
no Substack – Amanhã não existe ainda
A morte de Francisco
por Luis Felipe Miguel
Quando Bergoglio foi eleito papa, eu não curti. Não que tivesse algo a ver com a história – não sou nem católico, muito menos cardeal, a escolha não era assunto meu. Mas tinha tomado contato com os boatos sobre sua colaboração com a ditadura argentina, que, ainda que nunca tenha sido confirmados, contribuíram para me fazer desconfiar dele. As atitudes que tomou no início do pontificado, como se recusar a habitar o palácio que lhe era destinado para continuar vivendo em um pequeno apartamento ou viajar na classe econômica de aviões de carreira, me pareciam jogadas de marketing. O medíocre filme propagandístico de Fernando Meirelles sobre os dois papas só reforçou essa impressão. Depois dos longos anos de Wojtyla e de Ratzinger, parecia que a igreja nunca seria nada além de um bastião do conservadorismo, com seu setores progressistas fadados ao ostracismo. Bergoglio parecia para mim ser um Wojtyla mis au jour: um reacionário com face humana, adaptado ao tempo das redes sociais.
O começo do seu pontificado não mudou essa impressão. Cheguei a escrever um texto para o blog do meu grupo de pesquisa, criticando suas declarações em favor da aplicação de castigos físicos em crianças (“mas nunca no rosto, para não humilhar”). Mas, com o tempo, foi mudando. Francisco assumiu posições claras contra as desigualdades e contra o colapso ambiental. Criticou as políticas migratórias racistas da Europa. Buscou a paz. Denunciou o golpe contra a presidente Dilma e o injusto encarceramento de Lula.
Em especial, ele se pronunciou contra o genocídio cometido por Israel e em defesa da vida do povo palestino, com uma coragem que o singularizou entre os líderes mundiais.

Em relação a questões caras para a Igreja Católica, os avanços que sinalizou foram cautelosos – no acolhimento a homossexuais, na aceitação de métodos contraceptivos, na resposta às denúncias de abuso sexual por parte do clero. Era um político, afinal, agindo politicamente. Foi mais ousado, segundo os experts, no enfrentamento aos escândalos financeiros. Não avançou nada na questão do direito ao aborto.
Feitas as contas, fico com o veredito de Hugo Souza, apresentado ontem aqui no Substack: “parece que Bergoglio merece respeito, de resto por contraste com qualquer um de seus antecessores”.
E o conclave que se aproxima deve ser difícil. J. D. Vance, o vice católico de Donald Trump, estava em Roma para a Páscoa e se encontrou com autoridades do Vaticano (incluindo o papa). Tudo indica que os Estados Unidos se dispõem a comandar a pressão para eleger um direitista como novo papa.
Quando Ratzinger foi eleito, perguntei a uma amiga, católica devota, como tinha sido possível. Afinal, não é o Espírito Santo que sopra para os cardeais o nome de quem deve ser escolhido? Ela respondeu: “O Espírito Santo fala, mas os cardeais nem sempre querem ouvir”.
No momento, se não quiserem ouvir J. D. Vance já é o suficiente.
Luis Felipe Miguel é professor do Instituto de Ciência Política da UnB. Autor, entre outros livros, de O colapso da democracia no Brasil (Expressão Popular).
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