
Soberania dá trabalho
por Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva
Em 1984, dei uma palestra acerca do relacionamento entre Brasil e Estados Unidos no Rotary Club de Down Town Manhattan. Fui cáustico na medida em que a diplomacia me permitia. Na seção de perguntas, um empresário disse que já tinha estado inúmeras vezes aqui e completou dizendo “I quite don’t understand why brazilian people insist in giving themselves such a low profile” (Não entendo por que os brasileiros insistem em se rebaixar). Eu respondi que os britânicos estiveram no poder na Índia enquanto os indianos se sentiam inferiores e que a plateia entendesse como quisesse. O que me causa espanto até hoje é que a esquerda assimilou esse hábito de se rebaixar e isso transparece em inúmeras afirmações rotineiras.
A primeira delas é que o Brasil é o país em que mais se matam homossexuais no mundo. Morrerem pessoas por causa de sua condição não se pode transformar em números. Um que seja morto por ser o que é já traduz falta imperdoável de humanidade coletiva. Ocorre que somos mais de duzentos milhões de habitantes e não nos podemos comparar, por exemplo, com Cuba, que possui somente onze milhões. Para se confiar num ranking desses, seria preciso que houvesse uma estatística confiável a esse respeito. Em outras palavras, seria preciso que houvesse um senso que discriminasse a natureza sexual de todos os cidadãos do mundo, supondo que todos os homossexuais estivessem dispostos a declarar sua condição. Depois disso, teríamos de elencar os países em ordem decrescente de homossexuais em função da população total, finalmente, chegar ao número de homossexuais assassinados por serem homossexuais a cada mil cidadãos homossexuais de todos os países do mundo para poder afirmar em que posição o Brasil está no ranking. Mesmo assim, não seria muito confiável porque seria preciso que todos os países tivessem o mesmo entendimento da causa dos assassinatos. Inculcar esse demérito como verdade absoluta pode visar a fortalecer a autodepreciação.
Outra afirmação recorrente é que o Brasil foi o país que mais escravizou no mundo. De fato, é muito provável que tenhamos sido o principal destino de africanos escravizados no mundo, mas não o país que mais escravos negros tenha tido, seja em relação à população total, seja em relação ao território. O Haiti, por exemplo, chegou a ter quatro escravos para cada cinco habitantes e não se tem notícia de que o Brasil tenha ultrapassado a relação de 1/3. Claro que esses números não passam de estimativas grosseiras porque houve uma escravidão indígena que não ocorreu, por exemplo, nos Estados Unidos. O número de africanos escravizados era preciso durante o período colonial, pois o tráfico era controlado por Portugal, no que se chamou de “comércio triangular”. Depois da independência e depois de a Inglaterra ter “proibido” o tráfico com anuência dos países da América a coisa virou um tremendo contrabando, só amenizado pelos indivíduos enviados do Nordeste para o Sudeste devido à decadência do açúcar.
Também não é verdade que o Brasil tenha sido o último país a abolir a escravidão. Pode ter sido o último a abolir por decreto nas Américas, mas não o último no mundo. Portugal continuou praticando esse crime até à proclamação da república em 1910, especialmente nos seus territórios insulares como São Tomé e Príncipe. Já a Austrália só deixou a prática no início da I Guerra, em 1914. O fato é que a formalização da abolição não implicou em que todos os cidadãos trabalhadores tenham passado a receber salários no mundo inteiro. No quesito do combate ao trabalho análogo à escravidão, o Brasil é campeão, fato que a mídia simplesmente ignora.
Essa insistência na autodepreciação é que faz enfatizar os termos Brasil e brasileiro sempre que algo negativo acontece. É isso que leva a anunciar que “Um avião brasileiro caiu no Cazaquistão” (24/12/2024), ao passo que ninguém diz que “Um avião americano caiu em Gramado” (21/12/2024). Enquanto vigorar essa autodepreciação, de direita ou de esquerda, não se almejará a soberania neste país.
