Para além dos seis anos sem Marielle
por Carlos Tautz
Este 14 de março de 2024 chega com a inclusão dos nomes de Flavio Dino e Andrei Rodrigues ao rol de bravateiros no caso do assassinato de Marielle Franco e seu motorista Anderson Gomes. Dino, ex-Ministro da Justiça e hoje Ministro do Supremo Tribunal Federal, e Rodrigues, Diretor-Geral da Polícia Federal, ganharam seus minutos de fama prometendo aquilo que não poderiam cumprir: revelar os nomes dos mandantes do crime em uma determinada data.
Trata-se de mais uma peça de marketing político, agora em nível federal, no caso que é uma espécie de marco histórico da falência do Estado de Direito burguês no Rio de Janeiro. Nas entranhas deste ente federativo, há muito é impossível separar crime e legalidade, porque ambas as dimensões se amalgamaram completamente – e a evidente falta de vontade e de capacidade política da Polícia Civil e, em ligeira menor escala, também o Ministério Público estadual em chegar aos mandantes e às razões do crime confirmam que a instituição Estado do Rio de Janeiro não passa de ficção e que o poder real se impõe mesmo é no dia a dia e no meio da rua.
Agora, a cumplicidade explícita do sistema de segurança pública do Rio com o poder real que cometeu o crime duplo levou-nos a um beco sem saída. Após seis inexplicáveis anos sem respostas, muitas provas e testemunhas há muito desapareceram ou foram destruídas, de tal forma que somos reféns de uma suposta delação que o operador dos disparos Ronnie Lessa estaria negociando há meses com a PF.
Em verdade, este Ronnie – que é o, até agora, operador dos disparos fatais, miliciano de alto coturno e assassino requisitado pela Polícia, pela milícia e pelo Jogo do Bicho – tem os seus próprios investigadores nas mãos. Ele é praticamente a única grande fonte de informações sobre o crime duplo que maneja a tal delação de acordo com seus interesses.
Nós, que ainda desejamos conhecer os mandantes, somos todos reféns de Ronnie. Fomos condenados a esta condição pela leniência da Polícia Civil e do MP e pela estrutura do poder real do Rio a eternamente aguardar que cumprissem as suas funções precípuas os cinco sucessivos delegados que apuraram o caso, procuradores que se engalfinham em lutas internas e Governadores fluminenses que se apoiam em mais e mais mega chacinas de suas PMs para manter e conquistar apoio político.
Por ser uma enciclopédia de informações sobre a Polícia, a milícia e o Jogo do Bicho, e as relações destes com o poder político formal no Rio, Ronnie e somente Ronnie – um ex-membro do famigerado Batalhão de Operações Especiais da PM – hoje tem a capacidade de manejar a seu bel prazer as informações que possui. Mas, ele e a sua banda não são os únicos responsáveis por mais este aniversário do segredo de polichinelo e da revelação do mapa do poder real no Rio em que pode se transformar a resolução dos assassinatos de Marielle e de Anderson.
Não é possível deixar passar em brancas nuvens o papel que personalidades e instituições do campo democrático e popular jogaram nesse absurdo atraso de seis anos. Por que conhecedores profundos do esquema de poder real no Rio – como o ex-deputado estadual Marcelo Freixo, que presidiu a CPI das Milícias na Assembleia Legislativa do Rio em 2008 – sempre operaram para impedir que as investigações fossem federalizadas e retiradas das garras da Polícia Civil fluminense?
Por que até a família de Marielle foi convencida a entrar nessa estratégia e nunca concordou que uma comissão internacional acompanhasse as investigações, quando já no primeiro segundo após a revelação do crime era possível perceber que as instituições do Rio funcionariam como sempre e não levariam adiante as investigações que tinham o condão de desnudar o hibridismo entre legalidade e ilegalidade que estrutura o poder real nesse estado?
A reação dessas personalidades à federalização do caso foi tão forte que, em 2020, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), por unanimidade, negou o pedido da então Procuradora-Geral da República, Raquel Dodge, para passar à esfera federal a investigação sobre os assassinatos.
Numa prova de que nunca sequer se importou em entender as circunstâncias do crime, a relatora do pedido de federalização – que tecnicamente é chamado de “incidente de deslocamento de competência” -, a hoje ministra aposentada do STJ Laurita Vaz, cometeu isso aqui em seu parecer sobre o assassinato, que àquela altura já havia se passdo há mais de dois anos:
“Não há sombra de descaso, desinteresse, desídia ou falta de condições pessoais ou materiais das instituições estaduais encarregadas de investigar, processar e punir os eventuais responsáveis pela grave violação a direitos humanos. Ao revés, constata-se notório empenho da equipe de policiais civis da Delegacia de Homicídios e do Grupo de Atuação Especial de Repressão ao Crime Organizado (Gaeco) do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro”.
Todos os interessados no crime se regozijam até hoje só de lembrar das palavras de Laurita.
E daqui para a frente? Quais serão as consequências para a Polícia Civil da eventual resolução do crime por parte da PF, o que demonstra de forma cabal a falta de desejo político dos governos do Rio desde 2018 em solucionar o caso que foi o crime político de maior repercussão no Brasil desde que a extrema-direita explodiu uma bomba no Riocentro em 1981?
Ressalte-se que, se o crime for um dia solucionado, terá sido com a PF entrando no caso cinco anos após o sumiço de provas e até de testemunhas oculares, que foram descobertas há anos não pela Polícia, mas pelo empenho pessoal da repórter Vera Araújo.
Foi ela que publicou em O Globo a existência das testemunhas, após a Polícia Civil não se ter interessado por esta pista e dezenas de PMs que lotaram a cena do crime apenas minutos após o assassinato terem enxotado dali muitas testemunhas em potencial.
Mais ainda. Se confirmada a participação no mando do crime de Domingos Brazão, hoje Conselheiro de Contas do Tribunal de Contas do Estado, como ficarão as alianças políticas entre a organização criminosa chefiada por ele e o atual prefeito do Rio, Eduardo Paes, favorito à reeleição em novembro ?
Carlos Tautz – Jornalista e doutorando em História Contemporânea na Universidade Federal Fluminense
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