O silêncio dos cúmplices, por Tania M. S. Oliveira

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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O silêncio dos cúmplices, por Tania M. S. Oliveira

No tempo veloz das redes sociais e da ignorância planejada da mídia sobre o que não interessa ser exposto, a seletividade é a norma. O mundo dos jornais, revistas e, sobretudo, da TV, permite-se descolado da realidade social de tal modo que, no Brasil, é permitido aos grandes meios de comunicação ignorar que há 23 dias 7 pessoas,militantes de movimentos populares, estão em greve de fome, pedindo que o Supremo Tribunal Federal paute uma ação que julga o princípio constitucional da presunção de inocência.

Seria chover no molhado se a poça fosse de água imaginar que a submissão de seres humanos a um sacrifício limite possa merecer um silêncio cúmplice e vil, como a dizer que suas vidas podem ser dispostas e sua dor pode ser enxergada como algo que se vê em uma vitrine, que não se precisa tocar, uma paisagem distante vista de uma janela, um pensamento que ocorre mas não se fixa como relevante. A poça, contudo, é de sangue.

 23 dias de fome de justiça.

A iminência de uma tragédia de vidas perdidas por uma causa que não lhes pertence individualmente – senão como cidadãos de um país que perdeu seus referenciais jurídicos e de democracia – possui algo de muito dramático que não diz respeito a eles, mas às autoridades a quem se dirigem, e que se recusam a recebê-los, bem assim aos donos dos meios de comunicação que lhes negam a publicização de seu sacrifício: torna-os cúmplices do desfecho qualquer que seja ele. Mostra a faceta de homens e mulheres de um país órfão de solidariedade, onde a vida está completamente banalizada.

23 dias de fome de liberdade.

Pedindo que a Suprema Corte cumpra com sua obrigação de fazer a prestação jurisdicional e julgue uma matéria. Um pedido obsceno não em si mesmo, mas pela necessidade de ser feito, exigido, miseravelmente solicitado, colocando a morte na contrapartida, com a mansa passividade de um martírio.

Como instrumento de luta, as greves de fome são historicamente consideradas como significativas formas de resistência e protesto político e social, desde Gandhi. Mulheres e homens fazem da ausência de uma necessidade vital à sobrevivência a marca de sua luta. No caso presente, no outro extremo, os destinatários da exigência firmam um silencioso e cúmplice pacto com os donos da comunicação: fingem não ver, não saber, não compreender, evidenciando um distanciamento inaceitável do outro, que coloca em questão a própria ideia de humanidade.

A Ministra Carmem Lúcia recebeu militantes, juristas e artistas em audiência no dia 14 de agosto de 2018, entre eles Frei Sérgio Gorgen, um dos grevistas. Disse-se sensibilizada pela pauta, comprometeu-se a visitar os demais. Não o fez e recusou-se a recebê-los ao ser solicitada.  Apareceu na redes no dia 20 de agosto, em um evento, cantando e dançando samba, com um grupo de mulheres que exercem altos cargos públicos e a cantora Alcione. Na aparente leveza de sua vida de eventos, não deixa transparecer o grande paradoxo entre o discurso e sua prática, que efetiva a legitimação do esquecimento. Esquecimento não apenas de uma pauta, uma promessa, mas do conteúdo humano que porta. Fora do foco, ela administra o mundo de um poder sombrio, sem pandeiro ou tamborim. As rimas são pobres e o ritmo se afina com o descaso com as reivindicações de uma sociedade, exposta à esquizofrenia de um sistema de justiça que nem mais se reconhece no nome. Falta colocar amor na cadência, como pedia Vinicius.

Lembrando o ator Osmar Prado em sua emocionante intervenção na reunião no STF: quantos mortos ainda serão necessários para que se tome uma atitude republicana e correta? Quantos suportaremos? Respondo eu: depende de quantos morram sem causar alarde. Depende do quanto de silêncio possa ser produzido pelo pacto mortal de vilania e ignorância, com a certeza da impunidade.

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

2 Comentários

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  1. Tânia Oliveira, meus parabéns

    Tânia Oliveira, meus parabéns pela matéria, bem apropriada ao momento em que nossos irmãos, homens e mulheres se postam diante de um prédio que é do povo, onde todos que lá trabalham, ou apenas dançam samba com uma maranhense também desavergonhada de um papel tão pequeno, justo Alcione, nascida num dos estados mais miseráveis da noso país. 

    Essas otoridades agem como se o dinheiro que embolsam ano a ano, milhões de reais, caíssem do céu, e, portanto, que esses militantes de um protesto tão justo, por demandar um direito do cidadão, nada representasse para eles, que, como se não bastassem silenciar ante fato tão comovente, ainda divulgarem um vídeo com sambas e danças com o fito, talvez certeiro, de tripudiar de nós outros, todos, que não podemos conceber uma farra tão grande com nosso dinheiro, e nosso patrimônio moral, de forma inimaginável a um país que se pretende respeitado.

    Acho que a palavra solidariedade já nem é tão bem aplicada ao caso, mas compaixão. A ausência de compaixão, ou de misericórdia ficam mais bem assentadas à essa gente inescrupulosa, ou nojenta.

     

  2. muito obrigado!

    Muito obrigado, Tania, por trazer esse assunto e por ter conseguido com o seu pungente texto a relevância para ser aqui publicado. Deveria ser dissemimnado em todos os locais de esquerda porque a deles é a nossa luta.

    A greve de fome seria pauta número um nos blogs progressistas, já que desconhecida e ocultada na grande mídia. Parece que a esquerda só vai tomar partido quando um dos nossos morrer de inanição.

    Há que se dar suporte aos guerreiros ignorados pelos entes públicos enquanto se canta samba e se locupletam.

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