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Higienização do espaço como política de estado e saúde mental
por Marcelo Karloni
Efeitos do desalento urbano na coesão social e ideação suicida na periferia
O acesso à saúde é considerado uma variável determinante na qualidade de vida das populações, tanto do meio urbano quanto rural. É indicado também, por variada produção acadêmica, como dimensão fundamental na mensuração da pobreza e da desigualdade em seus aspectos multidimensionais.
A relação que pode ser estabelecida entre as condições de saúde física e mental e a ocupação do espaço, além de ser amplamente conhecida, é também atestada em pesquisas recentes que reforçam o peso da localização geográfica das habitações populares em espaços marcados por precariedade.
Além da localização geográfica das residências das populações periféricas, outros fatores como a infraestrutura do entorno desses espaços e condicionantes ambientais, somados, afetam não apenas o acesso, mas também influenciam os indicadores de saúde das mesmas.
Tais fatores operam em conjunto na determinação de tendências de melhoria ou piora das condições de saúde física e mental, bem como surgem como variáveis explicativas dos processos de adoecimento, especialmente entre populações periféricas.
Aliado ao fator da localização geográfica das habitações, a desintegração da coesão social é outra determinante da ideação e prática suicida, como disse Durkheim, ao indicar que a quebra da coesão social que resulta na fragilização ou até no rompimento do vínculo entre indivíduo e sociedade é a causa por excelência da prática suicida. Segundo o mesmo Durkheim seria a coesão social a resposta ao fato de que: “ O indivíduo não se basta, é da sociedade que ele recebe tudo o que lhe é necessário, como é para ela que ele trabalha”.
Na sua obra O suicídio, Durkheim descreve pelo menos três macrotipos da ideação suicida que tem como causa a quebra da ou a extrema coesão social : 1) Suicídio egoísta, que seria produto do isolamento social e não alcunha que indicaria dificuldade em relacionar-se; 2) Suicídio altruísta, praticado pela extrema coesão social quando o indivíduo atribui a sua individualidade um valor menor que a sobrevivência da ideia, da comunidade e de seus ideais e o 3) Suicídio anômico, resultado da quebra de expectativa frente as condições de existência, relacionado esse à perda de poder aquisitivo, desemprego e inadequação psíquica diante de um novo quadro de referência social.
De fato, chama atenção o conjunto de indicações sociais e de pobreza presentes no Brasil e na América Latina que se enquadram, com relativo conforto, à descrição desse último tipo apresentado por Durkheim, a anomia. Segundo o panorama social da América Latina elaborado pela divisão de desenvolvimento social da Comissão Econômica para a América latina e Caribe (CEPAL), e pela sua divisão de estatísticas na edição de 2020, essa porção do continente americano terminou o ano de 2020 com 287 milhões de pessoas em situação de pobreza e extrema pobreza.
Tal realidade somada a uma mudança de orientação da ação do Estado na América como um todo, provavelmente, contribuiu de modo decisivo para a velocidade do aumento de pessoas no continente nessas condições.
Se no período de cinco anos, entre 2014 e 2019, o incremento foi de 6,2 milhões de pessoas na pobreza e extrema pobreza na América latina e no Caribe, em dois anos, entre 2019 e 2020, o aumento absoluto foi de 4,4 milhões de pessoas. Portanto, em um período de dois anos o continente teve um aumento proporcional ao que experimentou nos cinco anos anteriores.
Em termos relativos, o aumento verificado entre esses últimos dois anos foi de 10,62%, enquanto nos intervalos anteriores o percentual oscilou entre 0,2 e 2,2% ao ano a ano. Portanto, o incremento percentual no período de um ano foi cerca de cinco vezes maior que as taxas percentuais nos últimos seis na América latina e no Caribe. Esse número equivale a 46,2% do total da população da região no ano de 2020.
Dentre os fatores que explicam esse aumento de 30 milhões de pessoas no continente, a pandemia de Covid-19 parece ser o processo que teria acelerado um incremento que já vinha dando seus sinais desde o ano de 2014. A movimentação do mercado de trabalho com impactos na quebra da coesão social é outra variável que pode ser tratada como determinante das condições de vida e saúde dos indivíduos. Os efeitos da crise sanitária advinda do espraiamento da Covid-19 no território brasileiro na dimensão do mercado de trabalho motivou uma investigação, ainda em fase de consolidação, realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD) teve por objetivo fazer uma estimativa do número de pessoas com sintomas associados à síndrome gripal e monitorar os impactos da pandemia de COVID-19 no mercado de trabalho brasileiro. Iniciada em 4 de maio de 2020, a pesquisa foi realizada por telefone entrevistando cerca de 48 mil domicílios por semana em todo o país.
