Artigo 5: Ninguém será submetido à tortura

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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A primeira sessão do Comitê de Redação sobre a Declaração Internacional de Direitos, Comissão de Direitos Humanos, em Lake Success, Nova York, em 9 de junho de 1947. Vista parcial da primeira reunião. Da esquerda para a direita: coronel William Roy Hodgson, representando a Austrália; P.C. Chang, da China, vice-presidente; Henri Langier, secretário-geral da ONU para assuntos sociais; Eleanor D. Roosevelt, dos Estados Unidos, presidente; professor John P. Humphrey, diretor da Divisão de Direitos Humanos da ONU; Charles Malik, Líbano, relator; professor Vladimir M. Koretsky, representante da então União Soviética; H.T. Morgan, Reino Unido, suplente. Foto: ONU

da ONU

Artigo 5: Ninguém será submetido à tortura

A Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) foi adotada em 10 de dezembro de 1948. Para marcar o aniversário de 70 anos, nas próximas semanas, o Escritório do Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos (ACNUDH) publicará textos informativos sobre cada um de seus artigos.

A série tentará mostrar aonde chegamos, até onde devemos ir e o que fazer para honrar aqueles que ajudaram a dar vida a tais aspirações.

Leia mais sobre o Artigo 5: Ninguém será submetido à tortura nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante.

Existe uma proibição absoluta na Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) que é universalmente aceita como inequívoca: a proibição de tortura do Artigo 5. Às vezes, os Estados podem contestar a definição do que é tortura, mas praticamente ninguém defende abertamente a prática, mesmo que alguns ainda a pratiquem em lugares descritos pelo Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH) como “os cantos mais obscuros do nosso planeta”.

A proibição da tortura é outro reflexo da repulsa contra os campos de concentração e os experimentos médicos nazistas em pessoas vivas que tanto motivaram os redatores da DUDH no final da década de 1940. É ainda mais elaborada na Convenção das Nações Unidas contra a Tortura, de 1984, que deixa claro o caráter absoluto da proibição: “nenhuma circunstância excepcional, seja estado de guerra ou ameaça de guerra, instabilidade política interna ou qualquer outra emergência pública, pode ser invocado como justificativa para a tortura”.

Dada essa aversão universal, por que sociedades democráticas contemporâneas ainda toleram o uso da tortura? A justificativa adotada mais frequentemente para isso — particularmente na luta contra o terrorismo — é a de que ela salvaria a vida de pessoas inocentes.

Além de todas as falhas nesse argumento imaginário da “bomba-relógio” (como as forças de segurança sabem se estão com a pessoa certa? Como sabem se o suspeito não vai inventar coisas simplesmente para aliviar a dor?), trata-se apenas de uma desculpa para um comportamento desumano projetado para afirmar poder.

A proibição da tortura é tão absoluta que o órgão da ONU encarregado de monitorar sua prevenção recomendou que até os soldados em treinamento devem ser lembrados de que têm o dever de desobedecer ordens de oficiais superiores para cometer tortura. O fato de Estados terem ido tão longe para redefinir algumas de suas práticas, segundo alguns especialistas, mostra que eles realmente respeitam a proibição universal da tortura, mesmo quando tentam subvertê-la.

Após os ataques de 11 de setembro de 2001 nos Estados Unidos, o governo do presidente norte-americano George W. Bush reinterpretou a palavra “tortura” de forma muito restrita, em um esforço para dar margem aos oficiais para maltratar suspeitos. Os memorandos posteriormente divulgados mostraram que o governo acreditava que as proibições contra a tortura eram “singulares” e “obsoletas”, não se aplicavam no que chamavam de “guerra ao terrorismo” e até mesmo que o presidente poderia “anular” a lei internacional.

Novos eufemismos foram inventados para encobrir as ações da administração norte-americana. Sob “rendição extraordinária”, os EUA levaram suspeitos para “locais obscuros” — centros de detenção em Abu Ghraib, no Iraque, prisão de Bagram, no Afeganistão, Baía de Guantánamo, em Cuba —, para serem submetidos a “técnicas aprimoradas de interrogatório”.

Essas práticas chocantes foram condenadas por uma longa lista de organizações e pessoas, incluindo vários generais reformados, almirantes, advogados militares e oficiais de inteligência. Mas qualquer discussão sobre direitos humanos tendia a ser submersa em discussões mais “práticas” — irrelevantes sob a lei internacional — sobre se a tortura era um meio eficaz e confiável de extrair informações úteis.

