Para Além do “Coaching”: a necessidade de um projeto coletivo para as cidades
por Marcelo Karloni
[publicada também no IHUnisinos – enviada por BrCidades]
A alteração do script institucional para o direito à cidade como tarefa unificadora da esquerda
Como sempre, as eleições municipais de 2024 seriam uma oportunidade para operar transformações verdadeiramente radicais e de grande alcance. Afinal, cerca de 85% da população brasileira reside em centros urbanos. Entretanto, à medida que o espaço urbano é ocupado e há um adensamento populacional correspondente, ocorre também o alargamento do espaço privado e o estreitamento do espaço público. O abandono de projetos coletivos se dá de forma diretamente proporcional ao avanço das idealizações burguesas de apropriação do espaço citadino.
Nas últimas décadas em países como o Brasil, o discurso da “eficiência” dos setores privados, da administração gerencial e das supostas virtudes salvadoras do neoliberalismo, em oposição à construção de uma ética pública, ganhou expressões materiais visíveis na vida das cidades. O capital imobiliário dita a organização e o planejamento das cidades, preservando a natureza apenas quando isso atende aos seus interesses, mesmo com a existência de planos diretores.
Os números do crescimento do mercado imobiliário de luxo no Brasil refletem essa constatação. Em 2023, a consultoria Brain Inteligência Estratégica apresentou dados que apontavam um crescimento de 39,2%[1] no lançamento de imóveis de luxo e superluxo no primeiro semestre do ano. Segundo a mesma consultoria, esse fenômeno seria resultado de uma soma de fatores, como o aumento da renda de uma parcela da população e o crescente interesse de investidores internacionais.
Evidentemente, sabe-se que o desejo por segurança, espaços higienizados e a própria noção de privilégio seguem sendo os motivadores principais diante de uma vida na cidade que, cada vez mais, parece sitiar qualquer traço de civilidade, tolhendo possibilidades de construção de redes de solidariedade entre seus habitantes.
Enquanto isso, demandas históricas, como o direito à moradia, seguem os mesmos trilhos de debate, com a persistência do déficit habitacional, formado pelo universo somado de domicílios com: 1) Habitação precária, 2) Ônus excessivo com aluguel e 3) Coabitação. Segundo dados da Fundação João Pinheiro (FJP), em 2022, o Brasil possuía um deficit habitacional de mais de 6,2 milhões de moradias, sendo 74,4% composto por domicílios com renda mensal de até R$ 2.640.
Importa destacar que, desses 6,2 milhões de moradias, 62,6% são chefiadas por mulheres e 66,3% por pretos e pardos, situando a questão da habitação também no espectro das discussões sobre gênero e etnia. No país, os três estados com mais domicílios inseridos nesse universo são São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro, que, somavam 2.351.375.
A combinação de fatores como o alargamento do espaço privado e a persistência de desigualdades históricas, manifestas, na precariedade da habitação em países como o Brasil, de economia dependente, é perversa. Sobretudo porque, ao “apostar” em um modelo de cidade que isola seus habitantes privilegiados por meio de loteamentos de acesso controlado ou condomínios, está-se, na base, esgarçando o que torna possível a existência de redes de solidariedade citadina: a coesão social.
Ora, mesmo do ponto de vista da governança local institucional, esse esgarçamento é um produto indesejado. A intersetorialidade das políticas públicas requer a construção de redes de comunicação e ações que favoreçam parcerias entre diversos tipos de agentes sociais. Estão nesse grupo: órgãos de Estado, lideranças comunitárias, movimentos sociais, academia e, até mesmo, alguns setores empresariais. Todos esses agentes se alimentam dos laços promovidos pelo fortalecimento da coesão social.
Observe-se que está sendo construído um modelo de cidade no Brasil que isola seus habitantes de maior renda em edificações com vigilância 24 horas e espaços privados exclusivos para amenidades, ao mesmo tempo em que pulverizam-se os mais pobres nas franjas periféricas, em conjuntos habitacionais sem infraestrutura, equipamentos de serviços e vulneráveis ao crime organizado.
Sobre este último aspecto, importa recordar que, de acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública[2], em 2022 havia 30 milhões de pessoas no Brasil que declaravam viver em espaços com vigilância privada, mantida por policiais de folga. Assim, 13,9% da população brasileira vive nas cidades tendo como garantia de segurança a ação de grupos não oficiais do Estado.
A cidade coaching e o Estado, entre “perdedores” e “vencedores”
A lógica neoliberal que atravessa décadas nos países do norte global, importada pelos países do sul do planeta, sobrevive exatamente pela incapacidade do Estado em atender às demandas mais cotidianas da vida dos indivíduos. Se o Estado é incapaz de garantir educação, privatiza; incapaz de garantir saúde, privatiza; incapaz de garantir segurança, privatiza.