A soberania dá muito trabalho. Ela obriga a olhar para dentro e resolver por conta própria as mazelas de sua sociedade. A soberania requer que se estabeleçam e se protejam fronteiras físicas e informacionais. A soberania exige que se pense primeiro no próprio povo, depois no resto do mundo. Ser soberano é, portanto, sinônimo de ser adulto e isso requer muito esforço de um povo com complexo de Peter Pan.
Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva é economista, estudou o mestrado na PUC, pós graduou-se em Economia Internacional na International Afairs da Columbia University e é doutor em História Econômica pela Universidade de São Paulo. Depois de aposentado como professor universitário, atua como coordenador do NAPP Economia da Fundação Perseu Abramo, como colaborador em diversas publicações, além de manter-se como consultor em agronegócios. Foi reconhecido como ativista pelos direitos da pessoa com deficiência ao participar do GT de Direitos Humanos no governo de transição.
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Que coisa idiota, meu Zeus.
Sob um (falso) argumento de que o Brasil é o Brasil por causa da sua (auto) depreciação, o autor infere que a saída é a super apreciação.
Resolver os problemas para alcançar um nível civilizatório?
Nem pensar.
É uma guerra de versões.
Basta espancar números ali, mandar cartões de condolências para as famílias dos 30, 40 mil pretos e pobres mortos por PAF, e pronto!
Quem sabe criar abrigos para aproveitar as crianças frutos dos estupros, e assim não perdermos esse bônus demográfico?
Não fale de números, mas pergunte a uma mulher como ela se sente andando pelas ruas de qualquer cidade média ou grande nesse país…
Pois é…chilique dessas mulherada né?
Baixando a nossa moral de campeões mundiais de virilidade violenta…
Palmo a palmo a disputa com a Índia, mas temos dado o melhor de nós…
Ah, desigualde? Índice Gini?
Nada…
É uma questão de perspectiva, pois quanto mais desigual maior a chance de progresso, já que França, Holanda ou Noruega não têm muito mais pelo que lutar, né mesmo?
Alguns países menos desiguais estão padecendo de suicidios em grande número…
A pobreza e desigualdade atiçam nosso instinto de sobrevivência e inventividade…
A necessidade faz o sapo pular…
Estão vendo?
A Faria Lima só quer nos dar a vara.
O rio secou?
Cadê sua imaginação soberana?
É Nassif, mais um para o time…
Fornazieri, aquele economista (coach)que acha que o mercado não é mau, nos é que não sabemos poupar, e agora esse…
Ufanismo da miséria ou miséria do unfanismo?
Interessante como as pessoas ficam abespinhadas quando se usam argumentos não pertencentes à consciência coletiva, ou, como se diz hoje, “main stream”. Quem infere minhas inferência é você. Estou evidenciando que a autodepreciação interessa, como sempre interessou, aos dominantes. Um ser humano só aceita ser escravizado se lhe for inculcado ser inferior, se for convencido de que merece sua condição por pior que seja. Quando não se aceita a pecha de inferioridade, levanta-se a cabeça e resolve os problemas, em vez de conformar-se com ser pior que o resto da humanidade. Estão aí zumbi dos Palmares, João Cândido e muitos outros, inclusive Lula, que não me deixam mentir. São todos exemplos de que não se podem aceitar os epítetos que nos impõem os dominadores. Quando voltei da minha primeira viagem aos países árabes, fiquei extasiado ao chegar a Paris e meus companheiros perguntaram por quê. Respondi: “Estou vendo mulheres, muitas mulheres pelas ruas”. Então, posso aceitar que nos digam que o Brasil é o país onde se comete o maior numero de feminicídios do mundo? E os sequestros em massa na Nigéria? Será que os talibãs consideram matar mulheres por serem mulheres como crimes tipificados? Você sabe como os mongóis tratam os homossexuais? Se você sabe, conte-me porque eu não sei. Se você souber se os hinuit pararam de sacrificar as meninas enquanto não nascesse um menino, a ponto de haver sete homens para cada mulher naquela sociedade, conte, pois essa notícia ainda não me chegou. Para ficar bem claro, reconheço todas as mazelas de nossa sociedade e não descanso enquanto não as vir resolvidas, mas, como dizia Cyrano de Bergerac , “Eu posso falar de mim, mas não aceito que os outros falem de mim”.