Porém, no próprio portal criado para divulgação dos dados é informado que os dados têm natureza experimental e estavam, à época, sob avaliação. Conforme informa o IBGE, a sua divulgação tem por finalidade envolver os usuários dos dados na avaliação dos mesmos quanto à confiabilidade e à qualidade. No entanto, há indicações trazidas no estudo quanto aos efeitos da pandemia Covid-19 no mercado de trabalho brasileiro que fornecem pistas do cenário futuro do país após a pandemia.
Por exemplo, na probabilidade de que um indivíduo no Brasil esteja trabalhando no primeiro trimestre do ano, o país experimentou uma queda significativa. Enquanto nos anos de 2018 e 2019 essa probabilidade era de 89%, no ano de 2020 caiu para 73,8%.
Outras indicações importantes referem-se ao número de desalentados e não desalentados na composição da força de trabalho brasileira. Esse número corresponde aos brasileiros que compõem a força de trabalho potencial no país, almejam trabalhar e que estariam disponíveis para o trabalho, mas que não o procuraram por considerarem que não encontrariam.
Dentre as razões alegadas os entrevistados declararam: indisponibilidade de trabalho no local onde moram, trabalhos inadequados, serem considerados muito jovens ou muito idosos para o cargo e não possuírem experiência ou qualificações necessárias para o preenchimento da vaga de emprego. Segundo dados da PNAD de 2017, o número de desalentados no Brasil chegou a 4,9 milhões de brasileiros no quarto trimestre daquele ano. No primeiro trimestre do ano de 2012, quando teve início a PNAD Contínua como série histórica, esse número foi de 1,9 milhão de brasileiros.
Os dados do IBGE sobre o número de desalentados no Brasil no primeiro trimestre de 2021 foi de 6 milhões de brasileiros. Na exposição da evolução dos dados de desalento entre os anos de 2012 e 2019 é possível montar, ainda que parcialmente, o cenário que estruturou a deterioração do mercado de trabalho no Brasil em anos recentes em vias de agravamento.
O Brasil após onze trimestres seguidos de recessão, entre 2012 e 2019, teve uma perda acumulada no Produto Interno Bruto da ordem de 8,2% que impactou diretamente o mercado de trabalho nacional. Exatamente após o segundo trimestre de 2015 é que se deu o aumento do número de desalentados no país.
O número de desalentados segundo a distribuição regional no Brasil reproduz o quadro de desigualdade já conhecido. No segundo trimestre de 2019, a região nordeste concentrava 60% dos desalentados no país, com os estados do Maranhão e Bahia liderando os números em 12,1% e 15,7% respectivamente.
A associação entre o estado que pode ser caracterizado como de pobreza e precariedade com indicadores econômicos e de trabalho pode ser realizado sem grandes dificuldades a partir da exibição dos mesmos. Perda de salário real, aumento do número de desempregados e desalentados, nesse sentido, fornecem pistas importantíssimas para a conformação de um quadro de mal-estar na sociedade que se estude. Segundo o panorama social da América Latina e Caribe, entre a noção de bem-estar e sua realização haveria dimensões objetivas claramente identificáveis na vida material dos sujeitos: 1) Estrutura socioeconômica; 2) Dimensão política e institucional e; 3) Relações sociais.
É fundamental observar a inversão aqui proposta. As indicações quantitativas são pistas para um fenômeno de caráter subjetivo de difícil captura e que tem suas raízes nas condições objetivas de sobrevivência dos trabalhadores: a sensação de mal-estar. O panorama social da América Latina e do Caribe observou quanto a essa porção do continente que na região existe um crescente mal-estar social com relação às principais dimensões que estruturam a vida social. Antes da pandemia, observava-se um inconformismo considerável a respeito da persistente desigualdade na distribuição dos recursos e uma percepção de desproteção face a múltiplos riscos, especialmente ocupacionais e econômicos, às vezes em contextos de elevados níveis de endividamento dos domicílios.