O Estado, alardeado como perdulário e ineficiente, só não o é para garantir o contrato, o direito de propriedade e pagar os juros da dívida pública. O grande problema é que, “ausente” e “ineficiente”, o Estado acaba deixando o sujeito urbano ao desamparo, lançando sobre ele a tarefa de assegurar sua própria segurança, saúde e educação. A vida humana torna-se insuportável a quem não possui uma renda suficiente para financiar sua própria reprodução social nas cidades.
Entretanto, a venda desse modelo de civilização, cujos desdobramentos afetam a vida urbana de milhões de brasileiros, não é um fenômeno recente. No Brasil, ao longo da década de 1990, a busca pela reforma do Estado e a concepção de um modelo gerencial de administração pública invadiram universidades, órgãos públicos e moldaram grande parte do pensamento progressista. Com o passar dos anos, ainda que resistido por parte da esquerda, currículos de formação, do ensino médio às universidades, passaram a conferir ares de modernidade à individualização do destino dos sujeitos. Aos poucos, todo projeto coletivo foi abandonado e, em alguns casos, até criminalizado.
O perigo é que esse discurso, falsamente chamado de “meritocrático”, que na superfície parece descolado das formas autoritárias, está organicamente ligado a elas. Por essa razão, não é paradoxal, em nenhum nível, encontrar hoje vasos comunicantes profundos entre a agenda neoliberal e o autoritarismo. Assim, o pensamento neoliberal cria a ambiência propícia ao desencanto com a política e ao flerte com formas autoritárias de governo, perpetuando desigualdades e condições de vida precárias entre a classe trabalhadora. Além disso, opera a criminalização da política, bloqueando as vias de acesso à participação para os trabalhadores mais pobres, onde se dão as conquistas de direitos. Esses direitos acabam transformados em privilégios ou em conquistas individuais, desvinculados das lutas coletivas.
Em uma sociedade formada por “perdedores” e “vencedores”, não há espaço para a política, uma vez que o Estado se reduz a garantir a reprodução do capital. A crença de que o mercado tudo regula é vendida por meio de livros de autoajuda, que prometem aliviar os trabalhadores dos sofrimentos psíquicos que o próprio sistema produz. Ao considerar sua condição, o trabalhador não consegue perceber que o conjunto de oportunidades oferecido pelo Estado pesa mais na definição do seu destino do que seu esforço pessoal, por mais extenuante que seja. É preciso “matar um leão por dia”.
Se o trabalhador tem menos, é porque fracassou; se tem mais, é porque ouviu o “coach” que vende sucesso em pacotes. O “sucesso” torna-se uma mercadoria que pode ser adquirida por meio de programas de treinamento, palestras, cursos e desafios, quase sempre empreendidos pelos filhos do neoliberalismo. É por isso que se tornou lugar-comum o pensamento que o empreendedorismo pode ser, inclusive, social. Universidades públicas, escolas e mesmo muitos intelectuais de esquerda, parecem não conseguir identificar o perigo escondido nessa lógica empreendedora.
Segundo a historiadora Ellen Wood, esse seria o abraço final do capitalismo dado por esses acadêmicos que, incapazes de pensar em uma saída, optam por “reformar” esse modo de produção baseado na exploração do homem pelo homem. É preciso lembrar do sociólogo Chico de Oliveira, que dizia que, em nenhum lugar, a agenda do capital será civilizadora. O que a segue sempre será sangue, suor e lágrimas — dos trabalhadores, diga-se, mas nunca dos proprietários dos meios de produção.
O autoritarismo e “autoajuda” bebem da mesma fonte, a miséria e o adoecimento da vida nas cidades
O ponto de encontro entre esse conjunto de ideias e o autoritarismo é a negação de direitos públicos e a concessão de privilégios aos “vencedores”, aos mais “aptos”, “puros”, “nacionais”, “patriotas” ou qualquer outra designação que se deseje oferecer. Por isso, é possível afirmar que toda agenda de governo que flerte com a corrente neoliberal é, no fundo, uma versão “soft” da lógica autoritária. Isso é importante, pois a profusão de candidatos com discursos modernizantes, antipolíticos e moralistas – contra os adversários – parece ser ainda mais perigosa que a versão anterior do autoritarismo no país, o bolsonarismo. Embora se apresente como um outsider, essa nova versão faz parte do “sistema” e dele sobrevive.
