Do Brasil de Fato
Congresso tem 101 propostas antiaborto em tramitação; pelo menos 20 surgiram após polêmica sobre ‘PL do Estupro’
Por Cristiane Sampaio
O Congresso Nacional tem atualmente 101 proposições legislativas que buscam diminuir possibilidades do aborto legal na legislação brasileira. Pelo menos 20 das propostas foram protocoladas após a ampla campanha de rejeição popular contra o Projeto de Lei (PL) 1904/2024, que equipara a pena para a prática àquela aplicada ao crime de estupro, apelidado de “PL do Estupro”. A Câmara dos Deputados é o maior foco do problema, sendo o palco atual de 90 das 101 propostas. As demais tramitam hoje no Senado. O levantamento é do Centro Feminista de Estudos e Assessoria (Cfemea), que acompanha com atenção o debate sobre o tema no Legislativo.
A lista de propostas mapeadas pela organização contém não apenas PLs, mas outros tipos de medidas, como projetos de decreto legislativo (PDLs) e propostas de emenda constitucional (PECs). Todas miram pontos que de alguma forma levariam o Estado brasileiro a rever as garantias legais já asseguradas atualmente. O arcabouço jurídico nacional permite o aborto em três situações específicas: casos de gravidez gerada após estupro, fetos anencéfalos e quando há risco de vida para a mãe.
A assessora técnica do Cfemea, Clara Wardi, destaca a preocupação com o PL 2499/2024, de autoria de 35 deputados, sendo uma parte deles coautores também do “PL do Estupro”. A proposta fixa para a rede de saúde a obrigatoriedade de notificar a polícia quando houver interrupção da gestação decorrente de estupro. O projeto cita que essa competência precisaria ser absorvida por “hospitais, clínicas, unidades básicas de saúde, profissionais de saúde e demais serviços de saúde”. Os autores do PL argumentam, no texto, que a medida ajudaria a “identificar e combater os crimes sexuais”.
“Esse tipo de proposta vinha sendo apresentado antes mesmo do governo Bolsonaro, por exemplo, e já veio na forma de portaria na gestão dele. Depois ela foi revogada, no início do governo Lula, e agora reaparece em forma de projeto de lei. Esse PL aponta para uma possível nova estratégia de ofensiva da extrema direita em torno da pauta do aborto”, comenta Clara Wardi, ao mencionar a repetição de coautores entre o PL 1904 e o PL 2499.
Além do PL 2499, o rol de medidas inclui uma série de outros PLs que obrigam o registro de Boletim de Ocorrência (B.O.) para profissionais de saúde em situações do tipo. “Essa proposta tem um viés policialesco muito forte. Ela mais prejudica e afasta as vítimas [de estupro] dos serviços de saúde do que protege”, afirma a assessora técnica do Cfemea.
“E o texto ainda prevê obrigação para os profissionais de saúde de preservarem o feto e o material genético embrionário para serem colocados à disposição da autoridade policial e judiciária e possibilitar a perícia genética ou prova de paternidade. Esse PL é uma violência imensa com as mulheres, que podem ter a sua palavra colocada sob dúvida em relação à ocorrência de estupro, e ainda submete essas mulheres a um processo muito violento junto ao agressor”, emenda Clara Wardi. A especialista ressalta que esse tipo de medida “revitimiza as vítimas de estrupo que estejam precisando acessar o aborto legal”.
A ideia de fixar registro de B.O. ganhou destaque no cenário da discussão sobre o aborto principalmente nos últimos meses, durante a campanha de reacionários favoráveis ao PL do Estupro. A defesa desse ponto foi feita nas mídias sociais pela esposa do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), Michelle Bolsonaro. O Cfemea argumenta que a imposição de boletim de ocorrência significa mais uma barreira institucional para dificultar o acesso de vítimas de estupro ao aborto legal. “Isso reflete a preocupação histórica da extrema direita com o punitivismo em relação à violência sexual e aponta para falta de atenção às vítimas nesses momentos críticos de necessidade de saúde, como é o momento de um estupro, por exemplo. Querer que as vítimas apresentem o B.O. é afastá-las dos serviços de saúde”, interpreta Wardi.
“Direito à vida”
Um outro destaque da lista de propostas antiaborto é a PEC 29/2024, que altera a Constituição Federal para considerar como “marco temporal de início da vida humana” a concepção [do feto], considerando esta como a “junção do gameta masculino e o feminino, ocorrida durante a fecundação”. A medida reedita uma série de outras proposições de abordagem similar que já convulsionaram os debates no Legislativo federal em outros momentos. “Nada mais é do que a velha estratégia da extrema direita e dos antiaborto de incluírem na Constituição que a vida deve ser protegida desde a concepção. E nós temos outros, muitos outros desses também apresentados”, reforça Clara Wardi.
Por se tratar de uma proposta de emenda constitucional, a medida não precisaria ser submetida à avaliação do chefe do Executivo caso seja aprovada, já que PECs não necessitam do crivo do presidente da República e por isso não estão submetidas ao risco de veto. Elas são promulgadas e publicadas pela mesa diretora do Congresso Nacional. A PEC 29 é assinada por mais de 180 parlamentares homens e mulheres, sendo eles dos segmentos da direita liberal e da extrema direita. A assessora do Cfemea classifica essa como sendo uma proposta “de altíssimo risco” porque, caso eventualmente aprovada, teria como consequência prática a proibição do aborto em todas as circunstâncias já permitidas no país.
Rota
Para a assessora do Cfemea, o surgimento de novos PLs antiaborto mesmo após o revés sofrido pela ala reacionária da Câmara com o PL do Estupro aponta para uma tentativa de desenhar estratégias para reinventar a rota rumo à cassação dos direitos reprodutivos das mulheres. Ela também vê na empreitada uma iniciativa de demonstração de força por parte do grupo.
“Acho que é uma tentativa também de mostrarem que não se constrangeram com os debates, por isso a demonstração de força numa proposta com mais de 180 parlamentares assinando. E acho que foi também uma tentativa de, mais uma vez, selar alianças internas [entre eles], já que, diante de todo o debate sobre o PL 1904, isso se desestruturou um pouco e pode ter havido certa insegurança de alguns parlamentares lá dentro [em defender a proposta]. Houve, por exemplo, a retirada de assinatura de uma das deputadas que assinavam o PL 1904”, resgata Clara Wardi, ao mencionar a repercussão negativa do PL do Estupro.
“Isso demonstra um passo atrás [por parte de alguns parlamentares], mas, mesmo assim, ver que tantos outros deles entraram também como autores de outros projetos do tipo é algo que nos mostra que os parlamentares conservadores não darão passo atrás dentro dessa pauta na Câmara dos Deputados nem no Senado.”
Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.
Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.