Portanto, antes da pandemia de Covid-19 tornar-se real já era observado um crescente inconformismo frente às condições de vida e trabalho no continente, sobretudo na sua porção mais pobre formada por América Latina e Caribe. Somada a esse inconformismo, aparece a desconfiança com as instituições da vida política partidária e também com as instituições da democracia. Nesse ponto, uma questão central tem surgido para compreender como a coesão social pode afetar as condições de vida tanto em sociedade como individualmente.
A noção de comunidade é indicada por Putnam como condição para a democracia e isso se revestirá ainda de maior importância em comunidades de periferia. A formação de uma identidade comum, inclusive, opera para a formação de uma comunidade com laços sociais eficazes. Essa, a comunidade, conectaria e promoveria a integração entre seus membros por meio de instituições sociais válidas e reconhecidas por seus membros.
Surgem aqui como elementos comunitários importantes e promotores da coesão social nas cidades médias e grandes: igrejas, escolas, associações de moradores, movimentos sociais, sindicatos, grupos políticos e assemelhados. A vivência dos indivíduos nesses agrupamentos é capaz de, assim, operar para a construção e/ou destruição dos graus de coesão social ao serem promotoras do estabelecimento de laços sociais com os indivíduos e as comunidades como um todo.
A força do agir coletivo, bem como da coesão social, age externamente às condições objetivas e de renda individual, sendo por isso mesmo uma das alternativas diante de cenários de empobrecimento e ameaça à sobrevivência dos grupos sociais. A questão que se interpõe como problema é que, segundo Klaus Frey quando fala da importância do capital social, “acontece que, em virtude dos processos de modernização e diversificação da sociedade, esses elementos delimitadores que asseguram a coesão das comunidades tendem a afrouxar(…) Com isso, os códigos, valores e práticas tradicionais da comunidade se transformam em amarras numa sociedade moderna e liberal, tornando, assim, o custo da segurança proporcionado pela comunidade cada vez mais alto”.
Portanto, além da determinação geográfica – localização e ambiência – a integração ou desintegração dos laços sociais dos indivíduos nas comunidades de periferia e com índices de empobrecimento relativo emerge como fator fundamental para os estudos de questões atinentes à saúde mental. Uma vez que o grau de coesão social experimentado nas comunidades é capaz de, não só criar alternativas de reprodução econômica, mas também, integração e pertencimento com potencial de redução de processos de adoecimento mental.
É nesse ponto que a renovação de programas sociais de habitação como o Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV), do Governo Federal atual, pode requerer uma reflexão pouco ou nunca realizada. Rever diversos fatores para sua implementação, considerando que um de seus objetivos ampliados seja a melhoria das condições de vida das populações beneficiadas, não pode prescindir da consideração do peso e papel das institucionalidades comunitárias criadoras da coesão nesses espaços.
Estudar os efeitos nas condições de saúde mental – em suas variadas dimensões –, tanto entre os residentes beneficiários do PMCMV, bem como moradores da periferia das cidades grandes e médias, seria uma tarefa capaz de revelar o peso da influência da localização geográfica e das condições favorecedoras ou desestimuladoras da criação de laços sociais nesses espaços.
A cidade capitalista como espaço de acumulação de riqueza, mas também da sua antítese, a produção da miséria, concebe a segregação como manifestação espacial desta última. Porém, os efeitos da segregação socioespacial, já largamente investigados sob perspectiva da luta pela terra urbana e da especulação imobiliária, ultrapassam as dimensões da organização do espaço. Dentre os efeitos menos estudados, ou menos compreendidos, a quebra da coesão social sugere uma relação provável com o respectivo aumento dos casos de adoecimento mental entre as populações das periferias das cidades brasileiras.
Segundo pesquisa coordenada pelo observatório de Olho na Quebrada em Heliópolis, a maior favela de São Paulo, sobre os impactos da pandemia Covid-19, houve um aumento significativo do número de casos de depressão e ideação suicida entre moradores. O estudo indicou que 86% dos entrevistados fizeram relato de depressão. Dentre outros desdobramento,s pode-se citar o perfil dos casos de suicídio e depressão catalogados. Fatores como ser mulher, ter cor da pele preta, a homossexualidade, ser transgênero, entre outros recortes, pressionam para o aumento de casos nos espaços da periferia em São Paulo e acredita-se que também nas demais cidades em todo Brasil.
