Crivella e o desmonte da saúde, a saga. Por Dr. Luiz

Já em 2018 começou o Estado de Terror, usual em qualquer governo de extrema-direita fundamentalista que se preze

Foto O Globo

Crivella e o desmonte da saúde, a saga

por Dr. Luiz

Você não sabe da minha alegria ao saber que o povo não acredita mais em pedofilia nas escolas, em usos repugnantes do nome de Jesus em vão e em bolsonaros. O povo só tem a certeza de que a Márcia existiu, de que pagou todos os centavos para os Guardiões do Crivella e de que sentiu na pele o corte de mais de 200 equipes de saúde da família realizadas sob a máxima de “cuidar das pessoas”, a ironia mais perversa que já ouvi.

Em 2017 nós o fizemos recuar do plano de cortes na Atenção Básica com uma greve de profissionais de saúde, que há 30 anos o Sindicato dos Médicos não via igual. Tive o prazer de tocar e cantar na festa do coletivo Nenhum Serviço de Saúde a Menos no Largo da Prainha, fizemos uma canção sobre o secretário de saúde à época, o irmão do vereador, segue um trecho, pois você não teve a felicidade de ouvir:

Botei o meu irmão pra governar
Porque queria salvar o bispo
A câmara não é universal
Mas o interesse é particular

Vai viajar
Pra gente tomar conta daqui
O Rio de Janeiro tá ficando dodói 
E a gente cada vez mais infeliz

Minha clínica não é familiar
Já que eu prefiro montar hospício
O meu objetivo é cobrar
A consulta pelo plano popular

Cristo redentor
Eu tenho piedade de ti
Tem muita gente usando o teu nome em vão
Pra aumentar o tempo da internação

De lá pra cá, o Rio ficou mais dodói e a gente cada vez mais infeliz.

Já em 2018 começou o Estado de Terror, usual em qualquer governo de extrema-direita fundamentalista que se preze, chegou o momento em que qualquer postagem contrária ao seu governo nas redes sociais era motivo de demissão. Entretanto, a sua incompetência e a dos seus é tamanha ao ponto de, devido a uma postagem, demitirem o filho do autor do livro didático mais importante da Medicina de Família e Comunidade, que hoje em dia também é um dos organizadores. Para quem é médico, é como se demitissem o Harrison de uma enfermaria de Clínica Médica.

Perdão, Sófocles, mas você errou ao dizer que a ignorância é um mal invencível, a ignorância perdeu em todas as zonas eleitorais.

Crivella, queria que você estivesse na minha reunião de equipe no final de 2018 mirando atentamente os olhos de desespero daquelas agentes comunitárias de saúde quando souberam que o seu governo decidira demitir 2 agentes, de um total de 6, de cada equipe de saúde da família do Rio de Janeiro inteiro. Entretanto, um segundo ataque viria a nos nocautear, já estávamos zonzos nas cordas. Na calada do reveillon de 2019, quando todo mundo achava que esta história de corte de equipes inteiras não iria sair do papel, zapt!, navalha na carne. E o pior, deixando os milhares de cadastrados de cada equipe aniquilada ainda pertencentes à Clínica, ou seja, sobrecarregando os profissionais sobreviventes, que já estavam de língua pra fora.

“ – Vingança, Senhor!”, empapuçado de ódio, jugulares ingurgitadas, luzes vermelhas, gargalhada diabólica. Era sim que eu o imaginava bradar ao lembrar de cada manifestação nossa de 2017. Pois é, perdão pelo clichê.

Na real, cavava a sua própria cova do esquecimento, silêncio absoluto pela eternidade. Sem coragem de admitir que estava transferindo o recurso da Atenção Básica para investir na publicidade cafona da sua campanha de reeleição, colocou o secretário da Casa Civil à época para explicar à imprensa o porquê da maldade explícita e incoerente. A perversidade era tamanha ao ponto de na coletiva de imprensa a apresentação tenha se dado com slides de aulas de matemática da 5a série, com copos de água cheios e vazios explicando uma aritmética da mediocridade de como foi “inevitável” cortar do setor mais precioso de um sistema de saúde.    

