Wilson Ferreira
Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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A burguesia quer sangue em ‘Sanguessugas’, por Wilson Ferreira

As metáforas de Karl Marx sobre o capitalismo no século XIX só poderiam mesmo ser retiradas da literatura gótica sobre monstros e vampiros

A burguesia quer sangue em ‘Sanguessugas: Uma Comédia Marxista Sobre Vampiros’

por Wilson Roberto Vieira Ferreira

Assim como muitos escritores do século XIX, Karl Marx também foi impactado pela literatura gótica sobre vampiros e monstros. Por isso, a melhor metáfora do Capitalismo está em “O Capital”: um vampiro que suga o trabalho vivo para acumular o resultado do trabalho morto (o lucro) por toda a eternidade. Então, por que não transformar essa metáfora em uma alegoria? É o que faz o filme alemão “Sanguessugas: Uma Comédia Marxista Sobre Vampiros” (Blutsauger, 2022), em exibição na MUBI. Um falso barão foge da Rússia de Stálin e chega numa cidade da costa alemã, com um único propósito: encontrar um navio que o leve a Hollywood para tentar a sorte no cinema. Mas tudo o que consegue é conhecer uma elite de vampiros burgueses que sugam o sangue dos moradores, mas que põem a culpa das mordidas em pulgas… judias, chinesas etc. Vampiros que, também, adoram cinema.  

“O Capital é trabalho morto que, feito um vampiro, só pode viver sugando o trabalho vivo – e que quanto mais trabalho suga, mais vive. O tempo durante o qual o trabalhador trabalha é o tempo durante o qual o capitalista consome a força de trabalho que comprou dele”, escreveu Karl Marx na sua obra máxima O Capital ao fazer uma metáfora gótica do mecanismo de funcionamento do capitalismo.

Mas ele foi mais além: “O capital dado em troca da força de trabalho é convertido em bens de necessidade, cujo consumo é o meio pelo qual os músculos, nervos, ossos e cérebros dos trabalhadores existentes são reproduzidos e os novos trabalhadores são gerados”.

Vampiros predadores, mortos-vivos, corpos desmembrados. As metáforas de Karl Marx sobre o capitalismo no século XIX só poderiam mesmo ser retiradas da literatura gótica sobre monstros e vampiros, bastante popular naquele momento. Então, a metáfora dos vampiros passa a ser a ideal: o capitalista como um ser que “drena o valor do trabalho de seus trabalhadores para enriquecer a si mesmo – assim como os vampiros sobrenaturais drenam a força vital de suas vítimas para se tornarem mais fortes”.

Marx esforçava-se em tentar explicar como uma dinâmica tão abstrata de dominação mediada pelo fetichismo da mercadoria (uma forma econômica fantasmagórica em que Deus baixaria à Terra sob a forma de capital e mercaddorias) tem consequência nefasta e bem concreta: a riqueza acumulada na elite burguesa de um lado; e do outro, o salário, meio evanescente de troca que se auto consome na própria sobrevivência e reprodução da força de trabalho. Para continuar sendo sugada pelo capital-vampiro.

Então, porque não dar movimento a essa metáfora, transformando-a numa perfeita alegoria. Essa é a ideia do filme Sanguessugas: Uma Comédia Marxista Sobre Vampiros (Blutsauger, 2022), do jovem cineasta alemão Julian Randlmaier, uma sátira que dá vida não só a metáfora de Karl Marx sobre a classe capitalista e a ganância ocidental (colonialismo), como também mira no totalitarismo soviético na época de Stalin.

O filme dá sequência a linha dos trabalhos anteriores de desconstrução política como Autocrítica de um Cão Burguês de 2017 e Um Conto de Inverno Proletário de 2014 – roteiros que combinam diferentes ideias e elementos, de comédia e drama a ideias filosóficas e teóricas. Suas obras também transbordam de temas políticos, passados e presentes.

Sanguessugas faz questionamentos sobre as crises cíclicas do capitalismo (a narrativa ocorre um ano antes do seminal crash de 1929), sobre as incursões entre cinema e política e sobre a própria gênese do fascismo que chegaria ao poder na Segunda Guerra Mundial.

O filme transborda ideias numa narrativa surreal e maluca sobre um falso barão exilado da URSS de Stálin que chega a uma pequena cidade na costa alemã, com um único propósito: encontrar um navio que o leve a Hollywood para tentar a sorte na indústria do cinema – oportunidade negada pelo diretor soviético Eisenstein, que cortou sua única cena na edição final do filme Outubro.

O que acentua ainda mais a atmosfera surrealista é que, embora tudo se passe na década de 1920, uma lata de alumínio da Coca-Cola, uma moto, carros, navios e instalações de fábricas modernas figuram nas cenas, tornando o vampirismo dos capitalistas atemporal. 

Seria uma tradução e imagens do conceito de “realismo capitalista” do filósofo britânico Mark Fisher? – a atual ideologia do capitalismo globalizado sobre a inevitabilidade natural do capitalismo, a sensação de fim da história e de cancelamento do futuro.

Provavelmente sim, pela quantidade de insights filosóficos e teorias políticas que transbordam a cada cena de Sanguessugas: Uma Comédia Marxista Sobre Vampiros.

O Filme

Sanguessugas segue a história do Barão-impostor, Ljowushka (interpretado pelo cineasta georgiano Aleksandre Koberidze), um ator fracassado e fugitivo da Rússia Soviética que chega a uma cidade costeira alemã em busca de possibilidades de viajar para os Estados Unidos para tentar a sorte em Hollywood. 

Em um esforço para arrecadar fundos para comprar uma passagem em uma balsa até Oslo (e, daí, para o EUA), Ljowushka se envolve em um conflito complicado entre um aristocrata-industrial local, Octavia (Lilith Stangenber), e os funcionários de uma fábrica (de propriedade de Octavia).

O filme começa com esses jovens funcionários que formaram um grupo de estudos sobre “O Capital”, de Karl Marx, e discutem a metáfora do vampiro do texto em uma praia. A questão levantada é se a metáfora poderia ser literal. 

Naquela pequena cidade correm boatos sobre vampiros e estranhas marcas avermelhadas que aparecem nas pessoas. Por enquanto, as autoridades locais colocam a culpa em algum tipo de praga de pulgas… que poderiam estar vindo da Polônia, China, Rússia…

Enquanto isso o falso barão é pego no flagra tentando abrir o cofre da mansão de Octavia – ele precisa de fundos não só para a viagem, mas também para produzir um curta-metragem para mostrar aos estúdios de Hollywood.

Mas Octavia, junto com o seu amigo dândi Boni (Daniel Hoesl), é excêntrica e descolada – não só se sente atraída pelo falso barão como decide bancar o seu filme. Vão filmá-lo na Alemanha mesmo, para depois enviá-lo para a UFA – a Hollywood alemã.

O tema do curta-metragem? Nada mais irônico e autorreferencial ao próprio filme: vampiros que atacam uma pequena cidade na Alemanha.

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