Se por um lado a descrição dos efeitos do menor ou maior acesso aos serviços de saúde pelos moradores dos espaços periféricos no processo de adoecimento mental pode emergir como importante ferramenta de avaliação que ultrapassa a consideração da provisão de moradia como direito social, do mesmo modo, investigar as condições de criação e/ou destruição dos vínculos sociais relacionadas às condições de tal processo de adoecimento nesses mesmos espaços pode fornecer indicações cruciais para a promoção de políticas de saúde mental em escala municipal.
Pensar o espaço da cidade como espaço da realização de utopias universais é tarefa da esquerda. No espectro de discussões entre acadêmicos, movimentos sociais, poder público e demais agentes, a noção aceita e consensual entre esses é que o desenvolvimento urbano implica, necessariamente, na melhoria das condições de vida dos habitantes da cidade. Será possível na leitura de qualquer exposição sobre a questão urbana encontrar preocupação com renda, pobreza, desigualdade, educação e fome. Entre os habitantes mais pobres nas cidades de países de economia dependente como o Brasil, tais pautas se sobrepõem e se impõem.
Questões como a regularização fundiária e o preço da terra frequentemente ocupam a centralidade do debate em quase todos os fóruns dedicados tanto à reflexão sobre a questão urbana, como às programáticas de Estado, das entidades de classe, de categoria e demais representações sociais.
Porém, o que é preciso indicar é que, por vezes, efeitos perversos do modo como a cidade capitalista se organiza em termos de produção do espaço se veem reduzidos à externalidades. É como se a crueza do debate e de seus subtemas, ou ainda o peso que esses possuem, findassem por invisibilizar questões aparentemente de menor importância quando se fala de cidade no Brasil.
A questão da saúde mental ocupa lugar de especial relevância, entretanto poderia abrir possibilidades de discussão para caminhos alternativos à proposição de soluções para a questão urbana. Obviamente, a questão urbana aqui defendida vê-se equacionada na melhoria das condições reais objetivas de vida dos habitantes das cidades. Aqui, mais uma vez, a pauta urbana não se resumirá à produção de uma vida “asfáltica” e higienizada que se alcançaria com a construção de praças de lazer e “empoderamento” de comunidades sob a lógica do Terceiro Setor. Usando uma metáfora apropriada: não é no equilíbrio do “jogo” que se pensa, mas no fim do mesmo com a derrubada do seu “tabuleiro” e de seu conjunto de regramentos adoecedores de fundo neoliberal e individualizante.
Pensar em uma sociedade menos desigual e com mais oportunidades para todos aparenta ser o que está ao alcance dos setores mais progressistas no atual estado de coisas, porém não é suficiente para dar fim ao “jogo”. Assim, oferecer condições reais de habitação, mobilidade, caminhabilidade e outros tantos instrumentos de reordenação do espaço é fundamental, mas não é suficiente. Há uma determinação da sociedade capitalista maior que frequentemente captura até mesmo muitas das ações legítimas no atendimento de parte dessas pautas.
Nessa lógica, programas sociais importantes podem se ver subordinados aos interesses do capital na cidade, sobretudo imobiliário e da construção civil. A atenuação das condições de vida da classe trabalhadora em sua luta para sua reprodução social é desejada pelo capital. Melhor é ter que lidar com trabalhadores com “teto” do que com trabalhadores organizados, conscientes de seus direitos, ativos em movimentos sociais, educados politicamente e sadios. Mas isso é assunto para outro texto.
A dimensão da saúde, em especial nos seus aspectos referentes à saúde mental da classe trabalhadora habitante da periferia, emerge como variável reveladora dos efeitos perversos da cidade que foi produzida desde a década de 1950 no país. As condições de saúde dessa população e em destaque os números de adoecimento mental entre a população da periferia pode desmascarar a “generosidade” do capital em “permitir” o abrigo do “sol e da chuva” nos terrenos às margens dos serviços públicos.
Dr. Marcelo Karloni é Professor da Universidade Federal de Alagoas, Campus Arapiraca, Curso de arquitetura e urbanismo e membro do Núcleo Arapiraca da Rede BrCidades.
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