Agora atenho-me ao sentido da frase “eu quero cuidar de você” . Depois de 4 anos sendo médico de Clínica da Família sob o seu mandato, pude sentir no cotidiano o quanto o povo rapidamente compreendeu a cilada e descobriu que você se referia ao antônimo do verbo cuidar: desprezar, negligenciar, maltratar. Quando você cortou a minha equipe, eu tentei. Consegui os dados objetivos: era a equipe com o maior número de casos de tuberculose da clínica, de pessoas acamadas, 53!, a equipe com a maior quantidade de sofrimento psicossocial, e com um maior pedido de renovação de receitas. Por fim, a única equipe com cadastramento ativo diário, ou seja, todos os dias chegavam novos usuários da área pedindo cadastramento, não esperavam os agentes comunitários de saúde irem às suas residências. Fiz uma carta na época aberta à população, corri ao conselho distrital de saúde na última esperança de que a representação popular nos salvasse. Dei com um burros n’água, acredita?! Nem o conselho, o precioso espaço de participação social no SUS, quis ler a carta. Exato, entoavam os seus hinos. Unissonamente.

Mas… vamos a Jesus!

O filho do pobre camponês nasceu na Galiléia, e você sabe muito bem o que era ser um “galileu” na Palestina do século I dC: um sinônimo de rebelde. Nem o próprio Salomão, nem Herodes conseguiram “domar” os galileus, um povo sempre resistente às invasões, ao pagamento de impostos romanos abusivos e contrários à exploração pelo trabalho forçado. Assim como vários galileus revolucionários, a punição para Jesus foi a crucificação, uma pena claramente vinculada ao crime de sedição, sublevação contra a autoridade instituída, no caso, o Império Romano. A relação desse inconformismo com as regalias dos sacerdotes do Templo de Jerusalém e com a aristocracia judaica se torna frequente nos evangelhos “Bem-aventurados os pobres, pois o Reino de Deus é de vós” (Lucas 6:20), “As vossas riquezas estão apodrecidas, e as vossas vestes estão roídas pelas traças.” (Tiago 5:2). Juntando-se a este fato e, tendo-se como a base de todo o ensinamento cristão, o amor, como a arma mais poderosa do que qualquer espada romana. Pergunto-me: a que Jesus você se refere?

Escrevo-lhe em meados de dezembro de 2020 e após o 2o turno aconteceu o óbvio: pela enésima vez você atrasou o salário de todos os trabalhadores da saúde, o que foi nosso cotidiano em 2018 e 2019. E não foi o único atraso na pandemia, além disso teve os débitos injustificados referentes ao ponto eletrônico e a falta de materiais. Estamos há semanas sem toner para impressora.

Mesmo pós pandemia, ano eleitoral, você teve a capacidade de fazê-lo. No entanto, agora parece ser o grand finale dos requintes de crueldade: no último mês do ano mais cruel nos últimos 100, justamente no repique da onda de Covid-19, quando temos uma lotação de 91% dos leitos de UTI públicos do município, no mesmo período em que você assina o decreto de um novo Código de Ética para o funcionalismo público, em que proíbe o trabalhador de criticar na imprensa ou redes sociais, podendo sofrer sanções administrativas e, por fim, o atraso de salário se dá próximo a uma data muito simbólica, o Natal. Exatamente quando o mundo comemora o nascimento daquele cujas palavras você tem o prazer de distorcer.

Contudo, senhor quase-ex-prefeito, espero que seja o último mês que a nossa querida cidade do Rio de Janeiro precise sorver a amarga ironia de alguém querer “cuidar das pessoas” e, de agora em diante, independente de quem chegue, os cariocas tenham a certeza de que a única opção é a de se cuidarem, de mãos dadas.

Dr. Luiz – pseudônimo de um mfc perto de você #EuPassarinho!

Redação

0 Comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador