Uma cidade mais inclusiva para pessoas com deficiência auditiva

Por Marianne Pinotti

Daniela é surda de nascença e está grávida pela segunda vez em um curto intervalo de tempo. A primeira experiência não foi positiva e as complicações levaram a um aborto espontâneo. O trágico fato a deixa ainda mais apreensiva em cada consulta pré-natal. Ela quer saber em detalhes quais os cuidados precisa tomar e as orientações a serem seguidas. O problema é que Daniela não compreende perfeitamente o que a médica lhe diz e o mesmo acontece com o que ela tenta transmitir à ginecologista. Alguns podem pensar, em uma análise superficial, que a culpa desta barreira de comunicação está na surdez de Daniela. Uma análise mais correta e condizente com a Convenção da Organização das Nações Unidas – ONU revela, porém, que a deficiência se manifesta quando há barreiras que impedem a participação plena e efetiva da pessoa na sociedade em igualdades de condições com as demais. No caso de Daniela e de outras 120 mil pessoas com deficiência auditiva, surdas e surdocegas que vivem na cidade de São Paulo, a acessibilidade comunicacional é tão imprescindível quanto uma rampa para uma pessoa em cadeira de rodas entrar em um ambiente.

Quando falamos de serviços públicos, a barreira na comunicação afeta diretamente o acesso do cidadão aos direitos que ele possui e aos bens e oportunidades que a cidade oferece. É o caso da Marcela, que precisa da Defensoria Pública para representá-la em uma ação civil. Ela, que também é surda, necessita explicar em detalhes para o defensor a sua versão sobre o fato que gerou o processo judicial. A mesma dificuldade se repete com Rubens, que se comunica apenas na Língua Brasileira de Sinais – Libras e precisa resolver pendências com a Subprefeitura da sua região. Em todas essas situações, se não houver uma mediação entre o surdo e o atendente do serviço público, o diálogo será prejudicado, podendo, inclusive, reforçar a exclusão. Para não chegar a este limite, a maioria das pessoas com alguma deficiência auditiva se vê obrigada a pedir que um amigo ou um familiar a acompanhe. O problema é que, na maioria dos casos, este mediador também não é fluente na língua de sinais e o conteúdo ao invés de ser transmitido em detalhes, acaba sendo resumido para uma mínima compreensão. E há aqueles que não têm com quem contar, como a Rachida, surda, casada com outro surdo e com um único filho, o Diego, também surdo. Sempre que ela precisa ir a uma consulta em uma unidade de saúde, o nervosismo toma conta e se transforma em drama quando percebe que o médico não a compreende.

Felizmente, desde o mês de setembro, a história de vida dessas pessoas e de tantas outras na mesma situação começou a mudar. A Prefeitura de São Paulo, por meio da Secretaria da Pessoa com Deficiência e Mobilidade Reduzida, inaugurou a Central de Interpretação de Libras, a CIL.  O serviço, inédito por aqui, é uma resposta a reivindicações históricas da comunidade surda e cumpri uma das metas do prefeito Fernando Haddad para esta gestão. Com apoio do governo federal e com investimento inicial de R$ 6,9 milhões do orçamento municipal, a CIL realiza a mediação na comunicação de qualquer pessoa surda, surdocega ou com deficiência auditiva em serviços públicos instalados na capital, sejam eles municipais, estaduais ou federais. São 21 intérpretes de Libras e guias-intérpretes que atendem esta população em três modalidades.

Na presencial, o solicitante se dirige pessoalmente à CIL (na sede da Secretaria Municipal da Pessoa com Deficiência) para que um profissional o auxilie no agendamento por telefone para atendimento em algum órgão público, por exemplo.

Na modalidade in loco, a qual tive a oportunidade de acompanhar com as pessoas que citei acima, um intérprete ou guia intérprete – se a pessoa for surdocega – acompanha o solicitante diretamente no serviço público em que ele necessita de atendimento. Foi assim que vi de perto a Daniela e a ginecologista se emocionarem por estarem, pela primeira vez, estabelecendo um diálogo profundo e necessário para a consulta pré-natal, ainda mais em uma gravidez de risco. A Marcela conseguir, com a ajuda do intérprete, explicar ao defensor público o que havia acontecido e entender os procedimentos que seriam adotados na ação judicial. O Rubens finalmente resolver suas demandas com a Subprefeitura e a Rachida com seu filho Diego saírem muito mais tranquilos da consulta médica porque, finalmente, entenderam o que o médico disse.

A CIL oferece ainda o atendimento virtual quando não há necessidade da presença física do intérprete. Graças a uma tecnologia inovadora na América Latina e utilizada apenas em outros 14 países do mundo (Incluindo Suécia, Japão e Estados Unidos), qualquer pessoa com um smartphone ou tablet com acesso à internet pode ter a CIL na palma da sua mão. Baixando o aplicativo da Central, a pessoa surda ou com deficiência auditiva pode se conectar ao intérprete usando o vídeo ou texto e este faz a tradução em voz para o atendente do serviço público. O mesmo pode ser feito por meio de computador. Serão também instalados totens em equipamentos municipais (a começar pelas Subprefeituras) para oferecer esta modalidade para aqueles que não possuem dispositivos móveis. O aplicativo permite, por exemplo, que um surdo, ao precisar chamar uma emergência médica, se conecte em vídeo com o intérprete da CIL e este fará a ligação para o SAMU. As possibilidades desta tecnologia são enormes, funcionando também para auxiliar surdocegos que utilizam displays (semelhantes a um teclado) em braile conectados ao celular.

Pelo tamanho da população de surdos, surdocegos e pessoas com deficiência auditiva que mora em São Paulo, trabalhamos durante dois anos para oferecer o melhor serviço possível e que atendesse às necessidades de uma demanda enorme, superior à população total de muitas cidades, com toda a complexidade que a maior cidade do país possui. Viajei para alguns países que já enfrentaram este desafio e encontrei na Suécia a tecnologia que necessitávamos para o atendimento virtual. Além disso, a CIL de São Paulo é a única do país a atender também os surdocegos.

Quando ampliamos a inclusão de pessoas com deficiência melhoramos a vida de todos que compartilham a mesma cidade. A convivência com as diferenças traz uma visão de mudo enriquecedora e contribui para a quebra de paradigmas e o fim do preconceito.

Nos primeiros dias da atual gestão, o prefeito Fernando Haddad se reuniu com todo o seu secretariado e nos deu a missão de trabalharmos duro para construirmos uma cidade mais humana e acolhedora. E tenho a plena convicção que a CIL está fazendo isso com a inclusão de milhares de pessoas que, por muitos anos, estiveram à margem das políticas públicas.

Marianne Pinotti, 48, é secretária da Pessoa com Deficiência da Prefeitura de São Paulo

Redação

3 Comentários

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  1. E blogs mais inclusivos?

    Por exemplo, se um surdo visita o blog, embora não possa ouvir uma música postada, pode (se enxergar e souber ler) pelo menos apreciar  a letra da música, se esta ou um link estiver por lá, não é?

    Não sei se para cegos haveria algum programa de leitura (ou de comando, via audição)  de blogs, não conheço. Alguém já ouviu falar?

     

     

  2. Parabéns

    Belíssimo trabalho, Marianne. Parabéns.

    No futuro este trabalho poderia ser ampliado para ser oferecido também em serviços de lazer e cultura na cidade, como passeios turísticos e visita a museus, por exemplo.

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