A versão mais recente, embalada por coachs, é completamente avessa à política como meio de disputa. Ela sobrevive em seus cursos e palestras por ser financiada por uma parcela da população que se vê como mais esclarecida por ler livros com fórmulas sobre como fazer amigos, leis de atração e outras panaceias que rendem milhões de reais anualmente. No fim, a aversão à política, com a atribuição de virtude moral aos esforços individuais em detrimento dos coletivos, são, na verdade, um grande mercado.
Segundo dados divulgados em 2018[3], nos Estados Unidos o mercado de coaching movimentava mais de 2,3 bilhões de dólares anualmente. No Brasil, o mercado de autoajuda, em 2022, teve 27,04% de participação no faturamento de livros de varejo, segundo o Sindicato Nacional dos Editores de Livros (SNEL). Fazem parte desse mercado também os livros religiosos, que, em 2021, tiveram aumento de procura junto com os de autoajuda, chegando a 51%. É uma verdadeira onda que atinge o país.
O abandono de projetos coletivos, cujo maior exemplo seja, possivelmente, a cidade, torna-se hoje uma realidade graças à continuidade da retórica e prática neoliberal nas prefeituras de todo o país. São planos diretores elaborados sem participação popular, projetos de mobilidade urbana limitados a concessões de uso para empresas de transporte público apadrinhadas, remoção de populações pobres para periferias, em conjuntos sem infraestrutura, e um nó da terra que persiste.
As candidaturas de esquerda precisam mudar o script institucional, simples assim
Por isso, a escolha de candidaturas nas eleições municipais de 2024, comprometidas com o direito à cidade e com o combate a toda forma de autoritarismo, mas também opostas à agenda neoliberal, é talvez a tarefa unificadora da esquerda, com potencial de promover transformações institucionais que garantam a efetivação de direitos sociais. É preciso lembrar de que o autoritarismo, onde quer que se instale, não se limita apenas ao controle organizacional, mas está profundamente enraizado nas instituições sociais, que moldam os “scripts” e comportamentos dos agentes sociais. Esses scripts incluem normas e práticas que perpetuam desigualdades e a negação de direitos, mesmo após mudanças legais e investiduras de cargo. Portanto, a transformação democrática exige mudanças institucionais que redefinam esses scripts para promover equidade e inclusão na vida das cidades.
No contexto das eleições municipais, eleger candidaturas comprometidas com o direito à cidade significa apoiar políticas que garantam acesso justo à habitação, transporte e espaços públicos, reestruturando a forma como as cidades são planejadas e administradas. Isso cria uma ampla plataforma para a construção de projetos coletivos de cidade, enterrando de vez a lógica de “vencedores” e “perdedores” que fragiliza os laços de solidariedade. Isso envolve repensar as práticas e políticas que, historicamente, favoreceram elites e marginalizaram populações vulneráveis, transformando a dinâmica urbana para ser mais inclusiva e democrática.
Por outro lado, o combate ao fascismo — ainda uma urgência — se conecta diretamente à necessidade de enfrentar formas autoritárias de governança que persistem no Brasil. O fascismo contemporâneo se manifesta não apenas na opressão política direta, mas também na manutenção de estruturas institucionais que negam direitos e promovem exclusão. Assim, candidaturas que se opõem ao fascismo estão, essencialmente, comprometidas com a construção de uma sociedade onde todos têm direito à cidade, à saúde e a uma vida digna.
Ao eleger representantes que compreendem essas dinâmicas e se propõem a transformar os scripts institucionais, abre-se caminho para políticas públicas que valorizam a coesão social, promovem a saúde e reduzem desigualdades. No caso das periferias urbanas, por exemplo, uma governança municipal comprometida pode apoiar redes de apoio comunitário, mobilização social e programas de prevenção, que fortalecem a resiliência e a saúde dessas comunidades.
É urgente eleger candidaturas que defendam o direito à cidade e combatam o autoritarismo é essencial para a transformação das instituições sociais e para a consolidação de uma democracia inclusiva, na perspectiva da cidade como direito e não como privilégio.
Professor Marcelo Karloni é doutor em Dinâmicas Territoriais do Desenvolvimento e Regionalizações pela UFPE e membro da Rede Brcidades.
[1] https://forbes.com.br/forbes-money/2023/07/lancamentos-de-imoveis-de-luxo-contrariam-setor-no-semestre-e-crescem-392/
[2] https://www.diariodocentrodomundo.com.br/policiais-de-folga-fazem-prestam-vigilancia-particular-para-mais-de-30-milhoes-de-pessoas/
[3] https://veja.abril.com.br/brasil/tendencia-no-exterior-coaching-ganha-mais-adeptos-no-brasil/
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