Fausto Godoy
Fausto Godoy, Serviu nas Embaixadas do Brasil em Bruxelas (1978); Buenos Aires, (1980); Nova Delhi (1984); Washington (1992) e Tóquio (2001). Foi designado Embaixador junto aos governos do Paquistão (2004) e Afeganistão (2005). Serviu posteriormente em Hanoi (2007); Consulado do Brasil em Tóquio; Escritório Comercial do Brasil em Taipé; e nas Embaixadas do Brasil em Bagdá (sediada em Amã), Daca, Astana e Yangon. Foi Cônsul-Geral do Brasil em Mumbai (2009). Aposentou-se do Serviço Exterior Brasileiro em 2015. É membro da Diretoria da Câmara de Comércio Brasil-Índia. É coordenador do Núcleo de Estudos e Negócios Asiáticos na ESPM
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As eleições de Taiwan… e a China, por Fausto Godoy

A História se repete… para intimidar, o “Exército de Libertação Popular/ELP” fez manobras militares nos arredores da ilha durante a campanha

Divulgação

As eleições de Taiwan… e a China

por Fausto Godoy

O médico Lai Ching-te (aka. William Lai), atual vice-presidente de Taiwan e candidato do “Partido Democrático Progressista” (PDP), venceu neste sábado (13/01) as eleições presidenciais na Ilha. Ele sucede a mandatária anterior, Tsai Ing-wen, do seu mesmo Partido, e teve como opositores o atual prefeito de Nova Taipé, Hou Yu-ih, do partido Kuomintang (KMT) e o ex-prefeito de Taipé, Ko Wen-je, do “Partido Popular de Taiwan” (TPP), ambos partidos menos refratários às relações com Pequim. Lai obteve 40,2% dos votos dos 71,86% de eleitores que compareceram às urnas, o que representou uma redução de 3,04 % em relação ao pleito de 2020. Há uma outra dimensão importante nestas eleições.: o PDP perdeu a maioria no parlamento e agora tem 51 assentos, contra 52 do Kuomintang e 8 do PPT. A este último propósito, esta foi a primeira vez desde a eleição de 2000 que o candidato vencedor obteve menos de 50% dos votos, mas também a primeira que um partido, sobretudo de “resistência” ao Continente vence mais de dois pleitos presidenciais consecutivos desde que as eleições diretas foram introduzidas em 1996.

A imprensa ocidental saudou a vitória como um “referendo da disposição da população de se separar do Continente e seguir caminho próprio”. Segundo o analista e professor Oliver Stuenkel, em matéria publicada no Estadão de hoje, “…durante a campanha, o governo de Pequim havia feito de tudo para evitar a vitória de Lai, descrevendo-o como “grave perigo” e alertando Taiwan que se tratava de uma “escolha entre a paz e a guerra” e “a prosperidade e a recessão”. Além disso, a China inundou Taiwan de “fake news” para reduzir o apoio ao “Partido Democrático Progressista (DPP), agremiação de Lai, com o qual Pequim se recusa a dialogar”, segundo ele.

Em comunicado, a União Europeia celebrou o resultado das eleições e felicitou Lai pela vitória. Em seu primeiro pronunciamento após sua eleição, este declarou: “quero agradecer ao povo de Taiwan por escrever um novo capítulo na nossa democracia, mostrando ao mundo o quanto a valorizamos. Este é o nosso compromisso inabalável. O povo resistiu com sucesso à pressão de forças externas para influenciar as eleições”. Prudentemente, porém, garantiu que está disposto a “dialogar com os chineses com base na dignidade e na paridade”.

A História se repete… para intimidar, o “Exército de Libertação Popular/ELP” fez manobras militares nos arredores da ilha durante a campanha e o governo chinês aumentou tarifas sobre uma série de produtos taiwaneses, sinalizando que poderia impor sanções mais amplas se Lai vencesse o pleito e ameaçasse o “status quo” vigente. A campanha foi definida por Pequim como uma “escolha entre a guerra e a paz”… que, de resto, afirmou que a vitória de Lai “não pode representar a opinião pública dominante na ilha, posto que ele não alcançou a maioria absoluta dos votos”.

O quanto disto é ameaça real e quanto é retórica?…

Tomo como referência a minha experiência pessoal, pois eu servia na nossa Embaixada em Pequim, em 1995, quando o então Presidente “separatista” de Taiwan, Lee Teng-hui, realizou, em março daquele ano, uma visita “privada” à “Iowa State University”, sua “alma mater” americana; foi durante o governo Clinton. Pequim reagiu com grande contundência, e o ELP realizou várias manobras e movimentos intimidatórios ao largo do Estreito. Os que estávamos servindo na China pensávamos que a situação poderia se derivar para um confronto armado de dimensões incalculáveis, visto o compromisso assumido pelos Estados Unidos de preservar a segurança e a incolumidade da Ilha pelo “Taiwan Relations Act”, quando, em 1979, transferiram o reconhecimento do país de Taipé para Pequim. Isto não aconteceu, como sabemos.

