
Gestão municipal e participação popular: lições do passado para o futuro das cidades
por Ermínia Maricato e Pedro Rossi
Entre as décadas de 1980 e 2000, diversas prefeituras brasileiras implementaram medidas inovadoras para garantir o direito à cidade e à moradia. Algumas gestões municipais extravasaram esse período, mas a maior parte delas se concentrou nele, especialmente a partir de 1985, quando se deu o retorno da eleição direta para prefeito das capitais com o fim do Regime Militar. O Ciclo Virtuoso das Prefeituras Democráticas e Populares, como ficou conhecido, se concentrou na inversão de prioridades nos investimentos públicos, com acompanhamento e controle social exercido por meio de ampla participação popular e descentralização administrativa. Essas prefeituras combateram históricas desigualdades sociais com soluções criativas, alcançando, inclusive, reconhecimento internacional. Apesar da profunda mudança pela qual vem passando o mundo, resgatar essas experiências é fundamental para enfrentar desafios contemporâneos, especialmente durante eleições municipais.
Utilizando quase que apenas recursos próprios, o Ciclo Virtuoso das Prefeituras Democráticas e Populares contribuiu significativamente para a melhoria das condições de vida das classes populares no contexto histórico de luta pela reconquista da democracia no Brasil (1985) e da nova Constituição Federal (1988). As dinâmicas promovidas por essas experiências foram fundamentais para o fortalecimento do poder local e da democracia participativa, que adotou como foco o controle dos investimentos públicos no território, superando a tradição do patrimonialismo, do clientelismo e da “política do favor”
Resgatar e valorizar essa memória é imprescindível. Promover o debate público sobre esse período é importante não apenas para compreender e refletir sobre os problemas do presente, mas também para fornecer subsídios para projetos de cidade que se inspirem nas experiências bem-sucedidas do passado. Esse exercício ajudaria a evitar o hábito recorrente de muitos governos de começarem do zero, buscando reinventar a roda, frequentemente acompanhados de promessas espetaculares, mas pouco eficazes e distantes das reais necessidades da população.
Muitas das soluções desenvolvidas durante este ciclo foram até exportadas para fora do Brasil. Essas experiências bem-sucedidas demonstram que importar modelos dos países centrais do capitalismo é desnecessário e, muitas vezes, inadequado para as particularidades das cidades dos países do sul global. Esta noção reflete a crítica de Roberto Schwarz sobre as “ideias fora do lugar”, que enfatiza a incompatibilidade de tais modelos com as realidades locais.
O Orçamento Participativo, prática inovadora implementada durante o Ciclo das Prefeituras Democráticas e Populares, foi replicado em mais de três mil cidades em todo o mundo, incluindo Paris, Lima, Nova York e Maputo. Outra relevante iniciativa foi a implementação dos corredores de ônibus, uma política de mobilidade urbana pioneira e que ganhou projeção internacional com o nome de Bus Rapid Transit (BRT) em diversos países. Ademais, programas de urbanização de favelas foram adotados em cidades latino-americanas, como Medellín, na Colômbia, e reintroduzidos no Brasil como se fossem algo inédito, sob a redundante expressão “Urbanismo Social”.
Nesse período, o direito à moradia foi amplamente promovido e defendido através de medidas como a regularização fundiária e a concessão de direito real de uso. Houve também numerosas experiências de cogestão entre o poder público e associações de movimentos de moradia, apoiadas pela assessoria técnica de arquitetos, engenheiros, advogados e assistentes sociais. Os concursos públicos de arquitetura e urbanismo, por exemplo, combinados com as experiências dos mutirões autogeridos, incentivaram a produção de uma arquitetura de alta qualidade que respeitava as decisões e as necessidades dos futuros moradores, resultando em obras que ainda hoje são importantes referências. Essas abordagens se destacaram em contraste com a repetição dos modelos de conjuntos habitacionais típicos do regime militar.
A descentralização administrativa, a criação de conselhos populares, a integração de sistemas de transporte e a implementação de tarifa social, a construção de equipamentos unificados de ensino, cultura e lazer, as iniciativas de preservação e requalificação de áreas de mananciais, rios e córregos, as contribuições para o tratamento de resíduos sólidos, e a agricultura urbana acompanhada de sacolões e restaurantes populares foram algumas das políticas adotadas por essas prefeituras. Esses programas mostraram como ações locais podem ter impacto amplo e duradouro e fazer a diferença na vida das pessoas.
A lista de municípios que integraram o ciclo é vasta, incluindo a maior parte das capitais brasileiras e o Distrito Federal. Na região Norte, Belém e Rio Branco se destacaram. No Nordeste, Fortaleza, Natal, Teresina e Recife foram referências. No Centro-Oeste, Goiânia, Campo Grande e Brasília foram as que melhor representaram a região. Todas as capitais do Sudeste estiveram envolvidas: Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São Paulo e Vitória. Por fim, no Sul, Porto Alegre também fez parte desse grupo e destacou-se por popularizar e sofisticar o Orçamento Participativo. As primeiras experiências surgiram no final dos anos 1970 em cidades de porte pequeno ou médio, ainda durante a ditadura militar: Lages, em Santa Catarina; Boa Esperança, no Espírito Santo; e Diadema e Piracicaba, em São Paulo. Apesar do declínio, ainda houve experiências que ultrapassaram o período do Ciclo das Prefeituras Democráticas. Algumas delas ocorreram nas primeiras décadas do século XXI em cidades como São Paulo (gestões de Marta Suplicy e Fernando Haddad), Araraquara (SP) e Maricá (RJ). Também se destacam os casos de João Pessoa e Conde, na Paraíba, sob as gestões de Ricardo Coutinho e Márcia Lucena.
