uma caçada
quem sabe dos chassis da minha amada?
2.
vou remontá-la toda, em madrugada
numa poesia de dança e gargalhada.
as coisas de Caravaggio, 3
há coisas como o dia, como a noite
como as maçãs dormidas no seu prato.
há coisas pelos anjos, que intranquilos
revelam um macabro sobre tudo.
há coisas que são poucas e devassas
há coisas muitas, pedras, feitas breves
numa sangria de cuidado e morte.
que coisas arrebatam e nos queimam
de pura dor e sofridão intensa?
as coisas reveladas são mais duras
que a irrevelada ação que as sustenta?
há coisas tão medonhas enterradas
e outras só encanto nos seus vôos
que ávido de tudo me carrego
neste mar de sangrias infundadas.
umas coisas me dizem que sou bruto
tantas outras me regem que sou sábio
e dilaceram meu ânimo de bicho
ou corrompem um ombro puro osso.
todo corpo regado de martelos
que são coisas de ferro desterrado
só me traz um mormaço de peleja
pelas velas que pisam sobre mim.
quanta coisa me faz ser anjo podre
ou demônio marcado de ciências?
neste prato de coisas caravaggio
a vida é um pecado sem final.
soneto torto para Maradona
a sede que invade meu espanto
meu fel e meu extrato de agonia
se encontra toda no tropel do manto
que me socorre em plena luz do dia
soubesse dessas luzes no encanto
dos ancestrais da minha agonia
o meu estado de noite em que levanto
seria só o espanto pelo dia
sou mais devasso ao me perder portanto
nessas estradas de cavalaria
que outro homem feito de quebranto?
que homem se repete só no espanto?
só Maradona em estado de poesia
veria meu suor por todo canto.
e eu me arregaço pela luz do dia.
setembro, 2012
Romério Rômulo (Felixlândia/MG). É professor de Economia Política da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Poeta e editor, prefaciou e publicou com Sebastião Nunes a primeira edição assinada dos poemas eróticos de Bernardo Guimarães, O Elixir do Pajé (Dubolso, 1988), mais de 100 anos depois da edição original. Até então todas eram clandestinas. Publicou os livros de poesia Bené Para Flauta & Murilo (1990), a caixa Tempo Quando (4 livros em 2 volumes, 1996), Matéria Bruta (2006) e Per Augusto & Machina(1999), entre outros. É um dos fundadores do Instituto Cultural Carlos Scliar, com sede no Rio de Janeiro. Outros poemas podem ser lidos em seu blogue [ http://romerioromulo.wordpress.com ].
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