Finalmente, foi a onipresente câmera digital, em vez de argumentos morais, que viraram a maré contra a tortura. Fotos de prisioneiros iraquianos nus sendo humilhados enquanto soldados norte-americanos sorriam orgulhosamente para a câmera se tornaram emblemáticas dos abusos oficiais aos direitos humanos. Os EUA posteriormente repudiaram essas práticas.

Hoje, ativistas em todo o mundo arriscam suas vidas para documentar abusos e divulgar rapidamente as evidências nas redes sociais. Mas o que é feito com essas informações depende da vontade política. “O problema não é a falta de alerta precoce”, diz Pierre Sané, do Senegal, ex-chefe da Anistia Internacional, “mas falta de ação antecipada”.

Mesmo assim, a ONU considera que o monitoramento regular dos locais de detenção por mecanismos de supervisão independentes, internos e externos, é um dos métodos mais eficazes para prevenir a tortura. A elevação dos direitos humanos ao nível internacional significa que o comportamento não é mais governado apenas pelos padrões nacionais. Tratados internacionais e regionais contra a tortura (bem como contra o genocídio e os desaparecimentos forçados) superaram os argumentos de que certos indivíduos gozam de imunidade internacional contra processos judiciais. Sob o princípio conhecido como “jurisdição universal”, as pessoas suspeitas dos mais graves crimes internacionais — incluindo tortura — podem ser presas, julgadas e condenadas em outros países.

Como afirmou Navi Pillay, ex-chefe de direitos humanos da ONU, “ninguém deve ser isentado — nem os próprios torturadores, nem os formuladores de políticas e autoridades públicas que definem as políticas ou dão ordens”.

Como exemplo, “Chuckie” Taylor, filho do ex-presidente da Libéria, está preso na Flórida, nos EUA, cumprindo uma sentença de 97 anos por tortura e outras violações de direitos humanos cometidas em sua terra natal.

Quando o ex-ditador chileno Augusto Pinochet morreu em 2006, ele havia passado um ano e meio em prisão domiciliar em Londres e, após seu retorno ao Chile, foi acusado de vários dos mais de 300 crimes nos quais foi envolvido em relação a violações de direitos humanos durante a ditadura militar de 1973-1990. Embora mantido sob prisão domiciliar, ele ainda não havia sido julgado ou condenado no momento em que morreu.

Em 1975, uma jovem foi presa pela polícia política de Pinochet e interrogada no centro de tortura Villa Grimaldi, na capital do Chile, Santiago. Décadas mais tarde, depois que a democracia foi restaurada, Michelle Bachelet passou a servir dois mandatos como presidente do Chile. Hoje ela é a alta-comissária da ONU para os direitos humanos.

Leia os artigos anteriores:

ONU explica cada artigo da Declaração Universal dos Direitos Humanos

Artigo 1: Todos os seres humanos nascem livres e iguais

Artigo 2: Liberdade de viver sem discriminação

Artigo 3: Direito à vida
 
Artigo 4: Ninguém será mantido em escravidão ou servidão
Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

3 Comentários

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  1. DEVERIA ESTAR COLOCADO NA PORTA DOS PRESIDIOS BRASILEIROS

    Seria uma ótima lembrança à situação carcerária na Redemocracia, pós Anistia, desenvolvida por pseudo Governos Socialistas e Progresistas de Itamar (factóide de Tancredo Neves), FHC, Lula, Dilma, Temer (cria da OAB). A Imprensa Brasileira deveria aproveitar para transmitir ao vivo, como Mães, Esposas, Irmãs, Filhas.. dos Presidiários são revistadas para adentrarem na Carceragem. Carceragem que continua com situação animalesca, medieval, criminosa apesar de tão panfletários governos e personagens. A ONU não tem nada a dizer? E OAB (esta Instituição Fascista de Eleições Obscuras e Indiretas, mesmo sendo Entidade Civil)?  Ah! Lembrei : país de muito fácil explicação.  

  2. triortura

    Acredito que alguns homicidas deveriam, também, responder pelo crime de tortura e agressão.  É certo que o uso da intimidação carrega a nítida intenção de agredir e abrir espaço para uma tortura perigosa, sem controle e repleta de maldades. Então, eu concordo que se dessa forma acontecesse o pior, seria muito injusto o culpado responder por um só crime apenas. Fica como sugestão.

     

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