Recorramos, então, à História para melhor entendermos o que está acontecendo…

A partir do momento em que os refugiados de Chiang Kai-shek aportaram em Taiwan, em 1949, o foco da economia da “Ilha rebelde”- como os continentais a chamam – passou a recair na indústria leve e nas pequenas e médias empresas, sobretudo de microprocessadores. Com esta política, começou a tomar forma a que seria a base para um novo padrão de desenvolvimento. Esta fórmula começou a demonstrar crescente impulso na década de 1960, substituindo a estrutura agrária anterior. Neste cenário, o papel do governo na economia diminuiu gradualmente, e muitas empresas estatais foram privatizadas, sobretudo a partir da década de 1980. Com o sucesso alcançado por este processo, um forte sentimento nativista consolidou-se no seio da população no sentido de renegar, não a “chinesidade ancestral”, mas a diferença dos universos político-econômicos: enquanto o Continente se engalfinhava nas comoções da Revolução Cultural de Mao Zedong, a Ilha, sob a batuta do Kuomintang, prosperava. Fruto disto, as gerações mais jovens se sentiam – e se sentem cada vez mais – “taiwanesas” e não mais “chinesas”.

Só que… os crescentes custos de produção e de mão-de-obra decorrentes deste mesmo “sucesso” levaram os empresários taiwaneses, com o objetivo de manter competividade, a transferir cada vez mais suas bases de produção para as “zonas econômicas especiais que as reformas econômicas de Deng Xiaoping, a partir de 1979, estavam impulsionando no Vale do Rio das Pérolas, no sul da China. Concomitantemente, o Continente começava a ganhar crescente ímpeto na economia mundial, e hoje é não somente o segundo maior PIB nominal, mas o maior PIB por paridade de poder de compra do planeta, ameaçando (se é que ainda o faz…) a hegemonia dos americanos.

A imbricação econômico-comercial entre os dois chegou a tal ponto que hoje o Continente é o principal parceiro comercial da Ilha…”inimigos“ e maiores parceiros ao mesmo tempo – paradoxo que a cabeça ocidental não entende -, a ponto de em 2010 Taiwan ter assinado um acordo com a RPC – o “Acordo-Quadro de Cooperação Econômica”/ECFA – que permitiu o crescimento do comércio intraestreito. Desta forma, o Continente, que já era o principal parceiro comercial de Taiwan desde 2005 – quando representava 17% de seus fluxos comerciais – passou a responder a partir de 2022 por 25% das exportações da Ilha, e 20% de suas importações. Ou seja, uma interdependência real, que se contrapõe ao discurso separatista…

Isto economicamente; entretanto, do ponto-de-vista civilizacional, um dos pilares para se entender o que é a China é o conceito de “chinesidade” antes mesmo do que é o país “China”. O seu significado em mandarim é Zhonguo (中華), “a terra do Meio/Centro”, um conceito que envolve a História, as tradições e os anseios compartilhados por toda a população. Este conceito se realiza dentro de um território, o qual tem que ser preservado “erga omnes”: e que inclui Taiwan. Aliás, para manter esta unidade, durante milênios os chineses erigiram muralhas que impediam a entrada dos ‘bárbaros”, que é como eles nomeavam todos aqueles que não são de cepa chinesa.

Haveria, portanto, um conflito entre ser ancestralmente chinês – com o que concordam os ilhéus – e politicamente taiwanês? Este é o grande dilema…Deng Xiaoping tinha razão quando afirmava que a “questão taiwanesa” deveria ter sido solucionada por Mao e Chiang Kai-shek quando ainda estavam vivos. Esta herança “maldita” só terá desfecho, a meu ver, quando os dois lados do Estreito chegarem a uma fórmula de convivência que permita a independência…e a unidade; estaríamos vislumbrando uma fórmula semelhante à da “Commonwealth” britânica?…

Fausto Godoy, Serviu nas Embaixadas do Brasil em Bruxelas (1978); Buenos Aires, (1980); Nova Delhi (1984); Washington (1992) e Tóquio (2001). Foi designado Embaixador junto aos governos do Paquistão (2004) e Afeganistão (2005). Serviu posteriormente em Hanoi (2007); Consulado do Brasil em Tóquio; Escritório Comercial do Brasil em Taipé; e nas Embaixadas do Brasil em Bagdá (sediada em Amã), Daca, Astana e Yangon. Foi Cônsul-Geral do Brasil em Mumbai (2009). Aposentou-se do Serviço Exterior Brasileiro em 2015. Doou sua coleção de arte e etnologia asiáticas (com cerca de 3.000 peças), ao Museu Oscar Niemeyer, de Curitiba. Esta coleção constitui a primeira ala asiática em um museu brasileiro. É membro da Diretoria da Câmara de Comércio Brasil-Índia. É coordenador do Núcleo de Estudos e Negócios Asiáticos na ESPM

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para dicasdepautaggn@gmail.com. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.

Fausto Godoy

Fausto Godoy, Serviu nas Embaixadas do Brasil em Bruxelas (1978); Buenos Aires, (1980); Nova Delhi (1984); Washington (1992) e Tóquio (2001). Foi designado Embaixador junto aos governos do Paquistão (2004) e Afeganistão (2005). Serviu posteriormente em Hanoi (2007); Consulado do Brasil em Tóquio; Escritório Comercial do Brasil em Taipé; e nas Embaixadas do Brasil em Bagdá (sediada em Amã), Daca, Astana e Yangon. Foi Cônsul-Geral do Brasil em Mumbai (2009). Aposentou-se do Serviço Exterior Brasileiro em 2015. É membro da Diretoria da Câmara de Comércio Brasil-Índia. É coordenador do Núcleo de Estudos e Negócios Asiáticos na ESPM

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