Sobre Ryan e a nossa apatia diante da violência
por Samira Bueno Nunes
Amigas e amigos,
segue aqui um desabafo de alguém que se vê tentando expressar em palavras a angústia vivenciada hoje.
Passava um pouco das 5h da manhã quando um grupo de entidades da sociedade civil saiu da Av Paulista em direção a Santos. Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Conectas Direitos Humanos, Instituto Sou da Paz, Mães de Maio, Instituto Herzog, CDHEP, Amparar, Rede de Proteção e Resistência contra o Genocídio, Comissão Arns e provavelmente alguns parceiros que esqueci de aqui citar. Chegando à Baixada, encontramos ainda o Claudinho, ouvidor das Polícias, e as parlamentares Paula Nunes e Ediane. Suplicy estava representado por sua assessoria. O destino? O Velório de Ryan da Silva Andrade Santos, de 4 anos, morto após uma incursão da Polícia Militar no Morro do São Bento.
A morte de uma criança, em qualquer circunstância já é devastadora. Mas uma criança que morreu com um tiro de fuzil enquanto jogava bola em frente à sua casa com os irmãos e amigos é ainda mais brutal. Em coletiva de imprensa, o porta voz da PMESP admitiu que o tiro que matou Ryan provavelmente saiu da arma de um policial.
A história ganha contornos ainda mais fortes porque parte do nosso grupo já conhecia a Beatriz, mãe do Ryan. O marido dela, Leonel, deficiente físico que dependia de muletas para caminhar, foi morto durante a operação Verão no mesmo morro. Nós a conhecemos em uma missão no meio do feriado de carnaval. Lá estava ela, com um documento da Santa Casa atestando o óbito do marido, tentando dizer que não havia como ele trocar tiro com a polícia usando muletas. Em 9 meses, Beatriz perdeu o marido e o filho caçula, ambos mortos pela Polícia Militar do Estado de São Paulo.
Eu não quero aqui falar da responsabilidade da PM, de protocolos não cumpridos, de regras e procedimentos ignorados. Também não quero tratar da omissão do Ministério Público e do Procurador Geral de Justiça, que aparentemente vê com naturalidade a morte de uma criança de 4 anos a partir da ação de agentes do Estado. Eu quero falar do que ouvi das crianças que ali estavam para homenagear Ryan.
João, o irmão mais velho, 10 anos, me contou que eles estavam jogando futebol e a bola tinha caído numa casa do outro lado da rua. Ele correu para pegar quando ouviu os tiros e disse “daí eu me joguei no chão, no meio do mato”. Eu perguntei a ele porque ele tinha se jogado no chão ao ouvir tiros, ao que ele respondeu “porque é assim que a gente faz quando tem tiroteio, tia”. Uma criança não deveria ter que saber lidar com esse tipo de situação. João se sente culpado pela morte do irmão. Acha que se o tivesse levado junto buscar a bola, a história seria diferente. Já Manu, 7 anos, também irmã de Ryan, fez questão de descrever em detalhes como ficou a barriga do irmão após ter sido atingido por um tiro de fuzil. As demais crianças, primos e amigos, contavam histórias sobre o amigo morto enquanto comiam um sanduíche.
É nesse contexto que milhares de crianças das periferias de São Paulo estão crescendo. E ninguém aqui é ingênuo a ponto de dizer que não existe a presença de crime organizado em muitos destes territórios. Não se trata de ignorar que a ação do crime ameaça inclusive a vida de policiais. Mas não é possível fingir indiferença quando crianças estão crescendo neste ambiente. Não é possível que nós, como sociedade, achemos normal que uma criança de 4 anos morra com um tiro de fuzil desferido por um agente do Estado. Que isso seja objeto de meia dúzia de notícias de jornal e a vida siga, como se estivesse tudo bem.
A angústia hoje não é apenas com a dor da Beatriz e de sua família. É também com a nossa apatia crescente diante de tanta brutalidade. Justifica-se uma violência pela outra, numa espiral que não parece ter fim.
Hoje enterramos o Ryan. Em março foi a Edneia, mãe de seis filhos. Em março morreu também o PM do COE, Rahoney de Paula Vieira, que curiosamente estava na ocorrência que matou o pai de Ryan. O PM estava de moto, na folga, quando foi confundido com um suspeito de roubo e morto por colegas policiais militares.
Enfim, este é um desabafo num dia que parece não ter fim. E em que não é possível pensar em nada mais do que a imagem de uma criança de 4 anos dentro de um caixão.
Desculpem a msg imensa, é mesmo um desabafo.
Abs
Samira
Ps: a foto foi tirada por mim, durante o enterro
Samira Bueno Nunes – Graduada em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo e Mestre em Administração Pública e Governo pela FGV-EAESP. Diretora-executiva da ONG Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
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