Esse ciclo também foi crucial para a eleição de um presidente oriundo da classe operária em um dos países de maior desigualdade social do mundo. Muitas das ações implementadas durante o primeiro governo de Lula, em 2003, se inspiraram nas políticas desenvolvidas durante o ciclo dessas administrações municipais. A criação do Ministério das Cidades e a formulação do Programa Fome Zero, junto com a elaboração de um extenso e sofisticado arcabouço legal, são exemplos disso.
No entanto, a partir dos anos 1990, em um contexto de ascensão do neoliberalismo e de políticas de austeridade, o ciclo das prefeituras democráticas passou por regressão e, pior, teve sua memória histórica apagada, assim como quase todos os episódios que ousaram contrariar as marcas de um país de passado colonial, escravista e dominado por uma elite patrimonialista. É sempre importante lembrar de um exemplo: durante mais de três séculos, a maior parte dos africanos escravizados trazidos para as Américas vieram para o Brasil.
Mesmo com os avanços e experiências bem-sucedidas, o maior desafio das gestões nos últimos anos do ciclo virtuoso foi governar, responder às demandas e, ao mesmo tempo, articular a resistência à crise mundial do Estado de bem-estar social, à globalização neoliberal – fenômenos globais que impuseram limitações e desafios às políticas públicas –, ao avanço do neocolonialismo, do ataque aos direitos sociais, à Democracia etc. No Brasil, tem lugar a desindustrialização e o retorno ao protagonismo econômico do setor agro-minero-exportador, cuja agenda política e econômica foi adotada pelos governos federais dos anos 1990.
A crise internacional que se aprofundou a partir de 2014 promoveu instabilidade política e ataques ao Estado de Direito, com o impeachment da Presidente Dilma Rousseff e a Operação Lava Jato. É importante destacar que esses eventos ocorreram após o período de influência do ciclo das prefeituras democráticas e contribuíram para a consolidação de um cenário político adverso às políticas sociais e à participação popular. Durante esse período, fortaleceram-se o ultraconservadorismo e a centralização do poder, fenômenos que culminaram em significativos retrocessos nas políticas sociais, decorrentes da erosão dos princípios democráticos. E apesar de as eleições presidenciais de 2022 terem culminado na derrota de um projeto político contrário às instituições democráticas vigentes, o Brasil continua a enfrentar desafios políticos consideráveis e uma persistente instabilidade. A regressão nas cidades brasileiras – onde vivem 85% da população brasileira – é óbvia, atingindo a maior parte da sociedade na sua vida diária.
Por não terem alternativa, em grande parte dos domicílios urbanos, (em algumas metrópoles, a maior parte) vivem famílias que estão em situação ilegal, sem endereço, em situação de risco de enchentes e desmoronamentos, em territórios sem urbanização, sem infraestrutura, sem saúde, sem saneamento e sem equipamentos sociais e dominados por grupos armados. Parte significativa do orçamento familiar e da vida diária são perdidos nos transportes coletivos.
Às vésperas das eleições municipais de 2024, o momento é oportuno para resgatar a memória do ciclo virtuoso do poder local, jogando luz sobre a invisibilidade da realidade urbana e metropolitana; a importância do engajamento social-democrático na vida das cidades, do controle e do acompanhamento dos investimentos públicos. O ciclo virtuoso não foi sonho, não foi projeto de marketing, foi realidade vivida. Resgatar essa memória é trazer esperança à dura realidade que estamos vivendo. É reinventar a participação política e a democracia a partir da escala próxima.
Ermínia Maricato é arquiteta e urbanista, professora emérita da FAUUSP, foi Secretária Municipal de Habitação de São Paulo, coordenou a criação do Ministério das Cidades, em 2020 ganhou a Medalla de Oro da FPAA, Federación Panamericana de Asociaciones de Arquitectos, pesquisadora do INCT “Produção da Casa e da Cidade” e é membro da Rede BrCidades
Pedro Rossi é arquiteto e urbanista, membro pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia (INCT) “A Produção da Casa e da Cidade”, e do Laboratório de Habitação e Assentamentos Humanos da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (LABHAB-FAUUSP) e é membro da Rede BrCidades.
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O Estatuto das Cidades é ótima iniciativa que se tornou Lei Federal em 2001. Tem como finalidade a aplicação nas cidades com, salvo engano, mais de 20 mil habitantes, e ainda é uma excelente oportunidade de política urbana, mas quando chega o momento das administrações das administrações municipais assumirem as suas responsabilidades de fazer, quase nada acontece. Até hoje, eu tenho certeza que não existem cidades que se preocuparam com o Estatuto da Cidade.