A quem interessa o Estado mínimo para tragédias máximas?
por Rita Almeida
No ano de 2015 quando ocorreu o desastre ambiental da Vale, em Mariana, eu era uma das conselheiras do Conselho Regional de Psicologia. Diante da tragédia, incluindo os efeitos sobre a saúde mental dos sobreviventes, houve uma “corrida” de psicólog@s voluntários para o local, na tentativa de minimizar o sofrimento da população. Tivemos notícias até mesmo de ônibus de faculdades levando estudantes de psicologia para a região.
Em dado momento, o CRP-MG foi acionado pelo SUS de Mariana, a queixa era que o fluxo intenso e desorganizado de profissionais da psicologia não estava ajudando, ao contrário, estava criando novas demandas para as equipes de saúde mental municipal. Se já não lhes faltavam problemas a resolver, começaram a ter que lidar também com os danos causados por intervenções de profissionais despreparados, com ações equivocadas e desvinculadas da rede local.
Sabemos que em situações extremas como essa, os profissionais precisam trabalhar em equipe, organizados por métodos, fluxos e gestores que sustentam, inclusive, a integridade dos profissionais. Trabalhar sozinho, sem metologia adequada e sem orientação, nesses casos, é um risco enorme tanto para quem vai receber os cuidados quanto para quem os está oferecendo, ainda que cheios de sinceras e boas intenções. Em Mariana, por exemplo, houve casos onde as equipes locais tiveram que socorrer voluntários da psicologia em colapso emocional por causa do que enfrentaram.
A demanda do SUS de Mariana ao CRP-MG – que possui uma comissão para atuação em emergências e desastres – foi para organizar melhor o fluxo de psicólog@s voluntários que deveriam estar submetidos à demanda e à organização da rede local. Na ocasião, as ações do CRP MG e do SUS de Mariana foram instrumentalizadas por gente ignorante e de má fé para criticar o poder público e o Conselho, como se esses só servissem para atrapalhar aquilo que a sociedade civil e seus voluntários fariam com muito mais celeridade e competência.
Quase 10 anos depois, vejo o mesmo tipo de discurso sendo utilizado para as enchentes do Rio Grande do Sul. Obviamente que a solidariedade e a vontade da sociedade civil em ajudar em situações como essa precisa ser louvada e celebrada, entretanto, é importante compreender que uma ajuda mal conduzida, ainda que motivada pela mais nobre das intenções, pode atrapalhar ao invés de ajudar. Respeitar as organizações, instituições e governos locais é fundamental nesses casos, são eles que saberão a melhor maneira de coordenar as ações de forma eficiente, ainda que muito longe de serem milagrosas ou ideais.
Outra coisa importante, cessado todo o alvoroço e espetacularização do desastre da Vale em Mariana, os voluntários foram embora, as doações cessaram, os críticos de ocasião que ganharam voz e cliques nas redes, silenciaram. Sabem quem ficou lá ? O Estado (o SUS, o CRAS, o CREAS, ministério público, a Defesa Civil, a Segurança Pública e outros) e as organizações da sociedade que já estavam lá antes da tragédia, inclusive são estas instâncias que estão até hoje lutando para que a Vale – privatizada em 1997 – se responsabilize e pague pelo dano que cometeu contra o meio ambiente e a população.
Então não caiam nessa de que “civil salva civil” e que o governo e suas instituições “só atrapalham”, isso é só mais uma falácia da agenda neoliberal que a extrema-direita vem tentando disseminar mundo afora. O que está subentendido em tais premissas é: “vocês cidadãos que se lasquem e se salvem, porque o Estado não tem nada a ver com isso. O Estado para vocês é mínimo. Estado máximo só quando é para salvar e proteger o privilégio de alguns poucos muito endinheirados que, de vez em quando, vão fazer caridade e lhes jogar algumas migalhas.
Finalizando, vale destacar que certos governantes podem sim atrapalhar as políticas de Estado, indo na contramão delas, sendo negacionistas, ignorantes ou simplesmente canalhas. Imagina só que desgraça seria se a essa altura algum governante falasse pra população do Rio Grande do Sul deixar de “mimimi” e de ser “maricas”, afinal, é só uma “enchentezinha” ? Imagina só se algum governante receitasse um comprimido que promete fazer a água da enchente evaporar, mesmo que todos os especialistas e cientistas digam que isso não funciona? Imagina só se algum governante incitasse um movimento anti-resgate de vítimas? Imagina só se algum governante demitisse o comandante da Defesa Civil e botasse um orangotango em seu lugar?
Mas que bom que podemos respirar aliviados, afinal, esse tipo de governante não existe, né?
Rita Almeida – É psicóloga/psicanalista, mestre e doutora em educação pela UFJF.
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